Quid juris?

5 de abril de 2021

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Em abril de 2020, um grupo de empresários, preocupados com os efeitos deletérios da covid-19 sobre a saúde econômica das empresas e seus reflexos nos contratos de trabalho, criou o movimento “Não demita!”. Esse movimento, de adesão espontânea – e na contramão de tudo o que os arautos do fim do mundo anunciavam em plena pandemia – procurava relembrar ao empresariado a função social das empresas e a necessidade de evitar demissões, pelo menos por 60 dias – de 1° de abril a 31 de maio de 2020 – até que a doença arrefecesse, surgisse uma vacina, uma esperança, o que fosse.

Os argumentos do movimento eram sedutores: dispensar um empregado sai mais caro que mantê-lo no emprego por dois meses; a crise é passageira; com o fim da crise, o melhor ativo das empresas será o seu próprio pessoal. Agora, esgotado o “período de validade” a que o próprio movimento “Não demita!” se impôs, empregados dispensados nesse período estão acorrendo à Justiça do Trabalho pedindo reintegração no emprego sob alegações as mais diversas.

Venire contra factum proprium
Nemo potest venire contra factum proprium” significa que ninguém pode contravir o próprio fato. Ninguém pode se comportar de uma determinada maneira, despertando na outra parte uma confiança legítima e, sem mais nem menos, passar a comportar-se de outro modo, contrariando a primeira expectativa e quebrando no outro a sua boa-fé objetiva. Esse princípio foi enunciado pela primeira vez em 1230 por Azo, professor da Universidade de Bolonha, a partir de antigos textos romanos. Em 1912, Erwin Riezler, professor da Universidade de Freiburg, recolheu nos glosadores e pós-glosadores do Direito romano o esboço desse princípio e Venere contra factum proprium — Studien in Römischen, Englischen und Deustschen Civilrecht.

Com a proibição do comportamento contraditório não se quer anular a liberdade de mudar de opinião, mas neutralizá-la, sempre que esse segundo comportamento puder causar prejuízo a quem tenha confiado na manutenção do comportamento inicial. A proibição do comportamento contraditório tem uma função inibitória e outra reparatória. A inibitória consiste em tutelar todas as expectativas legítimas despertadas na outra parte independentemente de qualquer norma específica para que os negócios e as obrigações se cumpram para o bem de ambos os contraentes. A reparatória consiste em obrigar ao desfazimento da conduta que contraria o fato próprio ou à reparação do prejuízo daquele que cultivara expectativa legítima na continuidade do primeiro comportamento.

O Direito positivo brasileiro não contém regra que proíba expressamente o comportamento contraditório, mas o princípio pode ser inferido de inúmeras outras disposições legais que impedem que um comportamento inicial seja desdito por outro posterior que retire ao primeiro a sua eficácia. Boa parte do descaso com que a doutrina trata a proibição do comportamento contraditório se deve ao fato de o princípio não estar cunhado em nenhuma regra positiva de Direito. Na medida que cada comportamento do homem em sociedade provoca no seu igual expectativas legítimas, é papel do Direito tutelá-las, assim como delimitar o picadeiro em que o exercício dessa pluralidade deverá atuar para estimular a sua individualidade e a individualidade do outro.

Os códigos modernos – entre eles o próprio Código Civil brasileiro de 2002 – e a quase-totalidade dos institutos jurídicos desses grandes sistemas normativos têm o ranço da ideologia liberal e individualista nascida com a Revolução Francesa, e que contaminou as ditas grandes codificações ocidentais da época, como o Code Napoléon e o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB) alemão. Nesses sistemas, o direito subjetivo é cultuado com tal exagero que alça a vontade individual ao status de principal, senão única fonte de direitos e obrigações. O alicerce do contrato é a vontade livre, e a sua simples exteriorização devia bastar para carimbar sua validade e aperfeiçoar o negócio. Os requisitos de validade do contrato – sujeito capaz, objeto lícito, forma indicada ou não proibida na lei – são externos e alheios ao próprio conteúdo da relação obrigacional.

Essa concepção liberal, que põe a liberdade individual acima de todos os outros valores – “qui dit contractuel, dit juste”, dizia Fouillée – somente tem valia em um cenário de igualdade substancial em que não estão presentes desequilíbrios sociais e econômicos. Como esse estado de absoluta simetria social é rigorosamente utópico, o pensamento jurídico formado a partir da segunda metade do Século XX evoluiu não para negar a liberdade individual, mas para entender que o papel do Direito está “não tanto em proteger a dignidade humana, mas em qual sentido protegê-la”. A complexidade e o constante estreitamento das relações interpessoais, ao mesmo tempo em que ampliam os limites de uma existência virtual do homem, diminuem os espaços físicos onde a individualidade possa ser exercitada. Isso faz com que os limites do direito de um e de outro se tornem cada dia mais tênues, mais rarefeitos, mais imperceptíveis, aumentando a frequência das invasões ilícitas no patrimônio jurídico do outro. Proibir o comportamento contraditório não é transpor o muro da liberdade individual para ditar limites ao direito subjetivo que cada um tem de realizar o negócio jurídico como melhor lhe aprouver, mas tutelar a confiança e a boa-fé objetiva daquele que contratou com o outro, e supôs que, no interesse de ambos, o comportamento inicial no qual depositou sua confiança legítima não seria alterado sem razão relevante.

Se o “Não demita!” for interpretado à luz do venire contra factum proprium, fica claro para os empregados das empresas que aderiram ao movimento que seus patrões renunciaram espontaneamente ao direito potestativo de rescindir seus contratos individuais de trabalho por dois meses. Esse compromisso de não dispensar certamente criou nos empregados a expectativa legítima de que o comportamento inicial – isto é, o “fato próprio”– somente seria modificado se os empresários tivessem razão fundada para fazê-lo. É contrária ao bom direito toda e qualquer dispensa ocorrida naquele período se a empresa não tiver uma causa justa para fazê-lo.

Boa-fé objetiva
Quando a parte contraria o próprio fato, isto é, quando se comporta de maneira contrária ao que voluntariamente assegurou à outra parte em um primeiro momento, quebra a boa-fé objetiva. Boa-fé e ética são as duas faces de uma mesma moeda. O conceito de boa-fé se extrai do conceito de dolo. Dolo é o oposto de boa-fé. Se a boa-fé é a consciência de não agir ilicitamente, e exclui o dolo, segue-se que o dolo outra coisa não é senão o agir com a consciência da ilicitude da ação. A boa-fé objetiva não é mais um estado anímico, de consciência, mas sim uma conduta apartada das intenções íntimas do contratante, que exige comportamento sinceramente comprometido com os princípios de lealdade, honestidade e colaboração a fim de que se alcancem os fins pretendidos. Esse dever de cooperação tem um caráter negativo – abster-se de praticar qualquer ação contrária aos interesses da contraparte – e outro positivo – cada contratante se obriga a agir na execução do contrato da forma mais leal, honesta e transparente possível, de modo que a obrigação se cumpra com o menor sacrifício para ambos os envolvidos.

Somente assim se atinge a concretude do direito. Não basta a ausência da intenção de prejudicar para que se reclame a proteção do direito. É preciso correttezza (lealdade), isto é, concurso efetivo de ambos os contratantes para que o contrato se perfaça sem que qualquer dos consortes se prejudique ou se onere além do normalmente esperado. Na origem, a boa-fé objetiva não visa à proteção desta ou daquela parte, mas à sujeição de ambas, de modo a atrelá-las, “em igual medida, aos padrões objetivos de lealdade e colaboração para os fins contratuais”. Não se trata de reduzi-la a uma relação tarifada de comportamentos, mas é urgente impor limites. Na boa-fé objetiva, o que conta é o comportamento exteriorizado, o que passa a vincular a parte não apenas aos deveres expressamente ajustados, mas àqueles outros tantos que possam derivar da confiança legítima da contraparte, ainda que não estipulados expressamente.

Sob esse aspecto, o movimento “Não demita!” obriga socialmente (mas não juridicamente) aos aderentes, porque uma conduta que se arrime na boa-fé objetiva impõe às partes o dever de se comportar eticamente em relação à contraparte e terceiros não apenas até o limite da obrigação de respeitar o que efetivamente foi combinado, mas o de suportar com igual intensidade também os deveres não-expressos, chamados instrumentais, acessórios, anexos ou fiduciários.

O que os empregados alegam
De modo geral, os litigantes sustentam que as empresas que aderiram espontaneamente ao movimento “Não demita!” criaram um pacto adjeto, isto é, uma espécie de contrato acessório que se soma ao contrato individual de trabalho original e passa a fazer parte integrante dele. Essa capitis deminutio livremente estabelecida por elas – promessa de não dispensar empregados por 60 dias – teria retirado do contrato de trabalho original uma de suas possibilidades: a de que o empresário possa rescindi-lo sem justa causa, por dois meses. Há dois tipos de demanda: a daqueles que foram dispensados no período de dois meses de que trata o movimento “Não demita!”, e a daqueles dispensados depois. Tanto em um grupo quanto no outro há empregados de empresas que aderiram espontaneamente ao movimento e empregados de empresas que não têm nenhuma relação com ele.

Os empregados de empresas que não aderiram ao movimento não podem invocá-lo para qualquer fim. A lógica é a mesma das convenções coletivas de trabalho: não se pode exigir que uma empresa respeite uma convenção coletiva se ela não a assinou e dela não faz parte.

Os empregados das empresas que aderiram ao movimento Não demita!” e foram dispensados por justa causa ou depois de 31 de maio de 2020 também não têm nenhuma expectativa quanto às consequências jurídicas desse pacto. Apenas os empregados das empresas que aderiram ao movimento e foram dispensados sem justa causa entre 1° de abril e 31 de maio de 2020 poderão pretender algum direito desse movimento.

Definidos os potenciais interessados nas promessas do movimento “Não demita!”, resta saber quais consequências jurígenas poderiam ser tiradas da quebra da promessa de não dispensar empregados entre 1° de abril e 31 de maio de 2020. Os empregados alegam que a quebra dessa promessa torna nula a rescisão do contrato e, por conta disso, têm direito à reintegração no emprego com o pagamento dos salários e vantagens vencidos do dia da dispensa à efetiva reintegração.

Não é tão simples.
O movimento “Não demita!” criou para o Direito do Trabalho aquilo que em Direito se chama “norma de conteúdo aberto”, isto é, uma norma em que o preceito primário (a descrição da conduta) é completo, mas falta o preceito secundário, isto é, a sanção penal. É o que ocorre, por exemplo, no art. 158, §3º, do Código Penal, que trata da extorsão. O §3º diz que se o crime é cometido mediante restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de seis a 12 anos, além da multa, mas também diz que se disso resultar lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2º e 3º. Ou seja: art.158 define o tipo penal, mas o §3° não traz pena para as condutas mais graves, mas remete o intérprete ao art.159, §§ 2º e 3º.

O compromisso assumido pelas empresas que aderiram espontaneamente ao movimento “Não demita!” não prevê nenhuma sanção para o caso de descumprimento da regra de que não haveria dispensa de empregados em abril e maio de 2020. Isso, não autoriza o empregado a supor que a quebra da regra faz nascer para ele, automaticamente, o direito à reintegração. Esse movimento não tem base legal. É apenas um compromisso ético das empresas de preservar os postos de trabalho como forma de contribuir para o esforço de superar os traumas de uma pandemia. É, portanto, um compromisso espontâneo firmado sobre uma convenção moral. O descumprimento de uma regra moral não gera para o infrator nenhuma sanção jurídica que implique obrigação de pagar ou fazer, mas simples reprovação social que depende fundamentalmente da ética com que o infrator se comporta. Como o compromisso de não demitir por dois meses equivale a uma norma de conteúdo aberto, a interpretação caberá ao juiz, que poderá alvitrar outra solução, até mesmo a de que, se não há sanção alguma para o caso do empregado ter sido dispensado no período em que as empresas aderentes do movimento concordaram em que isso não seria feito, não há como determinar a reintegração nem fixar indenização equivalente.

Penso que a reintegração não é possível, e por dois motivos: o primeiro, é que o fato de não haver sanção na regra espontânea que proíbe dispensas em abril e maio não autoriza ao empregado dispensado supor que a única consequência disso é sua reintegração no emprego. O segundo é que, já que se trata de norma de conteúdo aberto, que depende, para se completar, do trabalho exegético do juiz, o juiz não poderá, mesmo que queira, determinar a reintegração do empregado porque as demissões estavam vedadas apenas em abril e maio de 2020. Logo, se possibilidade de reintegração houvesse, esta seria apenas até 31 de maio de 2020 e não indefinidamente. Como esse prazo exauriu-se, a única solução possível seria aplicar, por analogia, o art. 496 da CLT, que trata da impossibilidade de reintegração do empregado estável por incompatibilidade resultante do dissídio, e converter o período faltante da reintegração em indenização simples, com base na maior remuneração do empregado, acrescendo-se juros e correção. Desde, é claro, que tenha havido pedido na inicial.

Conclusões

  1. O movimento “Não demita!” é apenas um compromisso ético de alguns empresários de não dispensarem seus empregados de 1° de abril a 31 de maio de 2020. Não pode ser interpretado fora desse período.

 

  1. Tratando-se de um acordo moral, sem base jurídica, seu descumprimento não gera para os empregados dispensados nesse período nenhum direito trabalhista, especialmente reintegração. A quebra de uma regra moral gera mera reprovação social.

 

  1. A promessa de não dispensar no período estipulado é uma capitis deminutio por meio da qual os empresários renunciaram ao direito potestativo de rescindir o contrato de trabalho durante certo tempo, mas criou nos empregados das empresas convenentes expectativa legítima. Seu descumprimento sem razão fundada fere a boa-fé objetiva (venire contra factum proprium).

 

  1. Como a promessa de não dispensar não tem sanção, é cláusula aberta sujeita à interpretação do juiz.

 

  1. O juiz não poderá reintegrar os empregados dispensados em abril e maio de 2020, porque o período de “garantia provisória” já se exauriu. O máximo que poderia fazer, por analogia ao art.496 CLT, e se houver pedido, é deferir indenização simples do período que vai da dispensa ao dia 31 de maio de 2020 (fim da proteção provisória assegurada pelo movimento “Não demita!”).

 

  1. Empregados de empresas que aderiram ao movimento e foram dispensados por justa causa, ou de empresas que não aderiram ao movimento, e empregados de empresa que aderiram a ele mas foram dispensados após 31 de maio de 2020 não podem invocar o compromisso dos empresários para nenhum fim.