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Reenvio prejudicial: elo entre o juiz comunitário e o juiz nacional

5 de julho de 2005

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INTRODUÇÃO

Os processos de integração regional têm especificidades conforme o caminho que os países pretendam trilhar e as fases em que se encontram.

A integração para Bela Balassa tem um duplo aspecto: como processo, significa o conjunto de medidas destinadas a abolir discriminações econômicas entre os Estados, e, como situação, significa a ausência de discriminação entre as economias nacionais.

A classificação das diversas etapas nos processos de integração feitas por esse autor tem sido amplamente citada, distinguindo, também, os processos de cooperação, caracterizados pela diminuição das barreiras comerciais entre os Estados, dos processos de integração, onde o objetivo é suprimi-las.1

Ultrapassada a etapa da área de tarifas preferenciais, ou de associações de cooperação, onde se busca a coordenação das políticas econômicas e a redução parcial das tarifas alfandegárias, alcança-se a etapa da zona de livre comércio. Nessa fase são abolidas barreiras e restrições quantitativas ou aduaneiras, com o livre trânsito de mercadorias entre os países que integram o grupo.

O passo seguinte é a união aduaneira, caracterizada pela tarifa exterior comum em relação a terceiros, “eliminando os complexos problemas nas definições das regras de origem, assim conceituadas como critérios para que se permita identificar se a produção pode ser considerada de determinado país, de acordo com os percentuais de matéria prima, mão de obra etc.”2  Esta é a etapa  prevista para o MERCOSUL, que ainda se encontra numa “união aduaneira incompleta”. Na União Européia essa fase foi implantada em 01 de julho de 1968, pela decisão do Conselho nº 66/532.

A seguir ingressa-se no mercado comum, objetivo final do MERCOSUL, como previsto no Tratado de Assunção. Sua característica é a livre circulação de fatores de produção, assim considerados pessoas, serviços, bens e capitais, com a eliminação das fronteiras físicas, técnicas e fiscais. Na busca de tais objetivos torna-se imperioso um conjunto de normas supranacionais de aplicação direta e outras que visam à harmonização das legislações nacionais, além de instituições supranacionais das quais emanem essas normas e órgãos que as façam cumprir, dirimindo conflitos de interesses e uniformizando a interpretação dos Tratados.

Paulo de Pitta e Cunha distingue o mercado comum do mercado interno, considerando que este se caracteriza pela livre circulação de cidadãos, como tais, e não como agentes econômicos.3

A etapa final do processo de integração é a união econômica e monetária, com adoção de política monetária unificada, bem como a adoção de um padrão monetário comum, fase alcançada pela União Européia com o euro, que vem demonstrando ser uma moeda forte capaz de competir com o dólar norte americano

A União Européia afetou a noção clássica de Estado Nação e de soberania indivisível, intransferível e absoluta legada pela doutrina clássica. A idéia de uma Constituição supranacional está provocando os maiores debates entre constitucionalistas que estão assistindo ao surgimento de novas teses doutrinárias opostas ao que sempre defenderam, em inúmeros livros publicados.

A União Européia dispõe de quadro institucional próprio, com raízes nas três comunidades: a Comunidade Européia do Carvão e do Aço, criada em 1951, a Comunidade Econômica Européia, criada em 1957 com o Tratado de Roma e que passou a se chamar simplesmente Comunidade Européia, após o Tratado de Maastricht, e a Comunidade Européia da Energia Atômica, também criada em 1957, consideradas os três pilares em que se assenta a União Européia.

O Tribunal de Justiça e o Parlamento Europeu são órgãos comuns às três Comunidades, a partir do primeiro Tratado de Fusão, em 1957. Com o segundo Tratado de Fusão, em 1965, o mesmo ocorreu com a Comissão e o Conselho.

Maria João Palma salienta que “esta fusão orgânica não implicou uma identidade ao nível das competências: os órgãos, sendo comuns, exercem as suas competências nos termos dos respectivos Tratados”.4

DIREITO COMUNITÁRIO

O Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça de Primeira Instância têm sede em Luxemburgo.

A função precípua do Tribunal de Justiça é a interpretação autêntica dos Tratados, atuando como um Tribunal Constitucional. Exerce o controle da legalidade dos atos, jurisdição cível, laboral e, segundo parte da doutrina, também a quase penal. Sua atuação é primordial para permitir que o Direito Comunitário seja aplicado independentemente de considerações políticas, de maneira uniforme, dirimindo controvérsias entre Estados Membros que compõem a União Européia, bem como entre os seus órgãos.

O Tribunal de Justiça é composto por juízes, cidadãos dos Estados Membros, de notório saber jurídico e reputação ilibada, cumprindo mandatos pré-estabelecidos, assistidos por advogados gerais, que atuam como Ministério Público. As decisões são publicadas nas línguas oficiais, cabendo ao autor escolher a língua a ser adotada durante o julgamento.

Com a expansão da demanda, pela decisão do Conselho nº 88/591, foi criado o Tribunal de Justiça de Primeira Instância, que começou a funcionar em novembro de 1989. Posteriormente, por decisão do Conselho de 08 de junho de 1993, sua competência foi ampliada.

Esse Tribunal tem competência mais restrita, julgando ações propostas por particulares, visando desafogar o Tribunal de Justiça.

A diversidade de terminologia e o fato de coexistirem países da Common Law com países da Civil Law não tem sido obstáculo ao funcionamento desses Tribunais.

REENVIO PREJUDICIAL

Os Tribunais dos Países Membros também funcionam como primeira instância do Direito Comunitário nos casos em que uma ação neles proposta por um particular invoque uma norma comunitária que lhe provocou uma lesão. O Tribunal Nacional, se assim entender necessário, suspende o processo e envia ao Tribunal de Justiça da União Européia a consulta sobre a correta interpretação daquela norma, através do denominado “reenvio prejudicial”.

A questão prejudicial é uma via indireta de controle da aplicação do Direito Comunitário, como dito anteriormente, suscitada pelo juiz ou Tribunal Nacional de um Estado Membro, nos casos em que se invoca uma questão comunitária controvertida. A medida é provocada de ofício, fundamentadamente, constituindo um procedimento interlocutório, qualquer que seja o tipo ou a natureza da questão posta em litígio.

Alguns critérios foram estabelecidos para se qualificar o órgão como jurisdicional diante de diferentes ordenamentos jurídicos dos países membros da Comunidade. Devem ser verificadas a sua origem legal, seu caráter permanente, a jurisdição obrigatória, a existência de contraditório e a aplicação da regra de Direito, aí não se incluindo o conceito de equidade.

A qualificação de órgão jurisdicional nacional apto a encaminhar a questão prejudicial foi se ampliando a partir do Processo 61/65.5 Nesse caso o reenvio foi encaminhado por um organismo holandês de seguridade social dos mineiros, tendo o advogado geral Gand se manifestado no sentido de que:

“Mesmo que a organização jurisdicional e administrativa dos Estados membros resulte de princípios comuns, no seu conjunto ela foi influenciada por contingências históricas ou por concepções jurídicas distintas. Deste modo, pode acontecer que as necessidades de interpretação e de aplicação uniformes do Tratado conduzam o Tribunal a reconhecer a qualidade de jurisdição, com base no artigo 177, a um órgão ao qual a lei interna não atribui expressamente esse caráter.”

A decisão da relevância é exclusivamente do juiz nacional, sendo irrecorrível a nível comunitário, para preservar a independência do Poder Judiciário do Estado Membro.

No acórdão Hoffmann Laroche6 o TJCE afirmou que a razão de ser da obrigatoriedade do reenvio tem em vista a prevenção do aparecimento, em qualquer Estado Membro, de jurisprudência contrária ao direito comunitário.

Também no acórdão CILFIT7 o TJCE afirmou que o objetivo fundamental da obrigatoriedade do reenvio é a prevenção do estabelecimento de divergências jurisprudenciais na Comunidade em relação a questões de Direito Comunitário.

Cada vez mais o TJCE vem firmando sua jurisprudência no sentido de que não é órgão meramente consultivo, daí a necessidade de fundamentação, evitando-se consultas genéricas ou hipotéticas.

As questões suscitadas podem ser apreciadas integralmente, reformuladas pelo Tribunal Comunitário ou decididas parcialmente, caso alguns aspectos sejam considerados irrelevantes. No acórdão Costa c. ENEL, decidiu o TJCE que, por não responder a qualquer questão colocada pelo Tribunal de reenvio, não deverá se entender como uma referência incidental, que não traduziria a sua posição sobre o assunto.

Apreciada pelo Tribunal de Justiça, essa decisão vincula o juiz nacional, não se classificando essa obrigatoriedade como interferência no processo e na livre apreciação dos fatos e do direito pelo juiz, já que dele partiu a iniciativa para que a matéria fosse levada ao conhecimento do Tribunal Comunitário, visando que soluções díspares pudessem ser tomadas em casos semelhantes por outros Estados. Não existe, portanto, hierarquia entre o TJCE e o Tribunal Nacional.

A competência para apreciação do reenvio prejudicial, consoante o art. 234 do Tratado, é exclusivamente do Tribunal de Justiça da Comunidade Européia (segunda instância), interpretando o Tratado e Atos derivados ou apreciando a validade dos atos das instituições comunitárias stricto sensu e organismos criados no âmbito da Comunidade.

Esse artigo tem suscitado dúvidas na doutrina, pois se refere a decisões que não sejam suscetíveis de recurso judicial no direito interno.

Alguns entendem que somente os Tribunais Superiores poderiam utilizar o reenvio prejudicial, como João Mota de Campos.8  Entretanto, a questão não é pacífica, pois, especialmente no sistema da Common Law, a assertiva é bem mais questionável do que no sistema jurídico romano-germânico.

Outra parte da doutrina, entretanto, sustenta que o reenvio prejudicial pode ser suscitado em qualquer grau de jurisdição que, no caso concreto, se pronuncie em última instância.

Afirma José Luis Caramelo Gomes9 que:

“No que respeita à afirmação produzida pelo TJCE em Costa c. ENEL, estamos perante a única alguma vez produzida pelo Tribunal sobre esta matéria e trata-se de uma afirmação extremamente clara: a obrigação de reenvio estabelecida pelo art. 234 CE impõe-se às jurisdições nacionais cujas decisões são, comme en l’espèce, sem recurso. Assim sendo, parece-nos razoável afirmar que, num texto jurídico fundamental como o acórdão Costa c. ENEL, em que as questões discutidas eram  questões de princípio extremamente controversas, dificilmente o Tribunal de Justiça se permitiria produzir uma afirmação incidental, tanto mais que o seu conteúdo importa uma afirmação de princípio na interpretação de uma norma do Tratado tão importante como o artigo 234 CE”.

Seguindo essa mesma linha de interpretação podemos citar, entre outros, Louis J. V. Vandersanden, G. Waelbroeck M., Commentaire Megret, “Le Droit de la CEE”, vol. X, “La Cour de Justice, Les actes des institutions”, 2a edição, Collection Études Européennes, Université de Bruxelles, 1993, p. 232; Barav, Ami, “La Fonction Communautaire du Juge national”, thèse, Universidade de Estrasbourg, 1983 e Kovar, Robert, “Recours préjudiciel en interprétation et en appréciation de validité”, JCL Europe, Fasc. 360.

Segundo Caramelo Gomes10, apesar de não se estabelecer “qualquer diferença no poder/dever de reenviar quando estejamos perante um reenvio prejudicial interpretativo ou um reenvio prejudicial em apreciação de validade”, a interpretação do TJCE estabelece significativas diferenças. “Se, no caso do reenvio prejudicial interpretativo a jurisprudência do TJCE aponta no sentido, mais hipotético do que efectivo, de alargamento dos poderes do juiz nacional, é certo que, no reenvio em apreciação de validade a postura é precisamente oposta”.

Menciona o acórdão Fotofrost11 “que considerou que o poder das jurisdições nacionais, no que respeita à apreciação de validade do ato comunitário se limita à constatação da validade”. Se considerar que o ato é inválido deverá colocar a questão prejudicial para ser apreciada pelo TJCE, que reservou para si essa competência.

Outra questão que surge é na hipótese da jurisdição nacional se recusar a aplicar o Direito Comunitário. Pode o juiz nacional entender que o Direito Comunitário invocado não é relevante para a solução do litígio e, conseqüentemente, não é a hipótese do reenvio prejudicial. Caso essa decisão não esteja correta, segundo vários doutrinadores, tal fato configura violação do Direito Comunitário, por parte de um órgão do Estado e se insere na hipótese da Ação por Incumprimento. Trata-se de ação cuja legitimidade ativa é da Comissão12 ou de um Estado Membro. Na prática, porém, a questão passa primeiro pela Comissão, que poderá tomar alguma iniciativa, se considerar relevante a matéria. Em caso contrário, dificilmente ela irá prosperar.

Paulo J. Canelas de Castro, analisando esse instituto, afirma que:

“Do juiz do Luxemburgo se espera que se não deixe seduzir pela tentação de uma superioridade que seria ilusória, porque não reconhecida e até potenciadora de reacções de isolamento e de rebeldia que poderiam pôr em causa o seu próprio fundamento de legitimidade. A este propósito poder-se-ia, aliás, relembrar a lição histórica de Weber, segundo a qual a legitimação se funda, em ‘doses’ variáveis, em três factores: a razão, a tradição e o carisma. Dir-se-á que mal vai a instituição jurisdicional comunitária se aqueles que a compõem julgam que é o terceiro factor que tem o maior peso.

Mas, do seu lado, os juízes nacionais também têm que fazer um esforço próprio. A colaboração supõe igualdade, ela é mesmo exigível da perspectiva dos juízes nacionais, mas a igualdade também é um bem passível de ser conquistado. Os juízes nacionais deveriam para tanto fazer um esforço próprio de compreensão (das dificuldades e razões) do seu interlocutor, aprofundando, em geral, o seu conhecimento de um direito comunitário que os particulares que perante si aparecem já de há muito sabem constituir uma dimensão fundamental do ordenamento jurídico em que se movem e, nomeadamente, atentando nos critérios ou requisitos do reenvio formulados na jurisprudência do TJCE e integrando-os efectivamente na sua prática processual dos reenvios prejudiciais.

Parece possível esperar que, se ambos souberem assumir estas responsabilidades, também o valioso patrimônio histórico já constituído pelo mecanismo do reenvio prejudicial, ainda mais se venha a enriquecer, o que, com certeza, não deixará de redundar no benefício dessa outra história de sucesso que o direito comunitário tem sido e, sobretudo, do Homem europeu, a sua primeira e última razão de ser”.13

O reenvio prejudicial é considerado como o mecanismo primordial para que o Direito Comunitário seja aplicado uniformemente, com o seu conseqüente fortalecimento, respeitadas a autonomia e independência dos juízes nacionais.

Nota _____________________________________________________________________

1 BALASSA, Bela. Theory of economic integration. London: George Allen & Unwin, 1961.

2 PAES, João da Motta. Mercosul: das negociações à implantação. In: PALMA, Maria João, ALMEIDA, Luís Duarte d’. Direito Comunitário. 2. ed. Lisboa: Fac. de Direito, 2000. p. 445.

3 CUNHA, Paulo de Pitta e. A união monetária e suas implicações. In: ____________. A União Européia. Coimbra: Fac. de Direito, 1994. p. 48.

4 PALMA, Maria João, ALMEIDA, Luís Duarte d’. Direito Comunitário. Lisboa: Fac. de Direito, 2000. p. 72.

5 Processo 61/65, Vaassen Gobbels, Col. 1966, p. 378 e como paradigma também o processo 138/80 Borker, Col. 1980, p. 1975.

6 Acórdão de 24 de maio de 1977, p. 107/76, Rec 1977, p. 957

7 Acórdão de 06 de outubro de 1982, p. 283/81, Rec 1982, p. 3415

8 MOTA DE CAMPOS, João, Direito Comunitário, Volume II, O ordenamento Jurídico, 4ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1994, p. 456 e sgs.

9 CARAMELO GOMES, José Luis,  O Juiz Nacional e o Direito Comunitário. Editora Almedina, Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – 2003, p. 156.

10 CARAMELO GOMES, José Luis, op. cit., p. 161

11 Fotofrost, acórdão de 22 de Outubro de 1987, 314/85, Rec 1987, p. 4199.

12 A Comissão exerce funções distintas. A primeira delas é a iniciativa legislativa, de ofício ou a pedido do Parlamento Europeu (art. 192 do Tratado) ou do Conselho (art. 208 do Tratado). A segunda é ser a “guardiã dos Tratados”, pois, violado o Direito Comunitário por um Estado membro, tem legitimidade ativa para propor ação por incumprimento (art. 226 do Tratado) se a violação partiu de outro órgão, pode propor recurso de anulação (art. 230) ou recurso por omissão (art. 232) ou, se a violação tiver partido de um particular, pode, em certos casos, até aplicar sanções. A terceira é gerir e executar as políticas da União e as relações comerciais internacionais, pois o Conselho delega à Comissão a execução das normas que adota, além de ter poderes para executar o orçamento comunitário e gerir as cláusulas de salvaguarda.

13 CASTRO, Paulo Jorge Canelas de. O Reenvio prejudicial: um mecanismo de integração através da cooperação de juízes. Revista Temas de Integração, Coimbra, p. 153.

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