Reflexão sobre o papel do transporte coletivo na vida das cidades

15 de julho de 2011

Lélis Marcos Teixeira Membro do Conselho Editorial, Presidente executivo da Fetranspor

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(Artigo originalmente publicado na edição 99, 10/2008)
 
 
Como cidadãos e seres humanos, sentimos a necessidade de fazer questionamentos para entendermos a sociedade em que vivemos, como e por que motivos ela funciona de determinada maneira, o que a História nos elucida sobre essas questões e como podemos alterar a realidade.
 
Segundo Douglass North, prêmio Nobel de Economia de 1993, o desenvolvimento econômico, social e político dos países ocorre em função do desempenho de suas instituições. Quanto mais sólidas estas, mais desenvolvidos aqueles, pois itens como previsibilidade jurídica e a existência de um Estado de Direito são de importância fundamental para o crescimento, em todos os aspectos, de uma Nação.
 
Analisemos o transporte no Brasil e, em especial, no estado do Rio de Janeiro, seu papel no desenvolvimento das cidades e nas vidas das pessoas, e tentemos entender o que está por trás desse serviço público. Trata-se de um serviço de caráter essencial, conforme reza a própria Constituição da República, em seu artigo 30, pois dele depende o ir e vir dos cidadãos. Operar transporte coletivo de passageiros é, portanto, garantir um direito fundamental do ser humano.
 
O crescimento de nossas cidades se deu de forma tão rápida quanto desordenada. Em 1950, éramos um país agrário, em processo tímido de industrialização, com população de 51 milhões de brasileiros, 64% deles sediados nos campos. Hoje, somos 189 milhões, e nossas cidades comportam 82% de toda a população. São 155 milhões de pessoas, demandando enorme quantidade de serviços, desde alimentação a educação e lazer. Para satisfazer a todas essas necessidades, esse grande contingente precisa se deslocar, de diversas formas, utilizando cada um o meio de transporte que considere mais útil e oportuno. Tal cenário levou a uma relação de 3,06 habitantes por automóvel em nossas metrópoles. Some-se a este dado aquele anterior, do crescimento desordenado, e o fato de contarmos com 37 aglomerações urbanas e 12 metrópoles, e teremos a configuração de um grave problema dos nossos dias: a (i)mobilidade urbana.
 
O Brasil está entre os países do mundo que contam com maior número de cidades com população igual ou superior a 1 milhão de habitantes. Temos duas megalópoles – segundo a ONU, cidades cuja população, em suas regiões metropolitanas, chega a 11 milhões de pessoas. O Rio já atinge esse patamar e São Paulo chega a 18 milhões. Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza, Brasília, Curitiba, Recife e Porto Alegre se enquadram no perfil de metrópoles e, além delas, temos três metrópoles regionais – Belém, Goiânia e a região de Campinas – com várias cidades conturbadas, formando grandes regiões metropolitanas.
 
Como se movem essas pessoas, nos verdadeiros formigueiros humanos que se tornam as áreas urbanas? Toda essa movimentação, esse progresso, esse acúmulo de atividades que fazem girar a economia dependem do trabalho de milhões de cidadãos economicamente ativos, que precisam se locomover para cumprir compromissos e satisfazer necessidades das mais variadas espécies. Que modelo de cidade precisamos ter para atender à tantas demandas?
 
Existem, basicamente, no mundo dois tipos de cidades. As do sistema americano, que privilegiam o transporte individual, e as que adotam o europeu, priorizando o coletivo em detrimento do individual. Cidades típicas do modelo europeu, como Paris e Londres, têm excelentes sistemas de transporte público.
 
Diferentemente de outros países da América Latina, como Argentina e Chile, o Brasil, como dissemos anteriormente, tem grandes cidades, que exigem maior mobilidade e formam a base industrial do país – nelas residem 60% da produção industrial bruta e concentram-se os grandes núcleos produtivos –, gerando a necessidade cada vez maior de sistemas de transporte que garantam uma boa qualidade de vida à população.
 
Hoje são feitas 170 milhões de viagens diárias nas cidades brasileiras com mais de 60 mil habitantes. São pessoas que vão trabalhar e voltam. As viagens não motorizadas são aquelas curtas, feitas a pé, ou de bicicleta, e representam 41% desse total. No transporte coletivo, os ônibus municipais já representam 21% e os metropolitanos 4,6%, atingindo um total de 25,6%. Metrô e trens têm ainda pequena participação na matriz do transporte, com 3,1%, enquanto o transporte individual ainda responde por 47%. São 46 milhões de viagens, que deslocam número proporcionalmente muito pequeno, em relação ao transporte público. A média do automóvel considerada nos estudos técnicos é de 1,8 pessoa por automóvel, a dos ônibus é de 40 a 50 por viagem, ou seja, um uso per capita das vias públicas muito menor. Ajustando o foco para o Estado do Rio de Janeiro, teremos um percentual de 46% das viagens em transporte coletivo (9,29 milhões) e 16% em transporte individual (3 milhões), ou seja, ainda temos a predominância do uso do transporte coletivo, ao contrário do que acontece em São Paulo, por exemplo. Isso explica, em parte, a diferença do trânsito nas duas capitais.
 
Todos esses fatos, que não percebemos em nosso dia-a-dia, causam impactos na rotina de cada um de nós, cidadãos. E cabe ao operador de transporte uma ingente responsabilidade no funcionamento dos espaços urbanos e na qualidade de vida das pessoas que neles vivem.
 
No Rio de Janeiro, a  Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor) representa 10 sindicatos patronais, a que são associadas 238 empresas, sistema que gera 95 mil empregos diretos. São profissionais que fazem circular diariamente uma frota de 18.310 ônibus, fornecendo o transporte a 133,9 milhões de passageiros por mês. Isso leva a uma rodagem mensal de 148 milhões de quilômetros e consumo de cerca de 50 milhões de óleo diesel.
 
Trabalho da Coppe/UFRJ, recentemente publicado pelo jornal “O Globo”, estimou que chega a R$ 12 bilhões o prejuízo anual com desperdício de combustível e tempo  gerado pelos congestionamentos, correspondendo a 10% do PIB. Trata-se de uma grande incoerência dos nossos tempos. De tudo que se produz neste estado, 10% são anulados e se evaporam nas retenções de tráfego, gerando emissão de poluentes que chegam, segundo a Universidade, a 550 mil toneladas anuais de carbono. O professor Max Cintra, da USP, calcula que, em São Paulo, os prejuízos atingem R$ 33 bilhões.
 
O CitiGroup, um dos maiores grupos financeiros do mundo, em estudo comparativo da competitividade dos países, chegou à conclusão de que o brasileiro perde 5% da sua produtividade, devido aos congestionamentos. Enquanto o tempo médio que perde no trânsito é de 2,6 horas, em países desenvolvidos da Europa e nos Estados Unidos, a média é de 1 hora.
 
Uma conta simples mostra que o cidadão que dispende uma hora e meia para ir, e igual tempo para voltar, no trajeto casa-trabalho-casa, em 35 anos de vida profissional, terá gasto 3 anos de sua vida retido no tráfego.
 
No Rio de Janeiro, temos a nosso favor o índice de utilização do transporte coletivo ser maior do que em São Paulo, por exemplo. A proporção é de 46% no Rio contra 33% na capital paulistana e sua região metropolitana. No uso do transporte individual, temos São Paulo com 32% de utilização, contra 20% no Rio. Os resultados são facilmente notados no trânsito das duas regiões. Não que o Rio de Janeiro tenha uma situação que possa se considerar muito boa, mas ainda podemos evitar que cheguemos ao patamar paulistano e também melhorar o que existe hoje – com medidas de priorização do transporte coletivo, de infraestrutura do transporte e de racionalização da oferta dos diferentes meios: trens, barcas, metrô e ônibus.
 
E aqui cabe importante reflexão: além dos custos da baixa velocidade média dos veículos, para que o cidadão comum usufrua da liberdade de ir e vir, existe, hoje, forte condicionamento econômico.
 
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), existem atualmente cerca de 35 milhões de brasileiros sem condições de acesso ao transporte, por incapacidade econômica. Desta forma, automaticamente, ficam essas pessoas restringidas em outras prerrogativas – buscar serviços como saúde, educação, cultura – e até imobilizadas no que tange ao trabalho, pois ficam limitadas ao entorno de suas moradias.
 
O setor de transporte coletivo por ônibus é pesadamente taxado com impostos e encargos, necessariamente repassados ao consumidor final, o que contribui para que o preço das passagens seja cerca de 35% mais caro. O transportador luta pela desoneração, como forma de baratear as passagens. Em cidades como Londres, Paris, Roma e muitas outras, o serviço de transporte conta com assunção parcial dos custos pelo setor governamental, a fim de garantir a qualidade aos meios de transporte coletivo ao mesmo tempo em que o torna acessível aos cidadãos das camadas mais pobres da população.
 
O segmento que opera o transporte neste estado tem consciência de todas essas questões e não pretende ficar passivo diante desse cenário. A Fetranspor e vários de seus sindicatos vêm apresentando propostas ao Poder concedente, conforme exemplos a seguir: o Setrerj, que reúne empresas de ônibus de Niterói, São Gonçalo e outros municípios daquela região, foi o autor de proposta que hoje encontra-se em execução, de corredor na Alameda São Boaventura; o sindicato de Nova Iguaçu analisa, junto com o Governo do Estado, a Via Light e suas alternativas para a priorização do transporte coletivo; o Rio Ônibus apresentou, recentemente, ao Poder Público local o projeto SIT/Rio (Sistema Integrado de Transporte), fruto do trabalho de grandes escritórios de arquitetura e urbanismo, que prevê rede integrada de transporte. A reestruturação do sistema de transporte em novo modelo, composto por linhas-tronco, alimentadas por linhas interligadas, com modernos terminais para integração e bilhetagem eletrônica, possibilitará a fácil integração intermodal e a integração ônibus-ônibus em prazos de tempo convencionados. Por meio de vias segregadas exclusivas para os ônibus, frota mais confortável e moderna, veículos articulados de maior capacidade, utilizando combustíveis limpos e com alto grau de acessibilidade para o usuário, o modelo proposto poderá levar mais passageiros em viagens menos longas. Nova identidade visual ajudará a identificação dos roteiros com mais facilidade, melhorando a qualidade de vida dos indivíduos e o funcionamento das cidades.
 
Um exemplo curioso do papel do transporte na história mostra a relação entre os meios utilizados, desde os cavalos romanos aos foguetes americanos. O Império Romano deixou marcas importantes na cultura, na organização do Direito e na sociedade de vários países. Para o funcionamento satisfatório desse Império, eram construídas estradas. Algumas vias, como a Ápia são famosas e existem até hoje. Como utilizavam carroças (bigas), puxadas por dois cavalos, as estradas romanas foram feitas para a largura habitual desses veículos, com um eixo de 1,45m. Com a dominação pelos romanos da região da Inglaterra, entre as marcas que imprimiram na sociedade dominada estavam as estradas.
 
A Inglaterra, por sua vez, à época da Revolução Industrial, criou suas primeiras locomotivas a vapor, testando-as nas estradas herdadas do período da dominação romana. Assim, as linhas férreas conservaram a largura das vias romanas. O domínio econômico do Império Inglês em todo o mundo tornou as ferrovias inglesas padrões de bitola. Na era da tecnologia espacial, satélites e foguetes construídos fora da Flórida, onde eram lançados, do Cabo Canaveral, tiveram de ser adaptados à velha bitola de 1,45m, pela necessidade de transporte pela ferrovia. Desta forma, os foguetes espaciais têm a mesma largura das estradas romanas, mostrando a influência do antigo meio de transporte na história da humanidade. Com toda a tecnologia, o avanço da ciência e do design, os cavalos romanos ainda marcam a ida do homem à lua.
 
Este é um fato pitoresco que serve bastante à nossa reflexão.
 
Voltando ao Brasil: poucas cidades brasileiras tiveram a possibilidade de ter um traçado planejado, que permitisse a organização de suas funções, como Brasília, Belo Horizonte e Goiânia. Há, pois, necessidade de buscar alternativas para suprir essa carência, e a melhor maneira de fazer isso hoje é através de redes integradas com os outros modais – trem, metrô, barcas. Já demos ao mundo o exemplo de Curitiba, citado em obra literária pelo próprio arquiteto Richard Rogers, autor do projeto do Centro Nacional de Arte e Cultura Georges Pompidou, na França.
 
Temos a convicção de que podemos oferecer outros modelos de rede de transporte integrada, com a utilização de moderna tecnologia de bilhetagem eletrônica e o concurso de técnicos brasileiros da mais alta estirpe profissional, com resultados extremamente positivos. Sobretudo, o setor de transporte público tem a visão de que, ao contribuir com o Poder Público por meio da oferta de propostas e projetos, concorrendo para aprimorar seus serviços, pode provocar reações em cadeia na vida das pessoas, mesmo quando estas não o percebem. Criar cidades mais funcionais, transportar o progresso e assegurar o Direito Constitucional de ir e vir dos cidadãos é a principal parte de todo o papel social que os transportadores vêm cumprindo na história do Planeta.
 

 
Lélis Marcos Teixeira
Presidente da Fetranspor e Rio Ônibus