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Reforma da previdência social

30 de junho de 2007

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É um tema inevitável ultimamente e sua crescente importância justifica a pletora de manifestações a respeito, embora nem todas com conhecimento de causa, como também é inevitável.

Tenho escrito com freqüência sobre previdência social e programas congêneres, bem como, naturalmente, sobre sua reforma. Na esperança de que minhas observações possam
ser úteis, reúno aqui as principais delas. Anima-me, sobretudo, a expectativa de que elas possam servir de subsídio para os estudos que devem estar sendo levados a efeito em função do Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC. Se as idéias e sugestões por mim apresentadas não tiverem o mérito intrínseco esperado, o registro delas pode ter alguma valia como eventual ponto de partida para debate das questões respectivas pelo Fórum Nacional da Previdência Social, ao lado das contribuições de outras fontes.

Sem oferecer aqui um rol objetivo de propostas, limito-me a indicar alguns pontos prioritários para um projeto de reforma, o qual decerto conterá proposições mais específicas
e mais completas. Em trabalho posterior, ainda a tempo de
ser eventualmente utilizado pelo Fórum, espero poder apresentar uma lista mais ampla de alterações da legislação previdenciária a meu ver também aconselháveis.

Nem todos acreditam no êxito imediato dos novos
estudos previstos. Existe até quem entenda que o projeto de reforma a ser elaborado terá o mesmo destino inglório da maioria dos documentos dessa natureza, que não saem do papel. Não é improvável, porém, em qualquer hipótese, os estudos efetuados decerto terão valor teórico, doutrinário. Espero, que, se for o
caso, o mesmo aconteça com minhas modestas considerações.

Setores correlatos

Parece oportuno começar pelo fato nem sempre levado na devida conta de que a previdência social está estreitamente ligada a outros setores da ordem socieconômica, dos quais, por isso, depende de várias formas.

Demografia

O primeiro deles é a demografia, mais importante para a previdência social do que para os programas correlatos. Embora nem sempre se dê a devida atenção a isso, a previdência social é uma modalidade de seguro, o seguro social, seu virtual sinônimo, e como tal se baseia em dados atuariais, por sua vez decorrentes em boa parte das condições demográficas, aí incluída a composição das famílias em constante e acentuada evolução.

Legislação trabalhista

A seguir vem a legislação trabalhista, tendo à frente a forte tendência das relações de trabalho no sentido da redução do número de empregos. Parece fora de dúvida que a principal falha programática de nossa previdência social está na gritante insuficiência de sua cobertura, que, apesar de discutíveis artifícios, não atinge metade da força de trabalho. É generalizado entre autoridades e especialistas o entendimento de que uma solução satisfatória só poderá ser encontrada com a participação da legislação trabalhista.

Economia

Outra falha grave é a exigüidade do valor dos benefícios previdenciários, bem caracterizada pela anomalia de dois terços deles terem valor igual aos do salário mínimo. Por isso,
o reajustamento deste é sempre um drama para a previdência social, sem falar nos aposentados e pensionistas. Repetindo,
trata-se, como sabemos, de seguro social e, por isso, o valor
dos benefícios corresponde ao dos salários. Assim, menos que previdenciário ou trabalhista, este é um problema ligado à econo-mia como um todo e que só poderá ser resolvido mediante me-
lhoria das condições econômicas em geral, aí incluídos os salários.

Fala-se muito, hoje, em retomada do crescimento econômico, e o próprio PAC pretende ser um reforço dele. Na medida em que esse objetivo seja alcançado, pode-se esperar não só que os salários aumentem, mas, sobretudo, que diminua o peso do salário mínimo na folha de salários da força de trabalho. O Governo parece ter vislumbrado essa possibilidade, pois acredita até que o desenvolvimento econômico resolverá a chamada crise da previdência social. Mais uma vez, especialistas discordam de autoridades, tendo em vista, acertadamente, que as dificuldades previdenciárias não são apenas de natureza econômica.

Aspectos teóricos

De um ponto de vista mais teórico, a previdência social é um programa de proteção social sob a forma de seguro, o seguro social, seu virtual sinônimo, sendo por muitos considerada com acerto o mais eficiente meio de cuidar do futuro que a humanidade já encontrou em termos coletivos, isto é, sociais, como está em sua denominação.

Seguro social e atuária

Em razão de sua natureza e suas características, ela tem de obedecer a adequados critérios atuariais, ou seja, à chamada matemática do seguro. Daí a impropriedade de lhe ser atribuída a responsabilidade por programas que, embora também de proteção social, não têm natureza securitária, independendo, para seu custeio, das contribuições dos segurados e suas empresas inerentes à previdência social.

No momento em que mais de uma vez se cogita a reforma desta, é indispensável atentar para essa diferença essencial, porque muitas de suas dificuldades decorrem da confusão a esse respeito, feita até mesmo pela legislação pertinente e que é preciso corrigir. Novamente, para ficar bem claro,
os programas assistenciais podem ter seu mérito, porém não são de responsabilidade da previdência social. É bem provável que seja esta uma ocasião oportuna para se procurar corrigir o que está errado nesse particular.

Já é mais do que tempo para uma revisão atuarial da previdência social, não só para deixar bem clara  sua natureza securitária, que não se confunde com a da assistência social, mas também para verificar se permanecem atuais seus valores de benefícios e receitas, bem como as respectivas espécies.

Quanto à receita, o momento não poderia ser mais
oportuno, pois o Governo, entre outras providências raciona-lizadoras de cunho contábil, acaba de procurar regularizar, em boa parte, mediante indenização à previdência social, o destino do valor das renúncias fiscais que a oneravam, embora o verdadeiro renunciante seja o Tesouro. Essa correta medida atinge, inclusive, a famigerada isenção da contri-buição previdenciária patronal outorgada pela Constituição
a entidades beneficentes de assistência social, mas concedida também, irregularmente, a entidades que não têm essa natureza.

Seria boa ocasião, igualmente, para se cogitar de eliminar do quadro de benefícios as aposentadorias por tempo de contribuição e especial, medida alvitrada a seguir. Quando isso acontecer, talvez por imposição da realidade, terá de ser feita revisão atuarial.

Aposentadoria

Sem falar, então, nos programas assistenciais, basicamente, previdência social significa aposentadoria, no sentido de poder permanecer em casa (aposentos) sem exercer qualquer atividade econômica. Salvo engano, esse termo é peculiar a nossa língua. Nos demais países, em geral, a denominação está ligada simplesmente a afastamento da atividade.

Como benefício previdenciário, e é assim que ela existe hoje, a bem dizer por toda parte, é um pagamento a que o trabalhador faz jus quando deixa de trabalhar, custeado mediante contribuições dele e de sua empresa, em condições e valores estabelecidos por legislação própria.

Em inglória exceção no mundo previdenciário, onde normalmente só existe aposentadoria por idade,  sabemos
que, no Brasil, existem quatro tipos dela: por idade, por invalidez, por tempo de contribuição e especial. Duas são, sem dúvida, desnecessárias e até contraproducentes.

Em termos previdenciários, a idade é a única contingência inelutável da vida humana. Nem todos envelhecem, é claro, porém só deixa de envelhecer quem morre antes de atingir os limites etários previstos. Tempo de contribuição é um critério ultrapassado e sem razão de ser. Invalidez é uma incapacidade total cada vez menos freqüente. E a aposentadoria especial é a mais descabida de todas.

A aposentadoria por idade é a mais importante delas; na verdade, o mais importante de todos os benefícios da previdência social. As condições para direito a ela (basicamente idade e tempo de contribuição) variam de uns países para outros, mas parece haver tendência no sentido de, no mínimo,  65 anos de idade para o homem e 60 para a mulher, com tendência também para uniformização desse limite mínimo.

A aposentadoria por invalidez tem sua razão de ser, mas inexiste também em muitos países. Conheço-a pouco e por isso deixo de me situar no caso, limitando-me a encarecer para ela a atenção dos estudos previstos; mas, para não deixar passar em claro, cito, a propósito, o artigo “O cálculo da aposentadoria por invalidez – Uma interpretação razoável”, de Carlos Alberto Pereira de Castro (“Revista de Previdência Social”, nº 313, dez 2006).

A aposentadoria por tempo de contribuição é, sem dúvida, um anacronismo e um contra-senso. Tenho bons argumentos contra ela, porém acredito poder limitar-me ao capítulo 14 do livro “Reforma da Previdência”, que focalizo mais adiante. Aí está dito com propriedade e segurança tudo que é preciso dizer contra esse esdrúxulo benefício previdenciário.

Com certa surpresa verifico que o autor não verbera com a mesma veemência outro benefício que também é preciso eliminar: a inútil e prejudicial aposentadoria especial. Aqui me reporto a vários trabalhos meus nesse sentido, publicados, principalmente, na “Revista de Previdência Social”. Como no caso anterior, fica o presente registro, para que ela não escape à aperfeiçoadora atenção dos responsáveis pelos estudos do PAC.

Auxílio-doença

Outro importante benefício previdenciário é o auxílio-doença, que, mais adequadamente, deveria chamar-se auxílio-incapacidade, porque, na verdade, é de incapacidade para o trabalho que se trata. Conforme sabemos, esta pode ocorrer sem aquela, ou vice-versa, embora a maioria dos casos seja mesmo de doença. Em seu livro adiante citado, Fábio Giambiagi examina lúcida e detidamente a questão da perícia médica, da qual depende o direito ao benefício.

Crise futura

É corrente a idéia de que a previdência social enfrenta uma crise cada vez mais grave e pode chegar de uma hora para outra a uma situação de conseqüências imprevisíveis. Não é bem assim. O conjunto seguridade social, que, como sabemos, também inclui assistência médica e assistência social, está realmente em situação preocupante.

Entretanto, deixando de lado esses dois programas, é
preciso reconhecer, para maior facilidade na busca de
soluções, que as dificuldades da previdência social, a rigor, não são só suas, porém, decorrem, principalmente, de lhe serem atribuídos encargos que não são de sua responsabilidade. Isso a curto prazo, como se receia.

Com mais tempo, ela também encontrará pela frente obstáculos difíceis de transpor, inerentes a sua própria natureza e características. Esse ponto é tão importante que, a meu ver, não deverá deixar de merecer atenção prioritária entre os estudos voltados para a reforma prevista no PAC.

Se vier a acontecer com este projeto o que com freqüência ocorre com outros, o mundo não vai acabar. As preocupações se justificam e existem razões para previsões pessimistas, porém ainda não será o fim. O pior de tudo será a perda de mais uma oportunidade de resolver, pelo menos, em boa parte, um dos mais sérios problemas nacionais, como de muitos outros países. A solução não é fácil, nem poderia ser, mas vai ficar cada vez mais distante à medida que deixar de ser buscada.

Na hipótese negativa de destino inglório, o projeto do PAC servirá quando nada de valioso acervo de conhecimentos e idéias, ajudando a aceitar as modificações que se impõem.

Um livro oportuno

Por feliz coincidência, no momento exato em que o Governo instaura um grupo de trabalho de alto nível incumbido de estudar bases para nova reforma da previdência social, o economista Fábio Giambiagi publica um lúcido livro precisamente com esse título: “Reforma da Previdência” (Rio, Elsevier/Campus, 2007).

As duas epígrafes do título sugerem outras tantas idéias básicas da obra. “O encontro marcado” decerto se refere às conseqüências negativas do continuado adiamento de alterações indispensáveis, embora o autor também aceite que isso não acarretará o fim do mundo.

A outra é mais longa e mais clara: “A difícil escolha entre nossos pais e nossos filhos”. No texto, está patente que ele considera mais importante cuidar dos jovens que dos idosos, ao contrário do que faz nosso sistema de proteção social. Entretanto, para não deixar dúvida quanto a seu apreço pelos idosos, dedica o livro ao avô.

São 228 páginas de texto singelo, objetivo, nada economês, rico manancial de informações, análises, dados estatísticos, comentários, e, naturalmente, sugestões. Seria difícil e ina-dequado procurar apresentar aqui um resumo de seu valioso conteúdo. Parece suficiente e preferível registrar que, além de seu tema básico, indicado pelo título e pelas epígrafes, ele trata amplamente de outros, como programas assistenciais, salário mínimo e benefício mínimo, reajustamento dos benefícios.

Sem contar lembretes, por vezes, implícitos de medidas necessárias ou convenientes, o livro tem duas sugestões que dependem de alteração de dispositivos constitucionais: instituição de um benefício mínimo, destinado a substituir, para esse fim, o salário mínimo; e redução dos auxílios assistenciais a 50% do benefício. Ambas as sugestões estão fartamente justificadas.

Não acompanho Giambiagi quanto ao engessamento de um novo valor no texto constitucional, com as conhecidas dificuldades para sua eventual alteração. Aceito a fixação de um benefício básico, porém preferiria que a Constituição determinasse sua criação por lei; e não consigo afastar a idéia alternativa de um percentual do salário mínimo, decerto mais fácil de conseguir. Quanto menos previdência social na Constituição, tanto melhor.

No capítulo final, ganham relevo três princípios básicos que, a seu ver, pecisam estar presentes na reforma: o benefício deve ser proporcional às contribuições; quem contribui deve receber mais do que quem não contribui; o segurado deve escolher sua previdência social, no sentido das condições dela.

“Reforma da Previdência” contém muito mais do que está dito aqui. Comporta restrições, naturalmente; o próprio autor declara, em mais de uma passagem, que não pretende ser dono da verdade; e também registrei uma ou outra discordância. Seja como for, é um livro útil, valioso e, sobretudo, oportuno.

Conclusão

Este modesto trabalho não requer e talvez não comporte conclusões, propriamente, além do que está expresso ou
implícito em seu texto. Principalmente, está consignado aí, e não custa repetir, que a previdência social é considerada por quem sabe das coisas o mais eficiente meio que a humanidade já encontrou de cuidar do futuro profissional das pessoas.

Sabemos que a população economicamente ativa, a PEA, à qual ela se destina como forma de seguro, é a base econômica da sociedade, sustentáculo natural de seu lado social; e a previdência social, como virtual corolário da legislação trabalhista, é sua base pessoal ao viabilizar a continuidade do elemento essencial que os salários e outras formas de rendimento constituem.

Dito de outra maneira, a previdência social é indispensável fator de equilíbrio da ordem socioeconômica. Na medida em que ela funcione a contento, segundo sua natureza e características, os demais programas sociais serão menos necessários, perdendo importância.

Se o projeto a cargo do Fórum Nacional da Previdência Social conseguir incorporar estas realidades básicas, teremos dado relevante passo à frente.