Representatividade e Eleições

7 de junho de 2024

Compartilhe:

A paridade de gênero por meio da reserva de vagas no Parlamento

A baixa representatividade feminina na política é um tema debatido há  anos em diversas partes do mundo, especialmente a partir da segunda metade do século XX. No Brasil, o cenário não é diferente, mas a questão ganhou destaque nas últimas três décadas, refletindo, em especial, a desproporção entre o número de cadeiras ocupadas no Congresso Nacional e a quantidade de mulheres aptas a votar. Diante dessa histórica disparidade, o legislador inseriu disposição na Lei 9.504/97, com o objetivo de que pelo menos 30% das candidaturas de cada partido aos cargos proporcionais fossem preenchidas por mulheres.  

Após décadas de implementação da reserva de candidaturas e da realização de várias eleições, a presença feminina não mudou significativamente. O relatório “Mapa das Mulheres na Política 2020”, produzido pela Organização das Nações Unidas, mostra que o Brasil ocupa a 140a posição mundial e, na América Latina, está à frente apenas de Belize e Haiti em termos de representação feminina.  

Os dados apresentados evidenciam que o Brasil segue enfrentando desafios significativos para alterar a realidade da sub-representação feminina, particularmente no que se refere aos cargos eletivos. Esse cenário de desigualdade tem estimulado a atuação proativa de coletivos femininos e de parlamentares na busca por novas medidas legislativas, bem como por intervenções no âmbito jurídico-eleitoral, que incluem especialmente ações que imputam a ocorrência de fraude no cumprimento das cotas de candidaturas femininas.  

No que se refere especificamente às medidas legislativas implementadas ao longo dos anos com o objetivo de fomentar a participação feminina nas agremiações partidárias e nos processos eleitorais (como a reserva de percentual do Fundo Partidário e da propaganda partidária para o incentivo à participação das mulheres), destaca-se a recente Emenda Constitucional 111/21. Essa alteração, que permanecerá em vigor até o ano de 2030, estabeleceu que os votos atribuídos a candidatas mulheres serão contabilizados em dobro para efeitos de cálculo na distribuição dos recursos dos fundos partidário e eleitoral nas eleições.  

No entanto, os avanços mais expressivos advieram do Poder Judiciário, especialmente em virtude do crescimento do número de Ações de Investigação Judicial Eleitoral e de Ações de Impugnação de Mandato Eletivo nas quais se questionam fraudes cometidas pelos partidos políticos ao descumprirem, de forma intencional, a determinação legal de reservar percentual específico das candidaturas para cada gênero. Nos últimos anos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) consolidou o entendimento de que a violação dessa normativa pode resultar na cassação do registro ou diploma de todos os candidatos e candidatas da chapa proporcional, o que gera reflexos específicos, principalmente aos candidatos eleitos.  

Além disso, outras mudanças decorreram de consultas e decisões tanto do Tribunal Superior Eleitoral (a exemplo dos autos no 0600252-18.2018.6.00.0000) quanto do Supremo Tribunal Federal (ADI 5.617). Essas instâncias, alinhadas à determinação de reserva de candidaturas, estabeleceram que os recursos públicos e o tempo de propaganda eleitoral no rádio e na televisão devem ser distribuídos às candidaturas de mulheres de maneira proporcional ao percentual de candidatas.  

As medidas citadas acima contribuíram para o incremento no número de mulheres eleitas para o Congresso Nacional nas eleições de 2022. Entretanto, apesar desse avanço, os índices de representação feminina ainda são consideravelmente baixos quando comparados com o número de eleitoras, refletindo a persistente dificuldade em eliminar o déficit de representatividade. De acordo com os dados referentes ao último pleito eleitoral, as mulheres compõem aproximadamente 18% da Câmara dos Deputados. No Senado Federal, das 81 cadeiras disponíveis, apenas 15 eram ocupadas por mulheres em 2023.  

Dentro do contexto mencionado, embora as mudanças mais significativas sejam recentes e possam gerar impactos positivos em futuras eleições, a realidade brasileira mostra uma certa resistência, especialmente no núcleo político, em adotar a estratégia que se mostrou mais eficaz em outros países para aumentar a representatividade feminina: a reserva de vagas para mulheres no Poder Legislativo.  

Este modelo, apesar de não contar com ampla inserção em muitos países, é visto como mecanismo eficiente e que contribui significativamente para a redução da  sub-representação das mulheres na política. Um exemplo vem de Ruanda, cuja Constituição de 2003 determina a reserva de 30% dos assentos, o que resultou no aumento da representatividade das mulheres. Nesse contexto, dados recentes apontam o  referido país com o maior percentual feminino no parlamento, ocupando 61,3% dos assentos na Câmara dos Deputados e 37,4% no Senado.1 2

Paquistão e Bangladesh também são exemplos de países que reservam vagas no parlamento exclusivamente para mulheres. No caso do Paquistão, a implementação da política afirmativa teve início em 1973, quando 10 assentos foram destinados exclusivamente a mulheres. Esse número aumentou progressivamente até que, em 2002, foram estabelecidos 17% das vagas para o gênero feminino. Em Bangladesh, a história também é similar, com a primeira reserva de vagas ocorrendo em 1972. Desde então, o número aumentou ao longo das décadas, e, atualmente, das 350 vagas no parlamento, 50 são reservadas exclusivamente para mulheres.3 

Apesar da reserva de vagas, tais países ainda enfrentam desafios na representatividade das mulheres, o que evidencia a existência de outro modelo, amplamente adotado em diversos países e que tem como base o sistema de cotas em chapas proporcionais com listas fechadas, que também tem contribuído significativamente para a ampliação da participação feminina em cargos eletivos. Nesse contexto, a Argentina destaca-se como pioneira na América Latina, sendo que dados recentes demonstram que as mulheres ocupam 44,5% das cadeiras. 4 

Na Europa, o principal exemplo é encontrado na Espanha, que regulamentou essa questão por meio da Ley de Igualdad (LO 3/2007), que estabelece diretrizes obrigatórias para a inclusão de mulheres em listas eleitorais, as quais devem ser compostas por uma representação mínima de 40% para cada gênero nas eleições  proporcionais. Portugal também adotou estrutura similar por meio da Lei da Paridade, a  qual passou por recente alteração, de modo a impor a possível rejeição da lista caso  algum partido não tenha cumprido o requisito de 40% de candidaturas em ordem  alternada por gênero.5 

Apesar de o cenário destacado demonstrar a essencialidade da reserva de vagas ou de políticas afirmativas específicas para a redução do déficit de representatividade, os legisladores brasileiros ainda relutam em implementar propostas similares em tramitação no Congresso Nacional. O exemplo mais notável advém da proposta em andamento que visa sistematizar a legislação eleitoral em um novo Código Eleitoral (PLP 112/2021), o qual foi aprovado na Câmara dos Deputados com pequenos avanços na parte preliminar, estabelecendo como princípio a igualdade na representação política (art. 2o, inc. XI), além de determinar a atuação ativa do Estado para garantir às  mulheres igualdade de oportunidades no processo eleitoral (art. 4o).  

No entanto, além de não enfrentar especificamente a questão da reserva de vagas para mulheres no Poder Legislativo ou outro modelo mais efetivo, o projeto ainda pode sofrer retrocessos na presente temática, pois o relatório apresentado no Senado Federal indica mudanças que, caso aprovadas, permitirão que os partidos não  preencham as vagas destinadas às candidaturas femininas, de modo que uma  agremiação poderia lançar apenas 70% de candidatos homens, sem preencher as vagas  restantes que seriam destinadas às mulheres. Além disso, em resposta à atuação do  Tribunal Superior Eleitoral, o relatório indica a inclusão de artigo com o objetivo de  afastar sanções caso o partido fraude o preenchimento das vagas com candidaturas  fictícias.  

O quadro atual da representatividade feminina no Brasil reclama urgentes medidas de todos os Poderes constituídos e da sociedade organizada, a fim de que nosso país se alinhe aos avanços sociais que se esperam das sociedades modernas e, assim, nos retire da desconfortável posição de sermos uma das nações mais atrasadas do mundo quando se fala em participação política feminina.

REFERÊNCIAS________________________________

Rwanda shows that it takes more than seats in Parliament to liberate women. Disponível em: <https:// 1 www.opendemocracy.net/en/5050/rwanda-women-in-parliament-employment-culture-empowerment/>  

Women representation. Disponível em: <https://www.parliament.gov.rw/women-representation> 2 

 Women’s Reservation Bill: Where else have seats been reserved for women? Disponível em: <https:// 3 www.business-standard.com/india-news/women-s-reservation-bill-where-else-have-seats-been-reserved for-women-123091900338_1.html>  

 Cuántas mujeres hay en los tres poderes. Disponível em: <https://www.pagina12.com.ar/528853- 4 cuantas-mujeres-hay-en-los-tres-poderes>.

Mulheres e Igualdade na Europa e em Portugal: paridade e desigualdade salarial. Disponível em: 5 <https://plataformamulheres.org.pt/mulheres-e-igualdade-na-europa-e-em-portugal-paridade-edesigualdade-salarial/>. 

Conteúdo relacionado: