Educação transformadora para impulsionar meninas e mulheres

12 de março de 2024

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Ministra Edilene Lôbo durante lançamento do livro “Direitos Fundamentais & Inteligência Artificial”, escrito em coautoria com Núbia Franco de Oliveira

Primeira mulher negra da história a integrar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Ministra Edilene Lôbo compõe o colegiado enquanto Substituta, na classe de juristas. Produto de uma construção coletiva, com fortes lembranças e agradecimentos aos professores e professoras que passaram por sua vida, Edilene Lôbo acaba de lançar um projeto que objetiva a aceleração de potências femininas negras. O projeto se desenvolve preferencialmente nas favelas, conforme adiantou à Revista, com o objetivo de trabalhar num primeiro momento com a  comunicação para influenciar e com o Direito Eleitoral antidiscriminatório, para despertar o interesse pela participação e a defesa da democracia.

Edilene Lôbo é Doutora em Direito Processual Civil pela PUC de Minas Gerais, mestre em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais e especialista em Processo Penal pela Universidad Castilla La Mancha (Espanha), com estágio pós-doutoral na Universidade de Sevilha, na Espanha. Também é professora convidada da PUC-Minas e da Universidade de Sorbonne, na França.

Desde sua histórica posse no TSE, em agosto, a magistrada conta que encontrou as mãos estendidas a ela na Corte Eleitoral, onde pode ser que atue nas eleições municipais deste ano. “Uma chama não perde nada quando acende outra”, cita a Ministra em referência a um provérbio africano presente no livro “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves. 

De sua posse para cá, lançou o livro “Direitos Fundamentais & Inteligência Artificial”, escrito em coautoria com Núbia Franco de Oliveira, com reflexões sobre os impactos das decisões automatizadas e a necessária proteção de dados pessoais. As declarações que se seguem são parte de entrevista com a Ministra, que gentilmente recebeu a Revista JC no gabinete do TSE para uma conversa. Confira os melhores momentos:

Trajetória – “A minha história de vida é como a de muitas meninas e mulheres negras no Brasil. Sou do extremo Norte do Estado de Minas Gerais, próximo da divisa com a Bahia, onde vivi até os 13 anos aproximadamente. Sou a décima-sétima filha de uma família grande, com 20 filhos – sem contar os irmãos afetivos. Na minha região, que ainda é pobre, as pessoas têm a tradição de acolher. A família era orientada pela doçura, candura e exemplo de dedicação da minha mãe. Era importante compartilhar e cuidar. 

Mudamos para a região metropolitana de Belo Horizonte, em Betim, por uma necessidade de sobrevivência, para trabalhar. Cheguei pré-adolescente, e ali comecei a trabalhar num supermercado, aos 14 anos. Na sala de aula, conheci muitas mulheres espetaculares, eram professoras do ensino médio na rede pública que me inspiraram, me estimularam, me mostraram que era preciso trilhar um caminho pensando em ser uma pessoa melhor. Foi neste período que comecei a participar das atividades políticas da escola e da minha comunidade. Era o tempo que antecedeu a Constituição. Participei dos comitês pró-Constituinte nos bairros e também nos sindicatos e nas igrejas, já percebendo que era essencial falarmos de direitos para as pessoas que mais precisam de direitos, que são as mais pobres – grande parte desse país.”

Formação pessoal – “Sempre tive em mente que eu tinha que estudar. A possibilidade de melhorar a minha vida e da minha família, humilde e com esse número grande de filhos, era estudar. Amava os livros, aprendi a ler e escrever muito cedo e desde muito menina tinha vontade de seguir por esse rumo. Continuo achando que, se tem uma salvação para a humanidade, principalmente para a transformação na vida de meninas e mulheres negras, é a educação pública de boa qualidade com acesso livre. Falar de educação de qualidade não significa apenas termos numéricos, com mais prédios e mais livros, por exemplo. Temos que ter muitas escolas abertas para as pessoas, principalmente para as pobres, com professoras e professores valorizados em todos os aspectos. Desde remuneração decente até o reconhecimento de sua contribuição para um mundo melhor. Tem que ser uma educação transformadora, que não ofereça obstáculos justamente a quem mais precisa de estímulo para entrar, permanecer e se desenvolver.” 

Magistério – “Meu sonho sempre foi o de ser professora. Saí do Ensino Médio e fui para a Faculdade de Direito, onde sou atualmente Professora do programa de Doutorado. À época, a maioria dos professores era de homens. Negras, então, esquece. Não existia naquele meu tempo ali. Ainda hoje, como se vê na pós-graduação pelo Brasil, não é comum professoras negras no mestrado e no doutorado das universidades. E essa ilustração é importante. Porque além de revelar a diversidade brasileira no ambiente acadêmico, oportuniza a ilustração para meninas e mulheres negras que almejam entrar nesses ambientes. Algo fundamental, também, é o fortalecimento psicológico da menina e da mulher negra. Tanto para entrar, como para permanecer nos espaços decisórios em geral. Tive um grande professor que me dizia “você dá conta, você é capaz”. Em geral, a gente escuta o contrário, que tem que se limitar à sua insignificância. Nem sempre é dito, mas o recado está ali. (…)

Esses espaços elitizados são a fotografia que precisa ser modificada, ainda mais quando falamos das escolas públicas. Quando falamos no Ensino Superior, a escola pública brasileira tem universidades como referência no mundo, mas nós [mulheres negras] não estamos no topo. Até temos bastante crianças negras matriculadas na base do ensino fundamental, mas começamos a desaparecer ao subir os degraus da formação acadêmica.”

Espaço decisório – “A maioria da população brasileira é de mulheres negras, mas nós não estamos representadas na proporção do quantas somos na sociedade. Não estamos em quantidade nos espaços decisórios. (…) Quando falamos de mulheres negras, a maioria arrasadora está nos guetos, está nas periferias, nos piores empregos e com os menores salários. Os números não mentem e dão a fotografia da realidade brasileira: as mulheres negras são cerca de 28% da população, segundo o IBGE; mas esse número não está refletido nos espaços decisórios.”

Onde estão as mulheres negras? – “Os últimos dados do CNJ indicam que mulheres negras são minoria no Judiciário. É algo que se repete no Ministério Público, nos parlamentos, partindo da Câmara Federal até as câmaras municipais, que agora se preparam para as eleições. Não temos mulheres negras representadas adequadamente nesses espaços decisórios. O mundo privado é obrigado pela legislação brasileira a respeitar a diversidade, mas quando olhamos para as corporações, nas suas direções não tem muitas mulheres, que dirá mulheres negras.”

Incentivo à educação – “A educação é a porta de entrada de meninas e mulheres negras para vislumbrar um horizonte, uma possibilidade para sair das estatísticas que até agora foram colocadas. Veja que mais de 60% das empregadas domésticas são meninas e mulheres negras. O trabalho doméstico é importante e precisa contar com pessoas que o façam, mas não é remunerado adequadamente e em geral é um trabalho que é destinado às meninas e mulheres negras. São as piores condições de trabalho e as piores remunerações. Estamos falando de uma realidade desigual que precisa ser superada.”

Ação urgente – “É preciso investir fortemente na educação de qualidade em quantidade e com condições de ser fruída por meninas e mulheres. Além de pessoas preparadas, é preciso ter estrutura que acolha, que dê condições de alimentação, apoio psicológico e pedagógico, que faça acompanhamento também das famílias. Há famílias que não têm condições de manter as meninas na escola porque elas têm que trabalhar para  ajudar no sustento da casa. Não basta ter muitas unidades educacionais sem enxergar essa realidade.”

Mulher e política – “Sou produto de uma coletividade pobre, que teve que trabalhar muito para chegar aqui. Não cheguei sozinha, fui rompendo as barreiras com o apoio e esforço de pessoas no meu entorno que diziam “vai, nós estamos com você, a gente vai te ajudar, você é capaz”. São amigos e amigas, as minhas professoras, as mulheres tão presentes na minha vida desde sempre. (…) A colocação da mulher, marcadamente da mulher negra, em subcondições é construção histórica. Estamos falando da estruturação de um sistema político de opressão da mulher e das pessoas negras. Se nós tivéssemos condição de nos colocarmos na cena política em igualdade, certamente a realidade brasileira seria outra. Não há nada que nos impede de ocupar esses espaços, a não ser as barreiras construídas com os vários preconceitos que enfrentamos todos os dias.”

No TSE – “Vamos ter eleições municipais presididas por uma mulher, a Ministra mineira Cármen Lúcia. Quem participou das audiências públicas das resoluções, preparando as próximas eleições, já sabem tudo o que estamos discutindo, trabalhando e fazendo aqui. Não duvidem que a Ministra vai atuar com vigor, mas também com serenidade, e vai fazer com que essa máquina, que também é hipercomplexa, funcione para proteger a cidadania. Teremos centenas de milhares de candidaturas, mas a Justiça Eleitoral está preparada para enfrentar a fraude à cota de gênero, por exemplo, para discutir financiamento das candidaturas negras, para enfrentar o assunto de inteligência artificial aplicável à propaganda eleitoral etc.”

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