O debate da equidade racial e de gênero na Justiça

6 de setembro de 2023

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A partir da esquerda, a Juíza Federal Adriana Cruz, a Juíza de Direito Karen Luise e a Ministra Edilene Lôbo

Quem chegou ao 9o andar do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) depois das 18 horas do dia 8 de agosto já não conseguia ver com detalhes o que acontecia no espaço principal do Gabinete do Presidente, Ministro Alexandre de Moraes. Comumente destinada às cerimônias de posse dos ministros substitutos, a sala estava lotada de magistrados, advogados e servidores do Tribunal. Uma centena de pessoas estiveram reunidas ali para presenciar um evento histórico: a posse de Edilene Lôbo, primeira mulher negra a se tornar ministra do TSE.

Mineira de Taiobeiras, município da Região Norte do estado, Edilene Lôbo tem longa experiência na advocacia. É doutora em Direito Processual Civil pela PUC de Minas Gerais, mestre em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais e especialista em Processo Penal pela Universidad Castilla La Mancha, na Espanha.

Edilene Lôbo é também professora convidada da Universidade de Sorbonne, na França, onde leciona sobre democracia, direitos políticos, eleições e milícias digitais na América Latina. Estudiosa do Direito Administrativo e Eleitoral, ela assume a cadeira de integrante substituta da Corte com a consciência de que sua chegada ao TSE pode servir de inspiração para mais mulheres ocuparem os espaços de poder. 

Em 91 anos de história, 11 mulheres integraram o Plenário do TSE como efetivas ou substitutas. Edilene Lôbo é apenas a terceira mulher a fazer parte do tribunal pela classe dos juristas. “É um trabalho duplo: contribuir com a função jurisdicional, mas inspirar meninas e mulheres que, como eu, possam ocupar esses espaços públicos”, afirmou a ministra após a posse. A diversidade de cores, de gêneros e até mesmo de idades se fez presente e chamou a atenção dos que estavam na cerimônia. “Bonito de ver”, comentou uma funcionária do Tribunal sobre o tamanho prestígio daquela cerimônia. 

“Todos conhecemos e sabemos da competência, da inteligência e do trabalho realizado pela Ministra Edilene Lôbo, mas, além disso, hoje ela se torna um símbolo de respeito à diversidade, à mulher, à mulher negra. Seja muito bem-vinda ao Tribunal Superior Eleitoral. Tenho certeza de que quem ganhou muito foi esta Corte da Democracia”, declarou o presidente do Tribunal, Ministro Alexandre de Moraes.

Em entrevista ao jornal Estado de Minas, publicada um dia após a posse, a ministra refletiu sobre sua trajetória e o simbolismo de sua chegada. Além disso, fez um chamamento para que os poderes públicos, especialmente o Congresso Nacional, atuem “para corrigir as injustiças históricas, garantindo espaços para o povo negro”.

“O Brasil precisa ter regras explícitas para que haja proporção entre gênero e raça na ocupação dos espaços públicos”, afirmou ao jornal. 

Exceções à regra – De forma geral, a chegada de mulheres à cúpula do sistema de Justiça é rara. Dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), apenas duas são mulheres: Rosa Weber e Cármen Lúcia. Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) conta com seis mulheres, do total de 33 ministros em sua composição. 

O “teto de vidro” que barra a ascensão não é só para o gênero, mas também para a raça. O que era tido como invisível ficou nítido a partir dos dados levantados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2021, durante a gestão do Ministro Luiz Fux. “A falta de informações sobre raça/cor de magistrados(as), servidores(as) e estagiários(as) nos tribunais brasileiros foi tão significativa que se constituiu em um dos maiores achados de pesquisa”, aponta o relatório “Negros e negras no Poder Judiciário”.

A pesquisa mostrou o baixo percentual de magistrados negros e negras no País: entre 2013 e 2015, era de 12%; entre 2016 e 2018, subiu para 20%; e entre 2019 e 2020, aumentou para 21%. O relatório pondera, no entanto, que a metodologia de pesquisa utilizada foi alterada com o passar dos anos, deixando de ser baseada por adesão e autodeclaração para apuração dos registros funcionais. 

Pacto nacional – Tudo isso impacta nos percentuais e motivou nova pesquisa, que vai abordar também os impactos da implantação da política de cotas raciais no Poder Judiciário, instituída pela Resolução no 203/2015 do CNJ. A divulgação desses dados deve acontecer ainda em 2023, durante um seminário sobre questões raciais.

Outra ação do CNJ em prol da equidade foi o lançamento do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, em 2022, cujo objetivo é promover a adoção de programas e ações a serem desenvolvidas nos segmentos da Justiça para corrigir as desigualdades raciais por meio de medidas compensatórias e reparatórias.

Essa e outras iniciativas são passos importantes em busca da promoção da diversidade e da equidade racial, explicou Karen Luise, Juíza Auxiliar da Presidência do CNJ e supervisora do programa Equidade Racial. “Todos os tribunais do Brasil assinaram o pacto de equidade racial, o que representa que todos têm um compromisso de promover algumas políticas de equidade racial, de capacitação de magistrados, de aperfeiçoamento de bancos de dados para que a gente saiba quem são os juízes negros, quem são os juízes brancos, quem são os servidores, quem são estagiários”, disse. 

“Os dados são importantes porque toda a movimentação da magistratura negra acontece a partir do momento em que temos aquilo que os nossos olhos comunicavam: Onde estão as pessoas negras do Poder Judiciário?”, comentou a Juíza Federal Adriana Cruz, integrante do Observatório dos Direitos Humanos do CNJ.

Entrevistas – Adriana Cruz e Karen Luise têm o mesmo tempo de magistratura e só se conheceram em 2017, ano do primeiro Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (Enajun). São as únicas juízas negras titulares de varas criminais em capitais, Luise no Tribunal do Júri de Porto Alegre e Cruz na Justiça Federal do Rio de Janeiro.

A Revista JC entrevistou as magistradas acerca das iniciativas já adotadas na Justiça e quais precisam ser implementadas. No CNJ, ambas integram o comitê executivo do Observatório dos Direitos Humanos, órgão consultivo da Presidência do CNJ com objetivo de fornecer subsídios para a adoção de iniciativas que promovam os direitos humanos e fundamentais nos serviços judiciários. 

Confira a seguir os melhores momentos dessas conversas, que abordam também as trajetórias e experiências dessas mulheres. 

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“O diálogo, troca e riqueza da vivência aprofunda a qualidade do serviço” 

Adriana Cruz ingressou na magistratura federal em 1999, em Brasília, e hoje é titular da 5a Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, especializada em lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro. Atuou com a jurisdição civil e trabalha exclusivamente com a jurisdição criminal desde 2014. Revista Justiça e Cidadania – Como tem sido a atuação do Observatório dos Direitos Humanos e como é a intersecção com a Agenda 2030 das Organização da Nações Unidas?
Adriana Cruz – Hoje, minha atuação no CNJ está muito vinculada aos grupos de trabalho e a gestão da Ministra Rosa Weber tem tido essa atenção, estabelecendo a priorização dos direitos humanos como eixo. Se condensarmos todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o objetivo é um só: garantir o nosso direito de existir em plenitude, livres da violência, com acesso a bens da vida mínimos para a existência.

O diálogo com a população é uma forma de fazer uma política de contenção de danos, ou de caminhar para um processo de reparação e de reversão desse quadro. Fruto disso foi a resolução do CNJ para aprofundamento da política do Poder Judiciário em atenção às vítimas. Existe, ainda, uma recomendação de que todos os países do sistema ONU precisam ter uma política em atenção às vítimas de violência. 

JC – É preciso trabalhar na formação inicial e continuada de magistrados em questões raciais?
AC – Ingressei na faculdade em 1988, ainda durante a Constituinte, e passei cinco anos na faculdade sem que a palavra raça fosse mencionada. Os profissionais estão chegando no topo das carreiras e não tiveram essa formação. Quem teve foi porque foi atrás por si só. 

Na resolução sobre concursos, por exemplo, foram incluídas algumas temáticas sobre questões raciais e de gênero. Nossa ideia em propor essas alterações foi a de gerar um círculo virtuoso. À medida em que aquilo é cobrado nos concursos, as universidades vão começar a incluir o tema em suas grades para que o profissional já chegue com essa reflexão amadurecida, com essa compreensão mais aprofundada. O ensino jurídico também precisa se repensar.

JC – A desproporção do percentual de magistrados negros em relação a representatividade da população brasileira compromete o acesso à Justiça?
AC – Sim, precisamos ter outros olhares. Espaços plurais tendem a produzir decisões de maior qualidade e de maior aderência à realidade social. Certa vez contei a um colega que a polícia me abordou e vi o espanto dele, porque na cabeça das pessoas um juiz está absolutamente imune. Quando uma pessoa me diz que sofreu uma abordagem policial, sei do que ela está falando porque já passei por isso, meus familiares passam por isso. O diálogo, troca e riqueza da vivência aprofunda a qualidade do serviço prestado. Não é um ataque a ninguém em particular, estou falando da instituição de uma maneira geral e daquilo que a instituição de Justiça produz. Basta olhar o cárcere e quem são as pessoas que estão presas, onde o sistema coloca a energia dele.

JC – Embora seja verificado o aumento de negros na magistratura, como está o acesso ao segundo grau de jurisdição e aos tribunais superiores? As pesquisas sobre gênero na magistratura, por exemplo, mostram um “teto de vidro” neste sentido.
AC – É percebido um decréscimo do ingresso de mulheres no Poder Público. No setor privado isso também é mapeado, à medida em que a carreira vai avançando, a presença das mulheres vai sendo reduzida. Uma reflexão importante para quem é contra as cotas, é que a cota masculina é intocada; para homens brancos em especial. Com o ingresso de pessoas negras, essa disputa está sendo feita entre pessoas negras e mulheres de uma maneira geral, porque o ingresso de homens permanece intocado.

O Poder Judiciário se legitima pela força persuasiva das suas decisões. E essa força passa pelo processo de produção da decisão que precisa contemplar a pluralidade de compreensões do mundo. É preciso de realidades múltiplas, a experiência de ser mulher, de ser negra, de ser PCD, de ser da comunidade LGBTQIA+. Há situações em que, por mais que haja o esforço de alteridade, há sapatos que só quem calça compreende. Essas visões precisam ser compartilhadas naquele espaço de produção de decisão.

JC – Quais são suas proposições e o que considera essencial numa política judiciária para a equidade racial?
AC – É preciso aprofundar a política de cotas. Não tem como pensar uma política de equidade racial sem pensar a questão criminal e de ampliação dos acessos. Tanto de participação quanto de afastamento dos obstáculos de acesso da cidadania aos serviços do Judiciário, da qualidade do serviço que se produz, do letramento do corpo de magistrados e servidores, para que possam fazer uma leitura do direito concentrada com aquilo que a Constituição estabelece.

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“É necessário que haja políticas afirmativas também na promoção”

Karen Luise é Juíza de Direito há 24 anos. Ingressou na magistratura em 1999, no Rio Grande do Sul, e trabalhou em diversas comarcas. Chegou a Porto Alegre no ano de 2018, onde é titular da 1a Vara do Júri. Mestre em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento, integrou a comissão de juristas da Câmara dos Deputados que propôs mudanças nas leis de combate ao racismo.

Revista Justiça e Cidadania – Quais atividades desenvolvidas no âmbito do Conselho a senhora gostaria de destacar?
Karen Luise –
Em 2018, o Enajun solicitou para o CNJ criar um fórum no qual se pudesse pensar a questão racial. Dentro do CNJ, como juízes auxiliares, concebemos a criação de um programa de equidade racial, o que é um grande valor nessas gestões no que diz respeito à população negra. 

O primeiro projeto desse programa foi reunir todos os tribunais do Brasil com um objetivo em comum, que é o de promover equidade racial. O Pacto Nacional pela Equidade Racial completou 100% de adesão dos tribunais, seja na esfera estadual, federal ou eleitoral. Isso representa o compromisso de promover algumas políticas de equidade racial de capacitação de magistrados e de aperfeiçoamento de bancos de dados para que se saiba quem são os juízes negros e brancos, quem são os servidores e quem são estagiários. É importante conhecer a população no que diz respeito ao marcador étnico-racial para aperfeiçoar as políticas.

JC – O que precisa ser melhorado na formação, inclusive para remover os mecanismos que geram barreiras de acessos aos concursos públicos?
KL – A formação das pessoas negras precisa ser intensificada com programas de ação afirmativa. É preciso ter programas de ação afirmativa nos tribunais. Quanto aos concursos, não é só o valor da inscrição que pesa, há certa elitização do próprio processo, que precisa ser pensada. Muitas vezes as pessoas negras não têm condições para se deslocar em todas as fases do processo seletivo, ainda tem o tempo dedicado, os livros e a abdicação ao trabalho.

É preciso remover algumas barreiras, como foi possível no edital de concurso, para que todos os candidatos que atinjam a nota mínima consigam ir para a segunda fase. O que estava acontecendo era que a nota de corte eliminava os candidatos negros no concurso público.

JC –  E quanto ao “teto de vidro” que barra o acesso de mulheres e negros ao segundo grau de jurisdição e aos tribunais superiores?
KL – Esse é um dos desafios sobre os quais nos debruçamos hoje. De forma geral, houve acesso tardio das mulheres à magistratura e mais ainda das pessoas negras, por uma série de fatores estruturais e sociais. A magistratura sempre foi pensada para e por homens brancos, isso fez com que se tornasse um espaço que refletia o que essas pessoas pensavam.

Como as mulheres entraram depois na magistratura, temos um número pequeno de mulheres nos tribunais. Temos toda uma carreira que é construída a partir de um feminino que, para além de exercer as atividades profissionais, ainda continua detendo sozinha todas aquelas atribuições que eram destinadas a ela estruturalmente: o dever de cuidar, de fazer as atividades domésticas.

É necessário que haja políticas afirmativas também na promoção. Considero algo que não podemos mais abrir mão, já se passou muito tempo sem pensarmos sobre isso. Além de ser para que mulheres e pessoas negras tenham acesso aos tribunais superiores, é uma política para a sociedade. Precisamos que os tribunais sejam plurais e diversos não para promover essas pessoas, mas para que a produção jurisdicional nas instâncias superiores conte com a perspectiva de pessoas que enxergam o mundo por outras lentes.

JC – O que é preciso pensar para uma política judiciária para a equidade racial?
KL – Em primeiro lugar é preciso querer uma política judiciária de equidade racial genuína. Temos que nos afastar de uma política que não pense em resultados e queira apenas cumprir formalmente o que está previsto na Constituição. Temos uma Constituição cidadã que é para todas as pessoas. Para fazer uma política de equidade racial tem que haver coragem de romper com uma estrutura que não pense na questão racial como uma centralidade nos problemas do Estado brasileiro.