Terreno fértil para a inclusão

6 de outubro de 2014

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RJC_170_Dom-Quixote_1Iniciativa voltada para a inserção de pessoas com deficiência permitiu que o STJ contratasse 11 pessoas com Síndrome de Down. E quem ganhou com isso foi o próprio Tribunal. A presença dos funcionários especiais ajudou a Corte a consolidar consciência voltada para o respeito às diferenças

Clécia Alexandra de Macedo, 37 anos, até trabalhou em uma creche, mas foi como recepcionista no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília/DF, que ela realmente sentiu-se com mais independência. A jovem é uma das 11 pessoas com síndrome de Down contratadas pela Corte. A ação faz parte do Inclusão – projeto estratégico do Tribunal, cujo objetivo é promover a inserção de portadores de deficiência.

Criado em 2004, o projeto é desenvolvido em diversas áreas do STJ por meio de programas específicos. Com relação aos portadores de Down, o trabalho começou em 2009, na presidência do ministro Cesar Asfor Rocha, hoje aposentado. Na ocasião, o ministrou também promoveu a contratação de deficientes auditivos para digitalizar os processos em tramitação na Corte. Atualmente, o Tribunal conta com 178 pessoas com déficit de audição em seus quadros, lotados na Seção de Digitalização de Processos.

As contratações foram possíveis após o STJ firmar parceria com Centro de Treinamento de Educação Física Especial (Cetefe) – entidade responsável pela seleção, pelo treinamento e pela supervisão desses funcionários. Para essas pessoas, a iniciativa foi a chance do primeiro emprego. Por isso, eles se empenham. A produção média de cada funcionário com deficiência auditiva chega a 2 mil folhas processuais digitalizadas por dia. O índice de produtividade é 30% maior que o de pessoas sem problemas de audição.

No que se refere aos portadores de Down, estes foram contratados para atuar junto ao atendimento ao público nas nove portarias do STJ. Sempre solícitos, distribuíam crachás, atendiam telefonemas e orientavam os visitantes sobre a localização dos diversos setores do Tribunal. Mas, desde o início do ano, eles não exercem mais essa atividade.

Simone Pinheiro Machado, servidora da Secretaria de Serviços Integrados da Saúde do STJ, unidade responsável pela coordenação do Projeto Inclusão, explicou que os funcionários estão passando por uma reciclagem para, em breve, assumirem nova função: a de higienização e acondicionamento do acervo da Corte. “Permaneceremos com as atividades em gabinetes dos ministros, mas o STJ tem demanda grande por esse serviço [manutenção do acervo processual], e os resultados alcançados com as pessoas com a Síndrome de Down têm sido excelentes”, afirmou.

Wallace Gadêlha Duarte, também servidor da Secretaria de Serviços Integrados de Saúde, explicou que o Projeto Inclusão tem como objetivo oferecer oportunidades de desenvolvimento profissional. “Nesse trabalho, temos o cuidado de respeitar as limitações que os funcionários apresentam e a obrigação de proporcionar a todos as condições necessárias ao bom desempenho das tarefas que lhes são atribuídas”, afirmou.

A história dos beneficiados mostra que o projeto tem alcançado êxito. Liane Martins Collares, por exemplo, uma das primeiras a serem contratadas pelo STJ, começou como recepcionista e logo foi “promovida”, passando a colaborar em pequenas atividades administrativas dos gabinetes dos ministros. Também, potencial não lhe falta. Além de nadadora e atriz, ela é escritora. Em 2004, lançou um livro sobre própria vida: “Liane, Mulher como Todas”.

Para Clécia Alexandra, citada no início da reportagem, a oportunidade no STJ foi decisiva para o crescimento pessoal. Ela conta que a mãe dela morria de medo de deixá-la ir sozinha para a Corte. Com a responsabilidade do novo emprego, a recepcionista desenvolveu-se ainda mais. E hoje vai sozinha – e sem qualquer receio – para o trabalho que “adora”. “Agora sou independente”, orgulha-se.

RJC_170_Dom-Quixote_2Semear Inclusão A contratação das pessoas com Down e dos deficientes auditivos foi positiva ao STJ por diversos aspectos. A conse­quência primeira da presença desses funcionários para lá de especiais – além da dos 57 servidores com deficiências diversas, que ingressaram na Casa por meio de concurso público – verifica-se na estrutura física do Tribunal, que foi adaptada, a fim de garantir acessibilidade tanto aos trabalhadores como aos jurisdicionados com deficiência.

Nesse sentido, o Projeto Inclusão até foi ampliado. Em março deste ano, o STJ editou a Portaria no118/2014, para instituir o Programa Semear Inclusão, destinado à “promoção do amplo acesso de pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida às dependências e aos serviços prestados pelo Tribunal, bem como para a disseminação de práticas inclusivas, que visem à conscientização da importância da acessibilidade para o pleno exercício dos direitos humanos e da cidadania”.

O Programa Semear Inclusão também prevê ações específicas para os portadores de Síndrome de Down, em atendimento às recomendações da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Para atingir tal fim, a portaria previu a criação da Comissão de Inclusão, hoje presidida pela Ministra Nancy Andrighi. O grupo tem por atribuição analisar as questões quanto à acessibilidade tecnológica, arquitetônica e informacional do STJ, para, assim, priorizar as demandas a serem desenvolvidas. Também compete à comissão realizar estudos “para fomentar a inclusão de pessoas com deficiência nas atividades laborais”.

No entanto, a presença desses funcionários para lá de especiais provocou outra mudança, de caráter comportamental. Sempre sorridentes e prontos ajudar, os portadores de Down ganharam os servidores da Casa e acabaram por contribuir para a construção de uma consciência coletiva voltada para o respeito às diferenças e à humanização das relações. Isso se deu com relação aos visitantes do Tribunal, principalmente na hora de se identificarem nas portarias. Na presença desses recepcionistas, reduziram-se a exigência das autointitulações dos “doutores’’. Sem perceberem, os novos funcionários trouxeram mais leveza a um local tradicionalmente regido por protocolos.

Mercado de Trabalho A iniciativa do STJ torna-se ainda mais relevante por ter entre seus objetivos a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Entre as inúmeras dificuldades enfrentadas por esse segmento da sociedade, obter uma colocação profissional talvez seja a pior. A principal forma, e praticamente a única atualmente existente, de uma pessoa com deficiência conseguir um emprego é por meio da Lei de Cotas (Lei no 8.213/1991), que obriga as empresas com mais de 100 funcionários destinarem de 2% a 5% das vagas às pessoas com deficiência.

Apesar da legislação, a participação das pessoas com deficiência no mercado de trabalho continua a ser ínfima. Segundo dados de 2011 da Relação Anual de Informação Social (Rais), divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o índice de vínculos empregatícios de pessoas com deficiência foi apenas de 0,70% do total declarado naquele ano.

Na Justiça brasileira, a situação também não é diferente. De acordo com o Censo do Poder Judiciário, divulgado recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o número de serventuários com deficiência em 2013 foi de apenas 3,8%. Entre os magistrados, o percentual foi ainda menor: 0,8% no ano passado. Esse índice é o menor desde 1955, ano do primeiro registro.

A ideia é que iniciativas como essas inspirem os Tribunais do País a desenvolverem práticas voltadas para a inclusão. O servidor Wallace Gadêlha Duarte reafirma a importância de práticas nesse sentido: “o STJ é referência nos campos da justiça e da inclusão social. Por isso, certamente contratações inovadoras, programas e projetos como os que estão sendo desenvolvidos nessa Casa se multiplicarão em outras instituições públicas”, destacou.

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Fonte: Censo do Poder Judiciário/CNJ

Resistências superadas

Ricardo-FonsecaPrimeiro desembargador cego do País, Ricardo Fonseca conta como é sua rotina no Tribunal Regional do Trabalho do Paraná

Ricardo Fonseca formou-se na faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ainda no início da década de 1980. Advogou até 1991, quando foi aprovado no concurso público para o Ministério Público do Trabalho (MPT) do Estado do Paraná. Como procurador, especializou-se. Fez mestrado, depois doutorado, tornou-se professor universitário. E em 2009, acabou sendo nomeado para o cargo de desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 9a Região (TRT9), em vaga destinada ao Quinto Constitucional. A trajetória dele é admirável. Ainda mais considerando-se a sua condição peculiar: o agora magistrado é deficiente visual.

Fonseca foi o primeiro cego a se tornar desembargador no Brasil. A nomeação foi mais que a concretização de um sonho: foi também um ato de justiça. Ele havia sido reprovado em concurso para a magistratura justamente em razão da deficiência. À seção Dom Quixote, ele falou sobre a própria vida. A cegueira o acometeu quando estava no terceiro ano da faculdade. Com o apoio dos familiares e colegas – além de muita determinação –, ele se formou.

No início da carreira como procurador-regional do Trabalho, Fonseca chegou a pagar do próprio bolso ledores para que o auxiliassem. “Naquela época, não havia tantos recursos”, lembra. O hoje desembargador destacou evoluções no tratamento dispensado a pessoa portadora de deficiência. No entanto, ainda é necessário combater o preconceito. E não é por menos que ele diz isso. Segundo dados do Censo do Poder Judiciário, divulgado recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a participação de deficientes na magistratura não chega a 1%. É o índice mais baixo desde 1955. Confira a íntegra da entrevista:

Revista Justiça & Cidadania – O senhor foi a primeira pessoa com deficiência visual a se tornar desembargador. Como tem sido essa experiência?
Ricardo Fonseca – Fui conduzido ao cargo pelo Quinto Constitucional do Ministério Público do Trabalho (MPT). Na Corte, todos foram muito receptivos. Devo ressaltar que a posição do TRT do Paraná foi muito avançada, pois foi o primeiro Tribunal a aceitar ter em seus quadros um desembargador cego. E essa porta foi fundamental. É claro que, para o exercício das minhas atividades, tudo foi muito facilitado. Então, está sendo tranquilo. O que me deixa mais feliz agora é saber que há um jovem, também cego, que foi aprovado para Justiça Federal. Então, não sou mais o único magistrado cego, o que muito me agrada.

O senhor encontrou preconceito durante a sua carreira?
Houve muita resistência, em um primeiro momento, para que eu pudesse ocupar um cargo público. Em 1990, em São Paulo, houve o entendimento de que eu não poderia ser juiz e acabei impedido de concluir o concurso (para magistratura). Mas em 1991, eu fiz o concurso para o MPT. Eram 4.500 candidatos e eu tive a honra de ser aprovado em sexto lugar. Atuei no MPT por 18 anos e realizei todas as atividades que alguém pode exercer na instituição. No TRT, da mesma forma, tive muita receptividade.

Quando o senhor ficou cego?
A cegueira veio quando eu estava no terceiro ano da faculdade de Direito. Mas eu já sofria de baixa visão, o que me impedia de ler textos com letras datilografadas. Precisava que elas fossem ampliadas e naquela época não havia computadores para isso. Minha mãe e meus professores faziam isso para mim. Eu também fazia as provas, inicialmente escrevendo. Com o tempo, passei a ditar as respostas.

Como o senhor analisa o acesso ao mercado do trabalho por pessoas com deficiência?
Tenho visto advogados cegos. Segundo informa a Ordem dos Advogados do Brasil, há cerca de 1.800 advogados cegos ou com deficiência visual severa, que não podem operar adequadamente o Processo Judicial Eletrônico. Considero essa uma atividade que recebe as pessoas. Já vi advogados surdos e com deficiência física. Então acho que essa é uma função bastante propícia para as pessoas com deficiência. Havia resistências na magistratura e no Ministério Público, mas agora me parece que essas resistências têm cedido.

Como é sua rotina de trabalho?
Eu tenho um computador adaptado, mas prefiro trabalhar com ledores humanos. Quando eu perdi a visão, não havia computadores. Então, sempre tive assistentes que liam para mim, os quais eu remunerava em um primeiro momento, mas depois passaram a ser cedidos pelo MPT e agora pelo TRT. Concentro-me mais na leitura feita por meus assistentes. E eu também dito as decisões.