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Testamento: prevalência e obediência da vontade, em vida, do de cujus

21 de julho de 2014

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Maercelo-LimaAGRAVO DE INSTRUMENTO – DIREITO CIVIL – FAMÍLIA E SUCESSÕES – INVENTÁRIO E PARTILHA – DECISÃO QUE ADJUDICOU OS BENS DEIXADOS PELA FALECIDA EM FAVOR DE CÔNJUGE SOBREVIVENTE – INSURGÊNCIA DOS COLATERAIS – CÔNJUGE SOBREVIVENTE CASADO PELO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS – TESTAMENTO QUE IMPÔS CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE APOSTA À LEGÍTIMA – SUBSISTÊNCIA DO GRAVAME APÓS A MORTE DA BENEFICIÁRIA – OBSERVÂNCIA DA ÚLTIMA VONTADE DO TESTADOR – PREVALÊNCIA. DECISÃO QUE SE REFORMA.

1. Decisão agravada que reconheceu ser o cônjuge supérstite da inventariada seu legítimo sucessor, uma vez que faleceu sem deixar descendentes e ascendentes. Afastou da sucessão os colaterais, que somente herdariam na ausência do cônjuge da falecida. Afirmou que a cláusula de incomunicabilidade não retira a qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite, sendo certo que o óbito da beneficiária do testamento automaticamente faz desaparecer a restrição, visto que os bens gravados com cláusula de incomunicabilidade só manterão este efeito enquanto viver o seu beneficiário.
2. Agravo interposto pelos tios e primos da inventariada Eliane. Argumentam que fazem jus aos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade.
3. A cláusula de incomunicabilidade impede que o bem entre na comunhão em razão de casamento, união estável ou união homoafetiva.
4. Dessa forma, ao testador são asseguradas medidas conservativas para salvaguardar a legítima dos herdeiros necessários.
5. Por conseguinte, deve-se interpretar o testamento, de preferência, em toda a sua plenitude, desvendando a vontade do testador, que, no caso concreto, foi de salvaguardar os bens deixados à inventariada.
6. Reconhece-se a incomunicabilidade dos bens entre a filha falecida do testador e seu esposo, em respeito à vontade do testador de manter o patrimônio no seio familiar.
7. Provimento do recurso, para deferir as habilitações dos agravantes na qualidade de herdeiros dos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade.
DÁ-SE PROVIMENTO AO RECURSO.

ACÓRDÃO
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de agravo de instrumento n. xxx, em que são AGRAVANTE 1: A. F. N., AGRAVANTE 2: N. F. N., AGRAVANTE 3: C. N. M., AGRAVANTE 4: J. N. M., AGRAVANTE 5: L. M. H. M., AGRAVANTE 6: A. N. M., AGRAVANTE 7: C. F. N. AGRAVANTE 8: K. H. N. e AGRAVADO 1: ESPÓLIO DE E. A. M. REP/P/S/INV P. M. M. e AGRAVADO 2: ESPÓLIO DE O. J. A. REP/P/S/INV P. M. M.
ACORDAM os ilustres Desembargadores que compõem a 22a Câmara Cível deste E. Tribunal, por unanimidade de votos, em conhecer e dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Desembargador Relator.
RELATÓRIO
Trata-se de agravo de instrumento, interposto por A. F. N. e outros, nos autos da ação de inventário, almejando a reforma da decisão assim exarada, ipsis litteris:

Fls. 174/176 – Com razão o requerente. Na forma do artigo 1.829 do Código Civil, o requente, cônjuge supérstite da inventariada que faleceu sem deixar descendentes e ascendentes, é seu legítimo sucessor. Dessa forma, os colaterais somente herdariam na ausência do cônjuge da falecida, conforme inciso IV do artigo acima citado. Impende esclarecer que a cláusula de incomunicabilidade não retira a qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite, sendo certo que o óbito da beneficiária do testamento automaticamente faz desaparecer a restrição, uma vez que a cláusula de incomunicabilidade impede que o bem se comunique na comunhão em razão de casamento, independentemente do regime adotado para a união, ou seja, o bem integrará sempre o patrimônio particular do beneficiário. No entanto, os bens gravados com cláusula de incomunicabilidade só manterão este efeito enquanto viver o seu beneficiário. Neste sentido, o cônjuge supérstite herdará, com ou sem concorrência, todos os bens do falecido gravados com cláusula de incomunicabilidade, posto que tais bens se transmitem aos herdeiros sem qualquer ônus. Indefiro, pois, as habilitações requeridas às fls. 153/155. Restando preclusa a presente decisão, voltem para sentença.

Insurgem-se contra o decisum, narrando os Agravantes que são tios e primos de E. A. M. Esclarecem que a mãe de E., de nome O. J. A., faleceu em 30/6/2012, enquanto aquela faleceu em 9/11/2012, sem descendentes ou ascendentes. Dessa forma, informam que o cônjuge sobrevivente de E. requereu a adjudicação de todos os bens do monte, inclusive aqueles gravados com cláusula de incomunicabilidade.

Dessa forma, os Agravantes, na qualidade de herdeiros colaterais de E., afirmam que fazem jus aos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade, visto que o cônjuge sobrevivente não tem direito a estes, até porque casaram-se sob o regime da comunhão parcial de bens, devendo ser observada a vocação hereditária. Requerem sejam deferidas as habilitações na qualidade de herdeiros dos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade.

Petição de fl. 19, apresentando os agravantes comprovante de interposição do recurso, em cumprimento ao art. 526 do CPC.

Contrarrazões de fls. 28/32, argumentando os agravados que:

A primeira inventariada, O. J. A., viúva de H. N. A., faleceu em 30.6.2012, tendo deixado testamento, gravando os seus bens com as cláusulas de incomunicabilidade e de impenhorabilidade vitalícias. Foi aberto o inventário, tendo sido requerida a adjudicação dos bens a sua única filha, E. J. A., que faleceu em 9.11.2012, não tendo deixado descendentes ou testamento, sendo casada com o inventariante, sob o regime da comunhão parcial de bens.
O inventário da segunda inventariada foi aberto, com o requerimento de adjudicação dos bens ao inventariante, na qualidade de herdeiro, uma vez que a de cujus não possuía descendentes e ascendentes, tendo o douto Juízo a quo deferido a inventariança ao cônjuge supérstite.
Ocorre que A. F. N. e C. F. N., irmãos do pai da segunda inventariada, e C. N. M., J. N. M. e A. N. M., filhos da irmã do pai da segunda inventariada, falecida em 18.6.1995, portanto, tios e primos da segunda inventariada, respectivamente, ingressaram nos autos requerendo a habilitação no inventário e avaliação dos bens. Apesar das habilitações requeridas, o douto Juízo a quo indeferiu o pedido dos Agravantes, dando integral cumprimento ao art. 1.829, I a IV, do Código Civil.

Ofício do Juízo a quo de fl. 34, afirmando que manteve a decisão agravada.

A d. Procuradoria de Justiça, às fl. 37/39, opinou no sentido de inexistir interesse público primário a justificar sua intervenção.

Passo ao VOTO.

Conheço do recurso por tempestivo e por estarem satisfeitos os demais requisitos de sua admissibilidade.

O Juízo a quo reconheceu que o cônjuge supérstite da inventariada E., que faleceu sem deixar descendentes e ascendentes, é seu legítimo sucessor, afastando, assim, os colaterais, que somente herdariam na ausência do cônjuge da falecida, conforme incisos III e IV do artigo 1.829 do Código Civil.

Art. 1.829 – A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
(…)
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.

Ressaltou o magistrado de piso que a cláusula de incomunicabilidade não retira a qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite, sendo certo que o óbito da beneficiária do testamento automaticamente faz desaparecer a restrição, uma vez que a cláusula de incomunicabilidade impede que o bem se comunique na comunhão em razão de casamento.

O ponto nodal da questão situa-se em definir se o cônjuge sobrevivente, que fora casado com a autora da herança sob o regime da separação convencional de bens, participa ou não da sucessão como herdeiro necessário, na medida em que os bens deixados estão gravados com cláusula de incomunicabilidade por testamento deixado pelos genitores já falecidos de sua esposa.

O agravante P., inventariante dos espólios de O. e E. (agravados 1 e 2), casou-se com E. em 25/9/1993, sob o regime da comunhão parcial de bens.

O sogro do inventariante dos agravados, H. N. A., faleceu em 15/9/1994, deixando testamento, no qual gravou os bens que seriam transmitidos à sua única filha E. com as cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade.

Posteriormente, O., a sogra do inventariante dos espólios, faleceu em 30/6/2012, deixando testamento, gravando seus bens com cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade vitalícias.

Dessa forma, ocorreu a transmissão causa mortis do falecido Sr. H. e, posteriormente, da falecida Sr.ª O., para a filha Sr.ª E..

No entanto, poucos meses após, em 9/11/2012, faleceu E., sem deixar descendentes ou ascendentes.

Assim, o inventariante dos espólios agravados, na qualidade de cônjuge sobrevivente de E., requereu a adjudicação de todos os bens do monte.

Importa esclarecer que o 1o agravante é casado com a 2a agravante e a 7a agravante é casada com o 8o agravante, tios de E., enquanto o 3o agravante, o 4o agravante, que é casado com a 5a agravante, e o 6o agravante eram primos da falecida E.

Dessa forma, os agravantes, na qualidade de herdeiros colaterais de E, alegam fazer jus aos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade, pedindo que sejam deferidas as suas habilitações como herdeiros, afastando-se o cônjuge sobrevivente Paulo.

No caso em comento, como dito acima, os bens estão gravados com a cláusula de incomunicabilidade, que é um gravame imposto pelo testador ou doador como forma de impedir que o bem recebido em doação, herança ou legado integre o patrimônio que irá se comunicar com o do cônjuge (meação).

Nesta esteira, prevê o Código Civil, em seu artigo 1.668, no inciso I, que são excluídos da comunhão os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar.

Do Regime de Bens entre os Cônjuges
Art. 1.668. São excluídos da comunhão:
I – os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar;

Já no artigo 1.661, está disposto que automaticamente será incomunicável o bem cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento, quando se tratar do regime de comunhão parcial.

Do Regime de Bens entre os Cônjuges
Art. 1.661. São incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento.

Observa-se, assim, que o bem gravado com a cláusula de incomunicabilidade torna-se um bem patrimonial do beneficiário

Dessa forma, ao testador são asseguradas medidas conservativas para salvaguardar a legítima dos herdeiros necessários, sendo que, na interpretação das cláusulas testamentárias, deve-se preferir a inteligência que faz valer o ato.

Por conseguinte, deve-se interpretar o testamento, de preferência, em toda a sua plenitude, desvendando a vontade do testador, que, no caso concreto, foi de salvaguardar os bens deixados a E.

Em hipótese em que se discutia a qualidade de herdeiro necessário do cônjuge sobrevivente, que fora casado com o autor da herança sob o regime da separação convencional de bens, entendi, nos autos do Agravo de Instrumento n. xxx, não remanescer para o cônjuge casado mediante tal regime de bens direito à meação, tampouco à concorrência sucessória.

Isso porque, se os nubentes escolheram voluntariamente casar pelo regime da separação convencional, optando, por meio de pacto antenupcial lavrado em escritura pública, pela incomunicabilidade de todos os bens adquiridos antes e depois do casamento, inclusive frutos e rendimentos, essa ampla liberdade advinda da pactuação quanto ao regime matrimonial de bens, não poderia ser tolhida pelo Direito das Sucessões, fazendo-se assim prevalecer a vontade do cônjuge em vida, para após a sua morte. 

Mutatis mutandis, este é o caso do testador que, em vida, gravou o bem deixado para a filha com a cláusula de incomunicabilidade, devendo assim permanecer o bem gravado mesmo para após a morte daquela, sob pena de se vilipendiar a vontade do testador que deve sofrer proteção legal, já que ato de última vontade instituidor de atribuição de propriedade, em que ele se despe dos seus imóveis em prol de alguém que entende capaz de geri-lo ou por afinidade tal que não deseja ver outro fruir.

Nesse sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, verbis:

REsp246693/SP-RECURSOESPECIAL-2000/0007811-5
Relator(a)
Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR (1102)
Órgão Julgador
T4 – QUARTA TURMA
Data do Julgamento
4/12/2001
Data da Publicação/Fonte
DJ 17/5/2004 p. 228

Ementa
CIVIL. ACÓRDÃO ESTADUAL. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. INVENTÁRIO. TESTAMENTO. QUINHÃO DE FILHA GRAVADO COM CLÁUSULA RESTRITIVA DE INCOMUNICABILIDADE. HABILITAÇÃO DE SOBRINHOS E NETOS. DISCUSSÃO SOBRE A SUA EXTINÇÃO EM FACE DA CLÁUSULA, PELO ÓBITO, ANTERIOR, DA HERDEIRA, A BENEFICIAR O CÔNJUGE SUPÉRSTITE. PREVALÊNCIA DA DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA. CC, ARTS. 1676 E 1666.
I. A interpretação da cláusula testamentária deve, o quanto possível, harmonizar-se com a real vontade do testador, em consonância com o art. 1.666 do Código Civil anterior.
II. Estabelecida, pelo testador, cláusula restritiva sobre o quinhão da herdeira, de incomunicabilidade, inalienabilidade e impenhorabilidade, o falecimento dela não afasta a eficácia da disposição testamentária, de sorte que procede o pedido de habilitação, no inventário em questão, dos sobrinhos da de cujus.
III. Recurso especial conhecido e provido.

Ex positis, voto para conhecer e DAR PROVIMENTO ao recurso, para deferir as habilitações dos agravantes na qualidade de herdeiros dos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade.

Desembargador MARCELO BUHATEM
Relator

Nota do Editor ______________________________________________________________

Chamou a atenção do longevo jornalista, afeito às morosas, extensas e complicadas questões judiciais, a sucinta decisão prolatada pelo desembargador Marcelo Lima Buhatem, em processo de Família e Sucessões, que nos levou a publicar o respectivo Acórdão.

Em si não há nada diferente, a não ser a forma prática como o ilustre e culto magistrado deslinda o feito, de forma a esgotar a lide sem delongas e argumentos estéreis e dispensáveis – o que a prática e experiência judicante ensina e impõe.

Vem de longe, herança das culturas latinas, o costume das longas e enormes dissertações literárias jurídicas, repletas e intermináveis citações que às vezes se contradizem nos argumentos, tanto nas petições, recursos infindos e finalmente com sentenças monumentais que chegam normalmente à conclusão com dezenas e dezenas de páginas. 

Os tempos atuais e a celeridade alcançada através dos meios de comunicação, trazendo e motivando a difusão cultural em todos os sentidos, trouxe como implicação da rapidez e modernidade a exigência da praticidade na solução de todos os assuntos e questões nos vários e extensos ramos da atividade humana.

Os exemplos que vêm sendo dados nos últimos tempos em vários setores do Poder Judiciário por magistrados que se despem da demonstração da cultura-jurídica que são detentores e buscam, nas decisões que prolatam na distribuição do direito que lhes cabe, a síntese da questão com objetividade, isenta de divagações e firulas jurídicas, é merecedor dos encômios que o editor lhe transmite.