Tragédia no sul: o papel do Judiciário

7 de junho de 2024

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Nos últimos meses, a tragédia que arrasou o estado do Rio Grande do Sul foi destaque nos noticiários, nas três esferas dos poderes constituídos, na academia, nos órgãos ambientais e em todo e qualquer foro em que se discutam políticas públicas. No momento em que escrevo esse editorial, a Defesa Civil do Estado registrava mais de dois milhões de pessoas afetadas de alguma forma, dentre elas pelo menos 575 mil desabrigados, além de 172 óbitos e 44 desaparecidos, na soma de vítimas das 476 cidades afetadas.

Como sempre se vê em tragédias similares – a exemplo do que aconteceu na região serrana no Rio de Janeiro, em 2011 –, o Brasil se uniu para prestar ajuda humanitária. Norte, nordeste, centro-oeste e sudeste juntos para apoiar nossos irmãos do sul. E este é o único aspecto que me sensibiliza positivamente neste caótico cenário. O fato de saber que ainda somos capazes de sobrepujar questões geopolíticas que colocaram em xeque nossa união enquanto uma só nação. Tenho a certeza de que todo brasileiro que teve condições de ajudar, de alguma forma, com pouco ou com muito, com doações ou com sua presença voluntária nos resgates, o fez com o coração, ainda que cheio de pesar por tão grandes perdas. E continuam ajudando.

Nesse propósito de dar sua contribuição, também o nosso Poder Judiciário teve o seu papel.  Até o início de junho, os Tribunais brasileiros já haviam doado quase R$ 180 milhões para a Defesa Civil do Rio Grande do Sul. Um repasse autorizado pelo Conselho Nacional de Justiça, por meio da edição de normas que regulamentam esse tipo de demandas emergenciais e sob a autorização do presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ, Ministro Luís Roberto Barroso, e do Corregedor Nacional de Justiça, presidente de nosso Conselho Editorial, Ministro Luis Felipe Salomão. O somatório corresponde aos valores repassados pelos Tribunais Estaduais, pela Justiça Federal e, ainda, fruto da arrecadação de comarcas do próprio TJRS.  

O Tribunal de Justiça gaúcho, assim como o TRF da 4a Região, o TRE-RS e a Justiça Militar daquele estado, dadas as circunstâncias, com diversas cidades tendo decretado estado de calamidade pública, se viram forçados a restringir seu atendimento a medidas de urgência. A inundação da região central de Porto Alegre levou ao desligamento de segurança dos sistemas de dados de muitas instituições, incluindo as unidades judiciárias. Em decisão conjunta da Presidência do CNJ e da Corregedoria Nacional de Justiça, em 10 de maio de 2024 foi determinada a suspensão, no período de 2 a 31 de maio de 2024, da contagem dos prazos processuais nos tribunais do País, nos feitos que envolvam o estado sulista.

Posto este cenário de calamidade – e, em contrapartida, de mobilização civil e do governo Federal pela contenção e recuperação dos profundos danos –, estamos cientes de que serão necessários muitos meses para que a vida nas cidades afetadas volte ao normal. Há que se destacar todo um leque de questões que precisarão de respostas em curto, médio e longo prazo. Fica claro que o Poder Judiciário terá um papel central na oferta dessas soluções para as muitas demandas no âmbito do direito civil, de família, do trabalho, patrimonial, para citar apenas as principais demandas que já estão surgindo. Esforços terão de ser renovados e, desde já, nossos tribunais se mostram prontos para cumprir essa missão, que não será pequena nem fácil. Sobre isso não há qualquer traço de dúvida.

O que se questiona é qual será o papel do Judiciário – e de todos os brasileiros com poder de decisão – para que novas catástrofes como essa não ocorram novamente. É claro que a responsabilidade de definir políticas de enfrentamento às mudanças climáticas – o que é apontado por meteorologistas e demais estudiosos como o principal fator para a tragédia no Rio Grande do Sul – é do Legislativo e, que a aplicação dessas políticas cabe ao Executivo. 

Porém, muitas medidas que estão nas mãos do Poder Judiciário podem ajudar a enfrentar tragédias como as recentes enchentes do Rio Grande do Sul – ou, ao menos, contribuir para reduzir as proporções. A primeira delas é a garantia de direitos, assegurando que as vítimas tenham acesso à moradia, saúde, educação e outros serviços essenciais. É papel do Judiciário também o de responsabilização dos protagonistas que, uma vez apurado, tenham sido negligentes ou conduzido a gestão da administração pública de modo a contribuir para que as enchentes tivessem tal dimensão e assim garantir que haja prestação de contas e justiça para as vítimas.

O Judiciário também responde pela mediação e pela resolução de conflitos, levando a pacificação entre diferentes partes interessadas, como governos locais, empresas e comunidades afetadas, para resolver disputas e coordenar esforços de recuperação. Também terá protagonismo no sentido de que políticas e regulamentos adequados sejam implementados para prevenir futuras tragédias, incluindo normas de construção, gestão de recursos hídricos e planejamento urbano resiliente.

No que tange ao acesso à Justiça, poderá garantir que as vítimas tenham acesso a recursos legais e apoio para buscar compensação por danos sofridos e reconstruir suas vidas após a tragédia. Por fim, pode atuar na advocacia por mudanças estruturais e investimentos em infraestrutura resiliente, sistemas de alerta precoce e medidas de adaptação às mudanças climáticas para reduzir o impacto de futuras enchentes. Em resumo, o Poder Judiciário pode desempenhar papel fundamental no enfrentamento das enchentes e outras tragédias, garantindo justiça, responsabilização e implementação de medidas preventivas para proteger as comunidades vulneráveis.

Aproveito para dar as boas-vindas ao novo membro do Conselho Editorial, o advogado e professor da Escola Superior da Advocacia da OAB-RJ, Pablo Meneses, que possui experiência de mais de 20 anos na área de saúde, com destaque para o cargo de vice-presidente da Rede D’Or e como integrante do Conselho de Administração do Instituto D’Or de Gestão de Saúde Pública, além de participar de comissões da OAB-RJ e do Conselho Federal da OAB.

Bem-vindo, amigo!

Leia também nesta edição – Na entrevista com o Desembargador Fernando Antonio Torres Garcia, presidente eleito do Tribunal de Justiça de São Paulo para o biênio 2024-2025, ele fala sobre seus planos de gestão e outros temas em pauta no Judiciário. Além do já mencionado J20, realizado no TJRJ, que contou com a participação de 20 delegações internacionais, trazemos a cobertura de três outros eventos: o seminário “Desjudicialização da Saúde”, que realizamos em maio, na Escola Paulista de Magistratura, com coordenação do membro do nosso Conselho Editorial Ministro Paulo Dias de Moura Ribeiro; a mais recente edição do programa Conversa com o Judiciário, que teve foco na atualização do Código Civil e na Justiça Especializada de São Paulo, com participação do Presidente do nosso Conselho Editorial, Ministro Luis Felipe Salomão; e o seminário “A Reforma Agrária e a regularização de terras no Brasil”, promovido pela Comissão Especial de Direito Agrário e do Agronegócio da Ordem dos Advogados do Brasil, coordenado pelo também membro de nosso Conselho Editorial o Presidente da Comissão, Antonio Augusto de Souza Coelho.

Entre os artigos desta edição, os especialistas abordaram o tema do Processo Civil Estrutural; a Inteligência Artificial e seus reflexos na tomada de decisão nos tribunais; o perfil da Advocacia brasileira da atualidade e as perspectivas futuras; uma análise sobre os direitos da população em situação de rua; uma visão sobre a limitação temporal da competência do juízo da recuperação judicial nas execuções de créditos extraconcursais e fiscais; a representatividade de gênero nas eleições; uma análise filosófica sobre a criminalidade; e uma revisão histórica da atuação da centenária Justiça paulista.

Boa leitura!