Uma leitura deôntica do princípio da dignidade humana

14 de julho de 2022

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Em “Discurso sobre a dignidade do homem” (De hominis dignitate oratio, de 1486), Giovanni Pico della Mirandola trouxe a noção de que o diferencial do ser humano em relação a todas as demais obras da Criação era sua capacidade de ascender ou descender na cadeia dos seres pelo exercício de suas capacidades intelectuais e morais. O ser humano é o artífice de si mesmo, o criador das próprias possibilidades, livre-arbítrio que concretiza o conceito de dignidade humana de forma mais ampla, para abranger não apenas “o que o ser humano é”, mas também o seu “vir a ser”. 

A filosofia de Mirandola teve forte influência no pensamento ocidental no período do Renascimento. Nas artes, por exemplo, ajudou a elevar o status de artistas como Michelangelo e Leonardo da Vinci de meros artesãos à categoria dos gênios do ideal renascentista. Já na ciência jurídica, essa percepção de que o homem é o único ser capaz de aprender sobre si mesmo e a natureza, o único capaz de plasmar e transformar, passou a justificar a necessidade de que a dignidade humana seja protegida pelo Estado e tutelada em seu sentido mais amplo.   

A dignidade nasce com a pessoa, é valor imprescindível, incindível e independente de qualquer reconhecimento por parte do Estado, que deve ser protegida por se tratar de direito natural, em respeito aos direitos e garantias fundamentais. 

O direito à dignidade subentende que não é o homem que opera em função do Estado, é o Estado que deve operar em função do homem, uma vez que sua finalidade é garantir o desenvolvimento da pessoa humana e o exercício dos seus direitos. Nesse sentido, a proteção dos direitos fundamentais assume como base a centralidade da pessoa, não mais considerada como algo abstrato e isolado, mas concreto e ligado à sociedade na qual vive e se expressa. 

O princípio da dignidade da pessoa humana é reconhecido pelo Direito brasileiro, consagrado positivamente pelo art. 1o §III da Constituição Federal de 1988, que o estabelece como fundamento da República Federativa do Brasil enquanto Estado Democrático de Direito. O que evidencia o compromisso da Carta com os valores, princípios e direitos fundamentais relacionados ao indivíduo. O princípio da dignidade está presente em vários outros dispositivos constitucionais como, por exemplo, no art. 226, §7o que prevê que o planejamento familiar é fundamentado nos princípios da “dignidade da pessoa humana” e da “paternidade responsável”; ou no art. 227, caput, que institui o dever da família, sociedade e Estado assegurarem à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à dignidade; ou ainda no art. 230, caput, que atribui à família, sociedade e Estado o dever de amparar as pessoas idosas “defendendo sua dignidade”. 

A experiência comparatista, de forma explícita, evidencia que outras cartas constitucionais positivam a dignidade como valor cardeal do sistema de proteção e garantia de direitos. Considera-se, por exemplo, no caso do art. 1o da Constituição alemã de 1949, que “a dignidade do homem é intangível” e que “é dever de cada Poder Estatual respeitá-la e protegê-la”. Da mesma forma, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, destaca a importância da dignidade humana em dois importantes trechos: “o reconhecimento da dignidade constitui o fundamento da liberdade” e “os povos das Nações Unidas afirmaram no Estatuto a sua sede nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana (…)”. 

Ainda em âmbito europeu, porém mais recentemente, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em Nice, na França, em 2000, prevê em seu art. 1° que o respeito à dignidade humana possui caráter preeminente aos demais direitos fundamentais: “A dignidade humana é inviolável. Deve ser respeitada e tutelada”. A Carta de Nice representa importante avanço na definição do conceito, ao “descrever” positivamente o que a dignidade humana é e representa. Destacam-se os direitos à vida e à integridade física e psíquica, a proibição da tortura e das penas ou tratamentos degradantes, além da proibição da escravidão. 

A regulamentação assim definida pela Carta de Nice sugere que a mesma seja utilizada como modelo interpretativo para outras cartas constitucionais, nas quais a descrição da dignidade humana é limitada a uma definição geral e abstrata, ou até implícita, como, por exemplo, no caso da Constituição da Itália.

A concepção da dignidade humana há de ser considerada como premissa para todos os direitos fundamentais inerentes à condição humana. O que, necessariamente, considera que a tutela da dignidade humana é tarefa fundamental conferida aos Estados e organismos supranacionais. É exatamente a partir da jurisprudência dos tribunais internacionais e das cortes constitucionais, bem como do debate doutrinário, que a interpretação e aplicação do princípio da dignidade humana está cada vez mais conceitualizado, nos seus mais concretos significados.

O recurso à aplicação do conceito da dignidade humana representa, desta forma, uma “janela aberta”, por meio da qual os tribunais e também os legisladores podem intervir, para regulamentar e tutelar todos aqueles casos materiais nos quais seja preciso defender a dignidade da pessoa no contexto social.

Frisa-se, portanto, a questão: A tutela da dignidade humana é um conceito interpretável? Em caso afirmativo, qual metodologia é preferível utilizar?

Os ensinos de Aristóteles sobre lógica e método interpretativo nos ajudam nesse sentido. O elemento linguístico é o meio de expressão do pensamento e, consequentemente, a sede ideal para compreendê-lo. O que também significa que a linguagem representa o meio primário de leitura do pensamento, cuja natureza é ontologicamente linguística. Isso indica a importância de utilizar “justas” técnicas da linguagem para buscar interpretar o conceito da dignidade humana.

Para aplicar a técnica da interpretação lógico-semântica – que evidencia os resultados da expressão do pensamento: significado, juízo e enunciado – Aristóteles parte da definição da “proposição”, conceito que exprime a união de dois ou mais termos, a partir da qual é possível afirmar ou negar algo. No caso da interpretação do Direito, uma proposição precisa ser interpretada para verificar se é declarativa ou descritiva, sendo suscetível ainda de ser “argumentada” enquanto verdadeira ou falsa.

A dignidade humana vem sendo interpretada pela doutrina jurídica tanto em sentido subjetivo, quanto objetivo. No sentido subjetivo, é expressão do próprio princípio da pessoalidade do indivíduo, sendo que, pela mais tradicional das interpretações, a pessoa humana há de ser considerada como “fim” em si. Diversamente, no sentido objetivo, a dignidade se refere às várias relações que o ser humano mantém com a sociedade. Assim, a dimensão social da dignidade abrange todas as fases temporais de vida do indivíduo, do útero ao legado, quase a demonstrar que o direito da dignidade da pessoa não desaparece com a morte.

Pela visão mais objetiva, ou holista, como a chama parte da doutrina, a dignidade humana é concebida de forma totalmente abstrata, “desapegada” dos interesses e dos direitos morais, concretos ou materiais dos indivíduos, devendo ser o princípio da dignidade aplicado e garantido indiferentemente a todos na sociedade.

Há, portanto, duas dimensões da dignidade humana: a subjetiva ou “pessoal”, e a objetiva ou “social”. Em relação a esta diferenciação, Dworking nos ajuda a entender que: (i) pela tese dos direitos, os direitos morais individuais, como no caso do direito de dignidade, possuem preeminência (trumps-rights) sobre os objetivos do Estado; e que (ii) a dignidade humana é de um lado o valor intrínseco que cada vida humana possui, d’outro a responsabilidade pessoal das escolhas feitas na sociedade acerca da existência de cada pessoa. Em particular, para Dworking, estas duas dimensões da dignidade humana se fundamentam na necessidade e prioridade da liberdade da pessoa. Desta forma, há de se entender que os direitos individuais morais são funcionais unicamente em relação à realidade política, econômica e social. O que é consequência da consideração, particularmente cara aos juspositivistas, segundo a qual o Direito passa a existir unicamente quando positivado pela lei, porque só assim é passível de ser sancionado em caso de descumprimento.

Usualmente, a dignidade é utilizada para materializar três funções: (i) a dignidade como direito negativo; (ii) a dignidade como fonte do dever público de proteção; e (iii) a dignidade como fonte do dever público da prestação de segurança social. A mais difusa é a primeira, a dignidade entendida como “norma de não interferência” na autonomia pessoal. Significado que se integra à segunda função, mais objetiva, “de proteção”, pela qual não há apenas o “direito de não interferir”, mas é exigida a adoção de medidas concretas pelo Estado para prevenir eventuais violações da dignidade. Já a terceira função exprime um significado ainda mais amplo, ao impor que o Poder Público garanta que a dignidade seja um direito constitucional de todos os cidadãos, independentemente de qualquer característica psíquica, física ou social.

É exatamente na execução destas funções que é possível detectar o limite da interpretação de qualquer proposição. A aproximação entre o rigor lógico-linguístico da proposição jurídica à norma jurídica pura é bastante trabalhada por Kelsen e o seu positivismo puro, assim como, sucessivamente, com uma conotação mais teleológica-finalística e social, por Bobbio, com o intento de “purificar” a linguagem jurídica, de forma a estabelecer parâmetros de certeza e segurança para alcançar a plena conotação cientifica da linguagem normativa jurídica.

Em particular, para Bobbio, um estudo pode se dizer cientifico unicamente se é realizado utilizando-se linguagem cientifica, quando todas as palavras estão previamente definidas, sem vagueza e ambiguidade nas referências, com regras de formação e modificação das proposições. A “purificação” da linguagem possui a função de transformar a metalinguagem da ciência do Direito em linguagem-objeto do Direito. A consequência desta metodologia comporta a necessidade de analisar a linguagem da norma jurídica não mais isoladamente, mas no contexto do ordenamento.

A procura da justificativa “lógica” pode ser relevada na própria redação e na atividade interpretativa e hermenêutica dos textos normativos. Tem por objetivo, portanto, fornecer visão mais clara das problemáticas e interconexões do tecido normativo. Mais precisamente, a metodologia da lógica deôntica examina os relacionamentos entre as proposições, incluindo deveres ou poderes, o que confere maior criticidade e cientificidade na elaboração da definição da norma jurídica. Por isso, há de se considerar a lógica deôntica como a metodologia mais idônea a explorar a linguagem jurídica (positivista), sendo que, por meio da análise da linguagem, é possível colher todas as esfumaturas do que pode aparecer em expressões como “é obrigatório que” ou “é permitido que” ou “é proibido que”, etc. 

As fórmulas utilizadas pela lógica deôntica são sempre suscetíveis de dupla interpretação, sendo que a simbolização indica a explicação do comportamento lógico dos conceitos normativos, além de ter o significado de prescrição do comportamento em si. A partir desta análise, a lógica deôntica apresenta, ao mesmo tempo, um valor prescritivo e outro descritivo dos seus enunciados. Diversamente da linguagem natural, em que as locuções possuem significados que dependem do contexto no qual estão inseridas, pela lógica deôntica os enunciados são consequência da prefixação de significados lógicos que objetivam verificar sua veridicidade ou falsidade. A lógica deôntica mira justamente: (i) individualizar todos os princípios que definam um comportamento, pensamento ou enunciado normativo de forma perfeitamente racional; (ii) prescrever a adesão a tais princípios (v.g. os princípios da identidade, da não contradição e da exclusão do terceiro), de forma a aplicar, necessariamente, o método lógico racional à atividade interpretativa da lei. 

A aplicação da lógica deôntica à interpretação da lei, por sua criticidade, ajuda a evitar resultados hermenêuticos contraditórios, paradoxais ou até contrários ao próprio “senso de justiça”. Portanto, cada interpretação, de acordo com a lógica deôntica, deverá se basear em determinadas premissas para produzir um pensamento racional, a partir do qual seja possível extrair deduções coerentes. Vale o dito: Não é possível produzir conclusões falsas a partir de premissas verdadeiras. É fruto da lógica deôntica a lógica das proposições normativas e das suas funções, por meio da metodologia que destaca todas as interferências e incoerências que representam as assim chamadas “fórmulas paradoxais”. O que, na metodologia da lógica deôntica, nos ajuda a criar, verificar e interpretar a coerência entre o significado, o juízo e o enunciado de qualquer proposição, em conformidade com a racionalidade prática e científica.

Notas___________________

1 PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. “Discurso sobre a dignidade do homem”. Tradução de Maria de Lurdes Sigardo Ganho. Lisboa-Portugal: Edições 70, 2011. VALVERDE, Antônio José Romera. “Aportes a Oratio de hominis dignitate de Pico della Mirandola”. Rev. Filo., Aurora, Curitiba, vol. 21, n° 29 p. 457-480, jul./dez. 2009.

2 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo G. Bonet. “Curso de Direito Constitucional”. São Paulo: Saraiva, 2009. MORAES, Alexandre de. “Direito Constitucional”. São Paulo: Atlas, 2012.

3https://www.cortecostituzionale.it/documenti/convegni_seminari/STU_196_La_dignita.pdf

4 WHITAKER, C. W. A. “Aristotle’s de interpretatione: Contradiction and dialectic”. Oxford: Clarendon Press, 1996.

5 FEINBERG, Joel. “Rights, justice, and the bounds of liberty: Essays in Social Philosophy”. Princeton University Press, 2016.

6 DWORKIN, Ronald. “Levando os direitos a sério”. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

7 BARROSO, Luís Roberto. “A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo”. Belo Horizonte: Fórum, 2016; CANOTILHO, J. J. Gomes. “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”. 1998; SARLET, Ingo Wolfgang. “A eficácia dos direitos fundamentais”. 2001. 

8 FERRAJOLI, Luigi. “Dignità e libertà”. In Rivista di filosofia del diritto. Bologna, Il Mulino, 2019.

9  BOBBIO, Norberto. “Introduzione alla filosofia del Diritto”. Torino, Giappichelli, 1948.

10 BOBBIO, Norberto. “Diritto e analisi del linguaggio”. Milano, Edizioni di Comunità, 1976.

11 DI BERNARDO, G. “Lógica deôntica e semântica”. Bologna, 1977.

12 WRIGHT Georg Henrik von. “Deontic logic: A personal view”. Ratio Juris, 12, March 1999, pp. 26–38.

13 KALINOWSKI, G. “Introduction à la logique juridique”. Paris, 1965.

14 CLARK, M. I paradossi dalla A alla Z. Milano, Cortina, 2004.

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