Edição

A proteção da mulher vítima de agressão

30 de maio de 2017

Compartilhe:

Evangelina Castilho DuarteI. Introdução

De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Avon, a mulher trabalha mais do que o homem; 27% das mulheres entrevistadas declararam já terem sido vítimas de violência doméstica, enquanto apenas 15% dos homens admitiram ter praticado esse ato; 59% das entrevistadas conhecem uma mulher que já sofreu violência doméstica; 62% reconhecem o que é violência psicológica.

Em Minas Gerais, a cada hora, quinze mulheres são agredidas fisicamente. Em três dias do mês de março de 2017, duas denúncias de estupro em áreas nobres da cidade de Belo Horizonte, assustaram os moradores.

Os operadores do Direito podem se perguntar, o que temos com isso?

Na verdade, todos temos que nos preocupar com essa situação, que, a despeito da legislação brasileira de proteção à mulher, ainda é recorrente, grave, e assustadora.

Embora a humanidade tenha chegado ao Século XXI, depois de passar por todas as dificuldades históricas para se alcançar a igualdade de direitos, o respeito pelo outro, a diversidade, a eliminação de discriminação, ainda ocorre violência contra a mulher nos âmbitos doméstico e familiar, na sociedade, no ambiente de trabalho, e, em especial, no espaço público.

A Constituição da República assegura a igualdade de todos, sem distinção alguma, impondo a garantia de tratamento igual a mulheres e homens, com idênticas oportunidades. Trata, pois, de direitos fundamentais e individuais.

Celso Ribeiro Bastos, na obra Comentários à Constituição do Brasil, 2o Volume, Editora Saraiva, 1a edição, p. 17, leciona que “a problemática da igualdade entre os sexos insere-se dentro de uma preocupação maior, qual seja: a da igualdade entre os seres humanos”.

E mais adiante, p. 18, esclarece que a Constituição adota “estatuição de uma igualdade absoluta de direitos entre homens e mulheres”.

Porém, quando a lei maior não é suficiente para prover esses direitos, é indispensável a edição de lei que especifique os direitos e as obrigações daqueles que devem assegurá-los, tratando das políticas públicas assecuratórias, e dos meios de exercício desses preceitos.

Assim, foi necessária a edição da Lei Maria da Penha.

A violência contra a mulher decorre do patriarcalismo, quando o homem se considera como o ser dominante, merecedor de respeito reverencial e de temor, obrigando a mulher a sujeitar-se às suas vontades, ordens e caprichos.

Ao agredir, assediar, estuprar, o homem está dominado por seus instintos mais primitivos, agindo sem a humanidade que o deveria revestir.

A cada mulher agredida, assediada, estuprada ou desrespeitada, são todos os seres humanos que estão sendo violados em seu direito à igualdade, à não discriminação, e ao respeito mútuo.

II. Lei Maria da Penha

Falar da Lei 11.340/06 é falar da situação da mulher na sociedade, na família e na sua relação com os homens. É, também, fazer um passeio sobre a história do feminismo no mundo, e, em especial, no Brasil.

A situação de inferioridade da mulher na socie­dade deve-se ao patriarcalismo, à concepção de que o homem, por ser fisicamente mais forte, é o animal dominador, provedor, e, por consequência, aquele que dita as regras e ordens, também na família.

Essa questão é debatida por vários enfoques, e só ganhou repercussão no meio jurídico, no Brasil, com a edição da Lei 11.340/06, em decorrência de imposição da Corte Interamericana de Direitos Humanos depois de reclamação apresentada por Maria da Penha Fernandes, vítima reiterada de violência doméstica.

O Dia Internacional da Mulher, 8 de março, foi instituído pela ONU para lembrar o massacre de operárias, nos Estados Unidos, em 1827, que fizeram greve para reivindicar salários iguais aos dos homens e jornada de trabalho de doze horas, pois as mulheres trabalhavam dezoito horas por dia.

A mudança dessa situação de inferioridade já dura mais de um século, pois em 1862, nos Estados Unidos, ainda se considerava que o homem podia agredir fisicamente a mulher, para corrigi-la.

Embora nos anos 1960, o feminismo tenha despontado e proliferado, mesmo nos Estados Unidos a mulher era considerada indivíduo de segunda classe, devendo respeito ao homem, e só ocupando empregos de menor relevância, desde que houvesse consentimento do marido ou do pai.

No Brasil, até 1962, a mulher casada era considerada relativamente incapaz e dependia de consentimento do marido para os atos da vida civil, desde adquirir bens até obter emprego e gerir o produto do seu trabalho.

Só com a Lei 4.121/62 é que a mulher casada passou a ser considerada absolutamente capaz, não mais dependendo do consentimento do marido para os atos da vida civil.

O Código Civil de 2002 transformou o pátrio poder, interpretado como o poder do pai de família, ou seja, o poder do homem, para poder familiar, instaurando sistema de compartilhamento de deveres entre homem e mulher na gerência da sociedade conjugal e em relação aos filhos.

Há bem pouco tempo é permitido à mulher pensar, escrever, definir, escolher, atuar, agir por si, e sozinha.

A emancipação feminina é a história de um com­bate, mediante processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade da pessoa humana (Joaquim Herrera Flores, in Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência).

A defesa da mulher, seja em juízo, seja na sociedade, ainda esbarra nos chamados dez mitos sobre a violência doméstica, sendo impositiva uma mudança de paradigma para se conduzir e decidir processos que envolvem violência de gênero.

A violência contra a mulher afeta inúmeras pessoas. A vítima direta é a mulher, e de forma indireta são atingidos os filhos, os ascendentes, os agregados, que presenciam ou a quem é relatada a agressão. E afeta, ainda, a própria sociedade, com a desvalorização da mulher, com a perda de dias de trabalho pelo agressor e pela própria mulher, com o afastamento da mulher do mercado.

Ao presenciar a agressão, os filhos tendem a reiterar o comportamento agressivo do pai, e as filhas tendem a copiar a passividade da mãe, criando um círculo que se repete e prejudica o avanço da sociedade no rumo da não discriminação.

A violência contra a mulher ocorre em todas as classes sociais e econômicas da sociedade, e em todos os grupos étnicos e religiosos. Não há evidência de que algum nível profissional, de classe social, ou de cultura seja imune à violência doméstica. Profissionais, ricas e educadas, são tão propensas à violência como qualquer mulher.

Também não se pode atribuir a violência ao uso de álcool e droga.

Os agressores que usam bebidas alcóolicas ou drogas o fazem como desculpa para seu comportamento violento. Ainda que haja uma correlação entre o abuso de droga e álcool e a violência doméstica, um não é causa do outro. O abuso de álcool e droga diminui a inibição e poderia aumentar a frequência ou gravidade das agressões.

As vítimas não tem opção de sair do ambiente de violência, pois sua autoestima está enfraquecida, e acreditam que não tem para onde ir, onde se sintam seguras contra o agressor.

Há um longo caminho a ser trilhado na direção da igualdade efetiva entre homens e mulheres na sociedade brasileira, e a Lei 11.340/06 dá os primeiros passos para assegurar direitos humanos, constitucionais e fundamentais à mulher.

O respeito aos direitos da mulher é devido pelas autoridades, pelos funcionários, pelos agentes e pelas instituições públicas, sendo impositiva a adoção de medidas jurídicas que exijam do agressor a abstenção de práticas de perseguição, intimidação, ameaça, danos à vida e à integridade da mulher.

A Lei 11.340 é lei que tem fundamento na Constituição da República e que visa a dar efetividade aos preceitos ali contidos, constituindo instrumento de ação afirmativa.

Nem mesmo as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha dão efetividade à segurança da mulher, pois o agressor tende a violar a determinação judicial, e reiterar a agressão.

Somente a educação de jovens é que trará efetividade à aplicação da Lei Maria da Penha, com a conscientização de possíveis agressores e prováveis vítimas.

III. Formas de violência                         

A lei dispõe serem formas de violência doméstica e familiar contra a mulher:

Violência física entendida

Como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde física.

Violência psicológica

Entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique ou perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir, ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

 

Violência sexual

Entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso de força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usa qualquer método anticonceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,  chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais ou reprodutivos.

Violência patrimonial

Entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores, direitos ou recursos econômicos, incluindo dos destinados a satisfazer suas necessidades;

Violência moral

Entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Todas as formas de violência tem por objetivo a prevalência do homem como superior na relação familiar ou de gênero, como instrumento para reforçar o patriarcalismo entranhado na cultura.

Ferramentas para o combate à violência doméstica e familiar não se restringem às políticas públicas nas esferas criminal e judicial, mas dependem, necessariamente, do fortalecimento da mulher como ser humano independente e autônomo.

Assim, é indispensável promover o respeito a si mesma e aos demais, dando à mulher meios para se colocar na sociedade como indivíduo atuante e produtivo.

É, também, indispensável elevar o nível cultural da mulher, proporcionando a aquisição de profissão, o aprimoramento profissional, o conhecimento científico, e interpessoal, para que essa melhora contribua para sua compreensão da submissão em que está inserida.

Necessária, ainda, a dependência econômica, intrinsecamente relacionada com a elevação do nível cultural, para que não se submeta ao homem, por dele depender.

Depende da mulher a mudança de paradigma cultural da geração futura, educando os filhos com igualdade de gênero, sem determinar a existência de atividades masculinas e atividades femininas, de comportamentos masculinos e comportamentos femininos.

Aqui, cabe uma observação, quando o homem – companheiro, marido ou filho, executa serviços domésticos, não está prestando ajuda, pois aquelas tarefas não são exclusivas da mulher, por serem necessárias para toda a família. O que faz é cooperação, participação nas tarefas que interessam e beneficiam a todos da família.

E mais, é necessário que a vítima de violência doméstica e familiar busque ajuda profissional. Se não tiver acesso a psicólogos e psiquiatras pela rede pública, que ao menos procure ajuda da equipe multidisciplinar dos Fóruns, ou que converse com amigas mais esclarecidas.

É indispensável que o agressor seja denunciado.

IV. Conclusão

O espírito da Lei Maria da Penha é de trabalho em rede, com envolvimento de toda a sociedade, por meio das suas instituições, entidades e cidadãos, sendo necessária a sensibilização dos juízes para sua interpretação sistemática, conforme microssistema em que está inserida, com a finalidade de superar paradigmas que prejudicam a igualdade de gênero.

O juiz deve, ainda, se dispor a uma oitiva qualificada e paciente da vítima, do agressor e das testemunhas, dadas as peculiaridades do processo que envolve violência contra a mulher, já que os fatos, na maioria das vezes, se passam no interior do lar.

Ainda há muito a ser conquistado e vencido, não mais por permissão do homem, mas por opção da própria mulher, por conscientização de que é sujeito da sua própria existência.

Esses são os passos iniciais, pois a violência contra a mulher só será combatida e a igualdade de gênero só será alcançada quando, com a mesma efetividade da Lei Maria da Penha, forem combatidos o tráfico de meninas e mulheres, a discriminação salarial, a inviabilidade na carreira, a exploração sexual e o turismo sexual, o assédio moral e sexual no ambiente de trabalho, a coisificação feminina pela mídia.

 

Referências bibliográficas _________________

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Editora Nova Fronteira, 2. ed., Rio de Janeiro, 1980.

DIAS, Maria Berenice. (Coordenadora). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. Editora Revista dos Tribunais, 1. ed., São Paulo, 2011.

DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os Direitos LGBTI. Editora Revista dos Tribunais, 6. ed., 2014.

FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei Maria da Penha: O Processo Penal no Caminho da Efetividade. Editora Atlas, 1. ed., São Paulo, 2015.

FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão; NEWTON, Paula Christianne da Costa. (Coordenadores). Cidadania Plural e Diversidade: A Construção do Princípio Fundamental da Igualdade nas Diferenças. Editora Cerbatim. 1. ed. São Paulo, 2012.

FOUCAUT, Michel. História da Sexualidade: O Uso dos Prazeres. Graal, 12. ed., São Paulo, 2007.

LIMA FILHO, Altamiro de Araújo. Lei Maria da Penha: Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Editora Mundo Jurídico, 3. tiragem, São Paulo, 2010.

SANTOS, Cecília MacDowell. IZUMINO, Wânia Pasinato. Violência Contra as Mulheres e VIolência de Gênero: Notas Sobre Estudos Feministas no Brasil. Revista E.I.AL. Estudos Interdisciplinares de América Latina y El Carybe. Universidade de Tel Aviv, 2005.

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade: Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos. Editora Método. 2. ed. atualizada. São Paulo, 2012.

VIEIRA, Tereza Rodrigues. (Organizadora). Minorias Sexuais: Direitos e Preconceitos. Editora Consulex. Brasília, 2012.