Campanha permanente pela cidadania

31 de outubro de 2010

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Segundo levantamento realizado em 2006 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 12% dos brasileiros ainda não têm registro de nascimento. Em maio de 2008, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro lançou a campanha institucional permanente “Cidadania, eu defendo”, com o objetivo de erradicar o sub-registro de nascimento e dar acesso à documentação básica para uma parcela da população que não possui nenhum documento. No primeiro ano, em uma grande ação social na Central do Brasil, com o tema “Cidadão tem nome e sobrenome”, foram atendidas cerca de 7 mil pessoas. Este ano, após a 3ª edição do evento, em 19 de maio — data em que se comemora o Dia Nacional da Defensoria Pública —, a campanha permanente superou a marca dos 150 mil atendimentos. “Isso indica o resgate do sujeito do anonimato, significa introduzir o cidadão na sociedade, porque sem nome e sobrenome oficial ele não existe”, afirmou o Defensor Público-Geral.
Justiça & Cidadania – Como começou a campanha “Cidadania, eu defendo”?
José Raimundo Moreira – Em janeiro de 2007, verificamos um vácuo na questão da documentação básica e na erradicação do sub-registro civil de nascimento. Somente os núcleos de bairro não davam conta daquela demanda constante. Em dezembro de 2007, o governo federal lançou um decreto que visava erradicar o sub-registro civil de nascimento e o fornecimento de documentação básica. O primeiro trabalho nesse sentido foi realizado no Amazonas, e resolvemos repetir isso no Rio de Janeiro. Em 2008, decidimos então comemorar o Dia Nacional da Defensoria Pública, 19 de maio, de uma forma diferente, na rua, trabalhando para o povo. Criamos, permanente e institucionalmente, a campanha “Cidadania, eu defendo”. No primeiro ano, na Central do Brasil, o mote foi “Cidadão tem nome e sobrenome”, visando erradicar o sub-registro oficial de nascimento. Isso indica o resgate do sujeito do anonimato, significa introduzir o cidadão na sociedade, porque sem nome e sobrenome oficial ele não existe.
JC – Quantas pessoas já foram beneficiadas?
JRM – Apenas em 19 de maio de 2008, 7 mil pessoas foram atendidas. Ao longo de 2008, realizamos várias iniciativas também ligadas à campanha, porque o dia 19 não é a única ação, e em 2009 repetimos o evento do Dia da Defensoria na Central, dessa vez com o tema “Uma família que forma cidadãos”. Partimos para ações junto às escolas, para orientação de alunos, professores e pais, mas sem perder de vista o sonho de erradicar o sub-registro. De lá para cá, a campanha teve mais de 152 mil atendimentos, 89.800 expedições de ofícios, entre outros dados. Em 2009, passamos a fazer a atividade na Praça XV, naquele ano foram 6.230 atendimentos. Em 19 de maio de 2010, atendemos 5.322 pessoas, também na Praça XV.
JC – E como funciona o atendimento?
JRM – Fazemos um trabalho diferenciado. Quando acontece um desastre natural como o que houve recentemente em Niterói, em que as casas são soterradas com tudo, o cidadão fica sem documentação. Muitas pessoas vieram de algum outro estado para o Rio de Janeiro, e sem dinheiro para comer, muitas vezes, ninguém irá ao seu estado tirar novos documentos. Temos um sistema que identifica, por entrevista, onde aquele indivíduo foi registrado ou onde ele nasceu. Enviamos um pedido para o tabelião registrador da localidade, com as informações que nos foram passadas, como nome, data de nascimento, filiação e solicitamos uma segunda via da certidão. Já enviamos o pedido com o porte pago para o retorno, nem os Correios ou o cartório pagam, e pedimos também a gratuidade da 2ª via. Isso tem tido êxito de 80%. Não há cartório, por mais que fique no interior e tenha menos estrutura, que não se sensibilize com isso. Às vezes não respondem, ou porque não acharam, ou porque não era de lá. É como se o cidadão fosse lá retirar sua certidão. Com ela nas mãos, encaminhamos o indivíduo para o Detran, a fim de que retire a 2ª via da carteira de identidade, a Setrab também fornece a carteira de trabalho gratuitamente, e a pessoa recomeça a vida.
JC – Há de fato uma redução no número de pessoas sem documentos?
JRM – Isso tem dado um resultado muito grande. Em 2009, o governador Sérgio Cabral entregou conosco, na Central do Brasil, documentação para quatro, cinco gerações que não tinham nenhum documento. Porque se você não registra seu filho, ele não pode registrar o filho dele e assim sucessivamente. A documentação foi entregue gratuitamente. Temos uma parceria com a Anoreg, que nos atende, e nessas ações específicas eles inclusive colocam um estande no local. Este ano, conseguimos que alguns índios que vivem em uma aldeia em Camboinhas, em Niterói, recebessem a certidão de nascimento incluindo o nome indígena. Entregamos o documento a vários deles, que já tinham certidão de nascimento, mas apenas com o nome comum. Eles foram registrados novamente, agora com o nome indígena junto do nome comum. Ficaram muito felizes, porque a documentação registra de alguma forma sua origem indígena, portanto eles não se tornaram “homens brancos”.
JC – Ainda há muita desinformação sobre a Lei 6.015?
JRM – Estamos fazendo uma campanha intensa para divulgar a gratuidade da primeira certidão de nascimento. Muitas pessoas nem sabem que podem sair da maternidade com o documento do hospital, levar diretamente ao cartório e retirar gratuitamente a certidão de nascimento. Eu mesmo registrei meu filho gratuitamente, no Catete. Mas, obviamente, eu tinha meus documentos. Hoje a certidão de nascimento traz informações que incluem um número de registro geral, e se você perder seus documentos, com esse número o cartório imprime outra. A informatização ajuda muito. Mas a nova lei das certidões tem outras coisas interessantes, como o expurgo da expressão “pai desconhecido”. O registro é feito apenas em nome da mãe, não há mais o constrangimento da expressão. Em Belford Roxo, um dos municípios mais pobres do Rio de Janeiro, cerca de 15% da população não existe formalmente. Faço um apelo aos cartórios para que continuem acreditando na Defensoria Pública, porque falsificações existem em todo lugar, mas estamos trabalhando para que haja um ofício padrão, com numeração sequencial, com selo. Pretendemos implantar ainda este ano o ofício padrão para toda a Defensoria. Há núcleos de bairro que disponibilizam dias inteiros apenas para atender ofícios, desde pedidos de certidões negativas criminais, de 1ª e 2ª via de documentos, até registro tardio.
JC – Ter documentação registrada ajuda na luta pelos direitos da cidadania?
JRM – O cidadão que não tem registro, que nunca teve, nem sabe que possui direitos. Não pode levar o filho ao hospital, e  nem matriculá-lo na escola. Não pode procurar um emprego formal, e nem votar. Ele vive totalmente à margem. O que mais escutamos são reclamações sobre filhos fora da escola, sobre acesso a emprego formal. Um motorista sem registro, por exemplo, não tem acesso, embora saiba dirigir, porque não pode tirar a Carteira Nacional de Habilitação. O IBGE contabiliza 190 milhões de habitantes porque ele vai à casa das pessoas. Mas tivemos cerca de 100 milhões de pessoas participando das eleições, ou seja, há uma lacuna na documentação formal que afeta a democracia. Isso é preocupante.