Estado laico, seus exatos limites no Brasil

5 de novembro de 2005

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Nos últimos tempos, neste país, como também em muitos outros, vê-se incrementada a chama da continuada polêmica acerca das fronteiras exatas do “temporal” e do “espiritual”, do “religioso” e do “secular”. De relevo nos Estados Democráticos, que o são, ao menos formalmente, todos neste início de século e milênio, avançam na opinião pública correntes de pensamento que pretendem o completo isolamento dos princípios religiosos, ou fundados em religião, do regramento jurídico. Algumas chegam a ponto de abranger, na desconsideração, ditames morais básicos, no reduzir do “jurídico” ao “utilitário puro”, sem periferia valorativa. Já pelo lado oposto, em determinadas nações, radicais fundamentalistas desejam impor suas crenças a todos, ou por pressão psicológica e violência física, ou pelo utilizar, em parcialidade intensa, do aparelho estatal, como um todo ou em áreas mais sensíveis.

Dando-se mais destaque à realidade pátria, mas em paralelo a outras, em maior junção, observa-se que na era colonial, a teor do ocorrido na “Ibero-América”, havia a total predominância da Igreja Católica Apostólica Romana, com exclusão de qualquer outra confissão ou posição. Naqueles tempos, não saudosos da Inquisição, prestigiada pelo absolutismo monárquico, discrepar-se da religião oficial significava atentado à ordem pública, no sancionar de extrema severidade. Embora, no rigor normativo não fosse crime o simples fato de “pensar contra”, na prática o era, e com base em denúncias investigadas e julgadas pelo mesmo órgão. Tal ocorreu, para mais ou para menos, em todos os territórios submetidos às coroas espanhola e portuguesa. Assinalando-se que, na “América Britânica”, de predomínio protestante, havia parcial tolerância, não total. É que, para suas terras, mudaram-se católicos ou evangélicos de denominações perseguidas que, em maioria, o faziam para fugir da prepotência da reformada Igreja da Inglaterra. No caso dos primeiros, foi criada a colônia, e atual estado, de Maryland.

Já no período do Império, por força dos ventos liberalizantes emanados das revoluções francesa e estadunidense, e da evolução da monarquia britânica, foi mitigado tal quadro de tirania. A Constituição de 1824, outorgada por Pedro I, e inspirada na Carta Francesa da “restauração” pós-napoleônica, declarou o catolicismo romano religião oficial, porém “tolerando” as outras crenças, com imposição de não poderem seus adeptos reunir-se em casas “com forma de templo”. Estatuiu a nomeação dos bispos pelo Imperador, no referendo papal, e o placet do monarca para a eficácia de bulas e documentos correlatos, do Pontífice. Exigiu a fé católica para os deputados, e, por presumida distração, não a exigiu para os senadores. Tal sistema foi o mesmo, na época, com poucas variações, adotado nas cartas constitucionais da Argentina, do Chile, da Colômbia, do Peru, do México etc. E aliás, coincidiu aqui com o começo das levas imigratórias no Brasil e uma das quais, a alemã, fez exsurgir, a partir das províncias gaúcha e catarinense, sólida minoria protestante luterana, que antecedeu a batista, a metodista, a presbiteriana e, tempos depois, a pentecostal. Nas últimas décadas do reinado de Pedro II, leis ordinárias já abarcavam o registro civil de nascimento, independente do batismo sacramental, e já se debatia sobre a legalização do “matrimônio dos acatólicos”.

Proclamada a República, e tendo como uma das causas de relevo a questão religiosa, na revolta de clérigos contra o reputado favorecer governamental à entidade maçônica, foi por quase todos saudado o decreto de separação “Igreja-Estado”, consolidado pela Constituição de 1891, de moldura americana. Todas as religiões e crenças obtiveram liberdade e igualdade. O ordenamento jurídico não mais era subordinado a ditames eclesiais de qualquer tipo. E, não por coincidência, no âmbito católico, moderado progresso qualitativo superou longo tempo de estagnação a propósito. Conflitos ocorreram, mas de baixa intensidade, causados por “integristas”, de um lado, e por exacerbado “positivismo”, de outro.

A situação referida alterou-se com a 2ª Carta Republicana de 1934 de inspiração mais eclética, e persistiu, com mudanças de leveza, até o atual Pacto Político de outubro de 1988. O regime de separação, com liberdade e igualdade dos cultos e posições correlatas, deixou de ser absoluto pela norma da colaboração estatal em assuntos de público interesse, pela assistência religiosa às corporações militares e pela obrigação do ensino religioso nas escolas públicas, facultada a participação dos alunos por vontade de seus responsáveis, ou deles, se maiores. Porém, não se pode deixar de comentar que, na prática, e sobretudo nas regiões interioranas, as autoridades católicas eram, como antes, reverenciadas pelas “civis” em bem maior dimensão do que as de outros credos ou denominações. Na fase mais dura do ciclo autoritário pós-1964, poderosos oficiais de altas patentes proclamavam sua admiração por conhecida associação tradicionalista, que faz da intolerância, no increpar das diferenças, o ideal a ser alcançado. Mas, no viés reverso, a grande renovação da Igreja Católica pelo Concílio Vaticano II abriu grande espaço para o entendimento com suas congêneres e em abrangência universal. Dissertação a respeito, inclusive nas variantes tais como “social libertadora” e “renovadora em espiritualidade”, por certo, descabem aqui.

No regime constitucional hodierno, ao mesmo tempo em que se garante a liberdade de religião, crença, filosofia ou pensamento concernente, frisa-se o respeito às liturgias e outros elementos inerentes. Acentua-se a neutralidade do ensino oficial, permitido o ensino religioso aos que o desejem. Mantém-se a colaboração limitada, tal qual delineada nas Cartas pretéritas.

Pelo resumo histórico contido supra, e que foi semelhante ao de outros Países da América Latina; alguns dos quais, como Argentina, Paraguai e Colômbia, mantém proteção estatal ao catolicismo; e outros, como México e Cuba, passaram ou ainda passam por sistemas normativos de hostilização; e em se abstraindo do campo “papista” para abranger os demais, tem-se que, no Estado Democrático de Direito, quer republicano, quer monárquico-constitucional, o laicismo é imprescindível desde que não extrapole para o indiferentismo e para a agressão ao sentimento da maioria. Essa observação é cabível na plenitude, diante do que temos verificado, aqui e alhures.

Sendo o povo brasileiro, pode-se dizer, 90% cristão declarado no somatório dos católicos, evangélicos e espíritas-cardecistas, não se podem conceituar como democráticas propostas de eliminação da tipicidade criminal em qualquer modalidade de aborto provocado. Nem outras, na esfera biológica ou genética, implicando em sacrifício intenso da vida embrionária. Nem algumas mais recentes, de proibição de cruzes em dependências judiciais. Para que o posicionar da maioria não seja dominado pelo da minoria, faz-se mister que o delicado problema das uniões homossexuais seja solucionado em ponderação; ou seja, admitindo-se normatividade analógica às uniões de fato “homem-mulher”, e consectários múltiplos. Mas não o casamento, cujo grande relevo, cultural e espiritual, não permite que fuja do padrão básico para a imensa maioria cidadã.

Em verdade, dos textos constitucionais contemporâneos, o que trata da matéria de modo mais preciso e justo é o da Espanha(1978), que se seguiu a longo tempo de penosidade nos quase 40 anos de ditadura franquista, e que se seguiu a horríveis massacres de um lado e de outro do “muro” na guerra civil entre 1936 e 1939. Proclama a nova Carta, a par da liberdade de culto e consciência, que nenhuma religião terá caráter estatal. Mas, também, que o Estado levará em conta a crença da maioria da população e, em conseqüência, terá relações com a Igreja Católica e as demais confissões. Aliás, tais ditames parecem não terem sido observados quando da recente legalização, naquele País, dos referidos casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Sobre isso, todavia, melhor dirá o Tribunal Constitucional que, salvo engano, já foi provocado a propósito.

Sendo tal matéria inerente ao bom senso-elemento impostergável no interpretar de qualquer norma de direito- soa como dispensável, no regramento pátrio, norma semelhante à do País de Cervantes. A Constituição Nacional, como está redigida na parte das “garantias de pedra”, atende, perfeitamente, ao interesse majoritário e minoritário no que tange ao estamento confessional positivo, negativo ou de indiferença. Isto, ademais, pela tradição brasileira de tolerância, que fez sentir sua força, inclusive, nos tempos de antanho acima descritos. Episódios sinistros, como a Noite de São Bartolomeu, na França de fins do Século XVI, sempre foram, em nossa realidade, de grande distância. Houve sim, em áreas interioranas, ataques a igrejas reformadas incentivadas por clérigos católicos, mas não de intensidade. Houve, já em tempos bem próximos, agressão à imagem de Maria Aparecida, em programa televisivo, por presbítero evangélico de denominação fundamentalista. Há, no presente, conflitos em áreas sociais de exclusão entre evangélicos e umbandistas (ou profitentes do candomblé e cultos “afro-brasileiros” em geral). Mas, na generalidade, prepondera o respeito mútuo.

Dentro da, hoje assaz festejada, lógica do razoável, ensinada por Recasens Siches na Espanha dos conturbados anos 30, e no cotejo de nossa Lex Legum, vistos os elementos descritos acima, podem ser extraídas conclusões, no espancar de quadro dubitativo, que dá margem às “invasões de espaços” por uns e por outros, e por fas e nefas; de grande risco à paz pública e à própria estabilidade democrática. Na objetividade de modelo americano, ousa este autor aduzi-las pelos tópicos que se seguem:

1) A garantia constitucional da liberdade e igualdade entre as entidades religiosas ou, de qualquer forma, pertinentes à religião, mesmo por negação ou indiferença, não pode ter o condão desconsiderativo da fé em Deus professada pela grande maioria do povo brasileiro, e, aliás, insculpida na Carta Magna em termos invocativos, no Preâmbulo. Nem igual condão, quanto ao relevo, aceito por nove entre dez brasileiros, da figura redentora de Jesus, “o Cristo”.

2) Logo, expressões teístas ou cristãs, em discursos ou escritos oficiais, desde que sem detalhes confessionais, e sem ofensas ou ironias aos que pensem diferente, são cabíveis. Como o são, outrossim, as cruzes em repartições públicas dos três poderes estatais. No que tange às imagens ou ícones da Virgem Maria e de Santos, inerentes à denominação católica, hoje majoritária na majoritária profissão de fé cristã, vê-se recomendável que, nas ditas repartições, sejam restritos a gabinetes de autoridades que os queiram. Quanto aos crucifixos, também do catolicismo, mas de grande tradição histórico-cultural, faz-se mister analisar-se de local em local, “caso a caso”.

3) Eventos religiosos, de qualquer tipo, que sejam promovidos pelos poderes públicos, se não for possível o efetivar ecumênico, devem ser desmembrados em parte cristã-católica e parte cristã-evangélica, segundo os sentimentos que hoje atinam à maioria e à maior minoria de nosso povo. Aqui dizendo respeito ao “Dia da Justiça” e datas assemelhadas.

4) O ensino religioso nas escolas públicas, de primeiro e segundo graus, desde que facultativo e desprovido de avaliação aprobatória ou classificatória, deve ser ministrado por docentes indicados pelas confissões da maioria ou maiores minorias dos discentes. Contudo, na vedação de incentivo à intolerância, a preconceitos pessoais, ao ódio ou a meios ilícitos de modificação do ordenamento jurídico.

5) Qualquer atitude, em nome de fé religiosa ou assemelhada, no prejudicar da saúde física ou psíquica de qualquer pessoa, ou que afaste criança ou adolescente do convívio dos pais, ou tenha escopo, comprovado quantum satis, de enriquecimento material, deve ser repudiada e punida como crime ou contravenção.

6) Normas jurídicas propostas que, v.g, reduzam o casamento a um nada, permitam-no entre pessoas do mesmo sexo (estas, devendo ser protegidas pela união estável, pura e simples), desprezem a instituição familiar monogâmica, permitam o aborto fora de casos bastante excepcionais, autorizem “clonagem humana” ou sacrifício de embriões como regra; por afrontarem o sentimento da grande maioria da população pátria, não devem ser aprovadas. Isto, sob pena de lesão ao regime democrático, em seu espírito.

7) O direito, e até o dever, das Igrejas (e congêneres) de lutar pela justiça social, pelo desenvolvimento sustentado e integral e pela ética no trato da res publica, não pode extrapolar para identificações com partidos políticos ou lideranças políticas. Este autor ousa também propor que legislação eleitoral renovada ou emenda constitucional, estatua inelegibilidade de presbíteros (padres, pastores, rabinos e correlatos), salvo se licenciados de seus ministérios religiosos e, após investidos, durante toda a extensão dos mandatos. E que seja considerada infração a propaganda em igrejas, templos, sinagogas, centros e “terreiros”, durante missas, cultos e celebrações, de partidos políticos ou de candidaturas. Também, durante tais atos, por divulgação radiofônica ou televisiva, ou por formas “midiáticas” de força semelhante.

Finalizando e esperando o autor que sua opção confessional e denominacional não tenha prejudicado a necessária isenção; salienta que, para os que crêem em algo transcendente ao material e tenham consciência cidadã, o Reino de Deus e o Reino de César jamais podem ser confundidos. Mas, para todos, crentes, indiferentes e descrentes, que combatam pela felicidade humana, em todas as dimensões, no espírito de universalidade e no perseguir da utopia que um dia será realidade, nesse dia tudo se agregará em convergência.