Edição

“Joint Venture” responsabilidade no fracasso do empreendimento

31 de agosto de 2008

Compartilhe:

APELAÇÃO CÍVEL N° 2008.001.00101

Apelante 1:     HI TEC SHOP COMÉRCIO IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO LTDA.
Apelante 2:    TANDY CORPORATION (RECURSO ADESIVO)
Apelados:      OS MESMOS
Origem:         Juízo de Direito da 9ª Vara Cível da Comarca da Capital

Acórdão

APELAÇÃO. Contratos de distribuição e de franquia,
a ensejarem entendimento divergente quanto à sua natureza e a seus efeitos: sociedade de fato, inspirada por joint venture, sob a perspectiva da autora; franquia, na compreensão da ré. Resolução do pactuado por inadimplemento dos objetivos e metas comerciais estabelecidos. Agravo retido reeditado e rejeitado, quanto à suplementação da prova pericial, desnecessária para o estabelecimento do an debeatur, conquanto possa vir a ser relevante para a apuração, em liquidação, do quantum debeatur, certo que a parte autora formulou pedido ilíquido. Controvérsia acerca dos motivos e de quem lhes deu causa, para fins de assunção de responsabilidades pelos prejuízos do empreendimento. Os fatos e circunstâncias provados nos autos, após extensa dilação, em lide processada por mais de uma  década, autorizam a configuração de parceria, fun­dada em relação contratual explícita, conquanto atípica, em que os contraentes mantiveram suas respectivas  per­so­na­li­dades. Ainda assim, permanece o núcleo da controvérsia jurídica, que se concentra no comprome­timento de ambas empresas, ou apenas de uma delas, em relação à álea do empreendimento. Os mesmos fatos e circunstâncias demonstram que, em princípio, os con­tra­entes dispuseram-se a arrostar os riscos do negó­cio, constituindo verdadeira universalidade de pessoas (universitates personarum), amalgamada por interesses econômicos comuns, mas que, fracassado o projeto, o parceiro internacional esquiva-se de responder pelos riscos, como se estes não fizessem parte do negócio. Cabe ao parceiro internacional indenizar o nacional pelos pre­juízos do insucesso que a ambos atinge, já que se  frustrou a implantação da marca do primeiro no mercado brasileiro, por motivos a ambos imputáveis. Provimento do primeiro recurso, prejudicado o  segundo.

Vistos, relatados e discutidos estes autos da apelação cível n° 2008.001.00101, originária do Juízo de Direito da 9ª Vara Cível da Comarca da Capital, em que figuram, como apelante 1, HI TEC SHOP COMÉRCIO IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO LTDA., como apelante 2, TANDY CORPORATION (RECURSO ADESIVO), e, como apelados, OS MESMOS, os Desembargadores que compõem a Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ACORDAM, por unanimidade, dar provimento ao primeiro recurso, resultando prejudicado o segundo, nos termos do voto do relator.

Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 2008.
Des. Jessé Torres

Voto
Relatório a fls. 1.633-1.637.
A recorrente adesiva renova agravo retido e pretende vê-lo julgado apenas na hipótese de vir a dar-se provimento ao apelo da autora (v. fls. 1.613, item 97). Tal ressalva – processualmente imprópria, posto que o agravo, nessa modalidade, há de ser julgado como preliminar da apelação (CPC, art. 523), e não ao final e sob a condição de a esta ser dado provimento – se compadece, todavia, com o objeto do agravo, que é a obtenção de esclarecimentos do perito acerca dos valores que indicou como correspondentes às despesas e prejuízos que a autora teria suportado em decorrência dos contratos celebrados com a ré. Fica claro que tais esclarecimentos, na percepção da agravante, somente seriam relevantes para o caso de acolher-se o pleito indenizatório da autora, posto que, então, necessário seria apurar-se, com rigor, a respectiva base de cálculo, ou seja, o montante induvidoso do alegado prejuízo.
A petição inicial formulou pedido ilíquido. Logo, o julgado também poderá sê-lo (CPC, artigos 459 e 460). A apuração do valor de verbas indenizatórias – o quantum debeatur –, se for o caso, pode ser remetido à liquidação, desde que o julgado defina o an debeatur, isto é, o direito material de que a parte vencedora seja titular. Segue-se que não seria, como não é, imperativo que o Juízo, a requerimento da ré, ordenasse ao perito a suplementação, no processo de conhecimento, de subsídios acerca das fontes em que se baseou para chegar àquele valor, possível que é a sua final apuração em liquidação.
Nada obstante a faculdade prevista no art. 435 do Código de ritos, cerceio não há à defesa se se transfere, para eventual futura execução de sentença, a determinação de valores tidos como devidos, sendo, como é, ilíquido o pedido articulado pela autora. Na liquidação, se a ela se chegar, haverá a oportunidade de exercitar-se o contraditório sobre a certeza das fontes dos valores compensatórios perseguidos pela autora, certo que sua depuração não obsta o exame do fundo da questão, sobre o qual os litigantes debateram à exaustão e esgotaram os meios dilatórios pertinentes.
Rejeita-se, destarte, o agravo retido.
O tema devolvido ao Tribunal é rico de matizes e desafios, não de todo apreendidos pela sentença.
As partes celebraram contratos escritos, estabelecendo relação obrigacional complexa, cuja natureza e efeitos não se deduzem de qualquer deles isoladamente, mas de seu conjunto, iluminado por fatos e circunstâncias peculiares.
A rigor, esses fatos e circunstâncias não suscitam divergências quanto à sua ocorrência, porém, sim, quanto à interpretação e à extensão de suas jurídicas conseqüências. Assim, não controvertem as partes quanto ao apoio que a ré deu à constituição societária da autora, bem como durante todo o curso da execução dos contratos, inclusive enviando funcionários seus para o exame da situação dos negócios e a elaboração de relatório, formulando diagnóstico, estabelecendo e reclamando medidas. Tampouco dissentem em relação ao fato de que havia políticas e diretrizes da ré às quais a autora estava obrigada, segundo os contratos, a seguir em sua atuação empresarial, no processo econômico de implantação da marca dos produtos da ré no Brasil, nos mesmos moldes que, há setenta anos, esta promove em escala mundial. Igualmente há consenso em que fracassou o empreendimento e que houve prejuízo.
Lide há na definição da índole dessa relação contratual e das responsabilidades pelo insucesso da marca no Brasil. Sustenta a autora que estabeleceu com a ré, em verdade, uma joint venture, com obrigações equivalentes às de parceiros e sócios de fato em empreendimento comum, cujo fracasso decorreu de equivocada orientação da ré, daí sua responsabilidade por assumir metade dos prejuízos. Entende a ré que cláusulas contratuais explicitavam a personalidade jurídica autônoma de cada contraente e a nenhuma ingerência na gestão dos negócios; imputa à má administração da autora o insucesso do empreendimento, pelo que esta há de responder, com exclusividade, aos prejuízos a que deu causa.
O desate do litígio passa, necessariamente, pela análise da natureza das avenças, mas não apenas, devendo estender-se à compreensão do contexto em que se desenvolveram, em confronto com o que ordinariamente acontece – tal a importância dos costumes como fonte do Direito Comercial – na execução de contratos da mesma espécie, quando pactuados isoladamente, e, ainda, no âmbito da alegada joint venture, para o fim de verificar-se se, no caso vertente, haveria, ou não, uma comunhão de deveres jurídicos que a ambos os contraentes obrigasse além da literalidade das cláusulas contratuais, quanto ao sucesso ou insucesso do empreendimento, daí emergindo, ou não, o direito perseguido pela autora e recusado pela ré.
Das lições de Daniel Amin Ferraz (Joint Venture e Contratos Internacionais, Belo Horizonte. Ed. Mandamentos: 2001) extrai-se ser joint venture um contrato de colaboração empresarial. Corresponde a uma forma ou método de cooperação entre empresas independentes, reconhecido, nos países em que prosperou, como uma sociedade entre sociedades ou uma associação de empresas. A característica essencial do contrato de joint venture é a realização de um projeto comum, com prazo determinado.
“É a celebração de um contrato entre duas ou mais empresas, que se associam, criando ou não uma nova empresa, para realizar uma atividade econômica produtiva ou de serviços, com fins lucrativos”, sintetizam Maria Bernadete Miranda e Clovis Antonio Maluf (O Contrato de Joint Venture como Instrumento Jurídico de Internacionalização das Empresas – acesso no endereço eletrônico www.direitobrasil.adv.br/artigos/artigo18.pdf), que aduzem ter origem no Direito anglo-saxônico, onde se desenvolveu a partir do Direito de Navegação, sendo hoje referida como uma special partnership (parceria especial), cujas características são “emprego em comum de meios ou recursos; busca de ganhos ou lucros comuns; em regra não possuem personalidade jurídica, reunindo duas ou mais partes, essas, sim, possuidoras de personalidade (…) na joint venture não se presume o poder do co-venture de agir em nome dos demais. Deverá ocorrer uma delegação de poderes para tal, explícita e normalmente limitada (…)”.
Da lição dos professores Miranda e Maluf destaque-se ponto especialmente relevante para a compreensão do instituto e sua aplicação ao caso de que se ocupam estes autos: “As joint ventures são de indiscutível importância em face da utilização como estratégia para alcançar mercados externos, transferência de tecnologia, aporte de capital e uso de franquias (…). Em razão de sua flexibilidade e facilidade de constituição, a definição de joint venture continua em permanente evolução, pois constitui (…) forma de possibilitar que países em desenvolvimento adquiram tecnologia, repartindo com os investidores os lucros das operações (…). Nas partnerships, a divisão dos lucros estará, automaticamente, vinculada à submissão das perdas, todos os partners estão, presumidamente, obrigados a assumir as perdas. Na joint venture, o sistema não é o mesmo. A diferença fundamental é que aqui não há que se falar em presunção na intenção de dividir as perdas, devendo ser essa, de alguma forma, acessória e explícita”.
A pena especializada de Carlos Alberto Ghersi esclarece ser joint venture “contrato pelo qual um conjunto de sujeitos de direito, nacionais ou internacionais, realiza aportes das mais variadas espécies, que não implicam perda da identidade e individualidade como pessoa jurídica ou empresa, para a realização de um negócio em comum, podendo ser este desde a criação de bens até a prestação de serviços, que se desenvolverá por um lapso de tempo limitado, com a finalidade de obtenção de benefícios econômicos financeiros, ou simplesmente valorização patrimonial”. (Contratos Civiles, y Comerciales. Ed. Astrea. Buenos Aires: 1998).
Alfredo José Santos sublinha que será vã qualquer tentativa de enquadrar a joint venture em determinado tipo societário brasileiro, dada a sua atipicidade jurídica. Recorda que o instituto nasceu no seio do sistema da common law, tendo sido importado e adaptado, na medida do possível, aos países cujo ordenamento deita raízes no sistema romano-germânico. Ademais, a joint venture foi estrategicamente desenvolvida para atuação no âmbito internacional, externamente às legislações empresariais de cada país. Daí arrematar que “a compreensão do fenômeno da joint venture exige a adoção de um procedimento diverso de análise, que não conduza à aplicação rígida da disciplina jurídica para enquadrá-la em determinado tipo legal, mas, sim, a individualizar como aplicáveis traços do regimento jurídico referentes àqueles tipos cuja regulamentação se acerte em maior ou menor medida aos elementos que estão na base do contrato em análise” (Natureza Jurídica dos Acordos de Joint Venture, Revista de Estudos Jurídicos UNESP, nº 12, jan./dez. 2003, págs. 189-201).
O curso evolutivo dessas formas de agregação empresarial constitui aspecto sensível e consagrado no Direito Privado brasileiro. Ao comentar as inovações que na matéria trouxe o Código Civil de 2002, Sérgio Campinho assinala: “Os grupos econômicos são uma realidade no mundo contemporâneo. Apresentam-se como uma técnica de exploração racional da atividade empresarial, na busca do atingimento de um processo de investimentos, pesquisa, produção e comercialização mais eficientes. A aglutinação empresarial é uma forma de encarar eficazmente os desafios da economia de escala. Fábio Konder Comparato testemunha o fenômeno: ‘Não há negar que os grupos econômicos foram criados, exatamente, para racionalizar a exploração empresarial, harmonizando e mesmo unificando as atividades das várias empresas que os compõem (…). Todos os sistemas econômicos, qualquer que seja o regime político que os acompanha, tendem a esse mesmo objetivo de agrupamento e coordenação empresarial. A empresa isolada é, atualmente, uma realidade condenada, em todos os setores, máxime naqueles em que o progresso está intimamente ligado à pesquisa tecnológica”. (O Direito de Empresa à luz do Novo Código Civil, págs. 311-312. Ed. Renovar: 2002). Nem se diga que a positivação, em norma jurídica, dos valores da economia de escala era desconhecida ao tempo dos contratos sob foco; basta lembrar que até mesmo em lei destinada à Administração Pública – esta notoriamente lenta e refratária na absorção de conceitos importantes na atividade empresarial –, a expressão “economia de escala” é utilizada expressamente, como condição para o parcelamento de contratos administrativos, desde a Lei nº 8.666/93, art. 23, § 1º.
Essas considerações doutrinárias conformam as primeiras conclusões acerca da natureza dos contratos celebrados pelas partes desta ação, sob a perspectiva da uma joint venture, a saber: (a) um contrato de distribuição de produtos de procedência estrangeira em território brasileiro, como aquele pactuado entre as partes, aos 22.03.91, com prazo de duração de cinco anos, é um dos objetos em que mais nitidamente se apresentam a conveniência e a oportunidade de uma joint venture; (b) somado a esse contrato de distribuição, o contrato de franquia e de licença do uso de marca, firmado entre as mesmas partes aos 30.11.93, com prazo de duração de seis anos, significou o instrumento de implementação do empreendimento, sendo a franqueadora a produtora estrangeira e a franqueada a distribuidora brasileira; (c) a aglutinação de esforços e capacidades se mostrou aos contraentes como a solução empresarial adequada, na medida em que a empresa estrangeira desejava introduzir os produtos de sua marca no mercado brasileiro e a empresa brasileira se dispunha a nesse sentido agir, submissa às diretrizes da produtora; (d) que era esse o propósito e a estratégia que animavam e balizavam a iniciativa, não deixa dúvida o fato de que a empresa brasileira não pré-existia ao empreendimento, tendo sido constituída especificamente para tal finalidade e sob a orientação da parceira estrangeira; logo, nenhuma experiência específica individualizada e personalizada a empresa nacional poderia oferecer à estrangeira, por isto que aquela foi por esta monitorada em todos os passos de sua concepção, de seu nascimento e de seu desenvolvimento; (e) a conjugação do contrato de distribuição com o contrato de franquia só poderia significar, no Direito Empresarial contemporâneo, a aglutinação de empresas para a consecução de empreendimento comum, ainda que duas fossem as pessoas jurídicas, vinculando o sucesso do empreendimento (a afirmação da marca estrangeira no mercado brasileiro) à eficiência de gestão necessariamente compartilhada dos meios mobilizados em prol daquele resultado, ou seja, a joint venture desenhada pela autora desde a peça inaugural.
Objetou-se que, nos termos dos mesmos contratos, ficou estabelecida a independência de cada contraente em face do outro, por isto que o prejuízo decorrente do fracasso do empreendimento seria total e exclusivo da distribuidora e franqueada, a autora, ineficiente na gestão de seus negócios.
O argumento falseia a realidade das relações havidas entre as partes e encontra resposta nos autos e na configuração das chamadas universalidades de pessoas, que, no peculiar contexto do caso vertente, é a ponte, a um só tempo, entre o antigo e o moderno da atividade empresarial, bem como entre os sistemas anglo-saxão e romano-germânico de organização da ordem jurídica.
Quanto à realidade das relações havidas entre as partes, o laudo pericial bem destacou pontos mercê dos quais fica clara a ascendência da empresa estrangeira sobre a brasileira, sendo aquela hegemônica na gestão do empreendimento comum, a saber: (a) a ré e seus representantes “terão o direito de, a qualquer tempo razoável, inspecionar as lojas, livros e registros da autora, bem como examinar o estoque e depósitos das lojas e, por qualquer forma, verificar os métodos de operação na medida em que forem relacionados à venda de produtos da ré”; (b) os contratos deveriam ser interpretados segundo as leis do Estado do Texas, EUA, onde tem sede a ré, e de lá também seriam os tribunais competentes para dirimir conflitos entre as partes; (c) a autora seria a responsável pela obtenção de autorizações e licenças pertinentes às atividades contratadas, porém, antes de remeter os pedidos às autoridades administrativas competentes, deveria submetê-los aos representantes da ré, “para revisão”; (d) força maior, caso fortuito, fato do príncipe ou fato de terceiro “não justificam o não pagamento pela autora à ré das importâncias devidas. Caso uma dessas causas continuar impedindo ou retardando o cumprimento do contrato por mais de 180 dias, a ré poderá rescindir o contrato de imediato, notificando a autora”; (e) à franqueadora ré cabia determinar os produtos e as quantidades a serem adquiridas pela franqueada autora, tanto que esta deveria comprar daquela, nos cinco anos do contrato de distribuição, 70 milhões de dólares líquidos em produtos e se obrigou a, periodicamente, emitir “ordens de compra junto à TANDY para certos tipos de mercadorias usualmente vendidas, nos Estados Unidos, pelas lojas da subsidiária TANDY denominada Radio Schack, a fim de que estas sejam revendidas no Território” (fls. 831-836).
Sustenta a ré que tais obrigações nada mais traduzem do que exigências próprias e corriqueiras dos contratos de franquia. A escusa é plausível, porém parcial.
Vero é que, como ilustra Fran Martins: “Associações especializadas, como a Small Business Administration, de Washington, e o Bank of America, depois de estudar inúmeros contratos, fizeram listas das cláusulas mais usuais encontradas nos mesmos. A lista da Small Business Administration inclui nada menos de 30 cláusulas freqüentemente utilizadas, entre as quais se destacam as referentes ao direito do franqueador de proibir o franqueado a venda de quaisquer produtos que não forem feitos, aprovados ou indicados pelo franqueador; a realização de um mínimo de vendas dos produtos franqueados; o pagamento de certa importância pela franquia (…); o direito de o franqueador inspecionar os livros do franqueado (…); a manutenção do franqueado de quotas mensais ou anuais de vendas dos produtos comercializados (…). Como se vê, amplas são as modalidades como pode ser feita a franquia. Daí dizer Harry Kursh que não existe, nunca existiu, nem certamente jamais existirá um contrato standard para a franquia (…)”.
Entretanto, adverte o festejado comercialista brasileiro, “apesar dessa gama de opções, algumas cláusulas são sempre necessárias para caracterizar o contrato de franquia. Essas cláusulas essenciais são as que se referem ao prazo do contrato, à delimitação do território e da localização, às taxas de franquia, às quotas de vendas, ao direito de o franqueado vender a franquia e ao cancelamento ou à extinção do contrato”. Assim é, e deve ser, porque o “que caracteriza principalmente a franquia é a independência do franqueado, ou seja, a sua autonomia como empresário, não ligado por um vínculo empregatício com o franqueador. Por isso, não é a empresa franqueada uma sucursal do franqueador. Tem ela autonomia jurídica e financeira, se bem que muitas vezes use como nome a marca do franqueador, o que dá a impressão de ser uma dependente dele (…).” (Contratos e Obrigações Comerciais, págs. 581-587. Ed. Forense, 11ª edição, 1990).
Inequívoca a existência de inúmeras possibilidades de cláusulas de controle da franqueadora sobre a franqueada. Controle, não submissão absoluta, a embotar a autonomia jurídica e financeira da franqueada. Ou a suprimir comezinhos princípios gerais de Direito, como os de que força maior, caso fortuito, fato do príncipe e fato de terceiro tendem a ser excludentes universais de responsabilidade; ou do descabimento de rescisão unilateral de contrato de Direito Privado.  Se, e quando tal, ocorrer, como no caso vertente, a hegemonia de uma das partes denota que a parceria entre as contraentes vai além de uma franquia e não se conjumina com o afastamento, pretendido pela ré, dos riscos do negócio, como se estes coubessem apenas a uma das partes, descompromissada a outra.
Não impressiona o argumento de que os excessos de imposições unilaterais foram aceitos pela distribuidora franqueada, certo ser de adesão o contrato de franquia. Documentos acostados com a inicial e não impugnados em sua existência e conteúdo – conquanto interpretados de modo divergente pela ré – atestam que representantes de alta hierarquia da empresa estrangeira passaram largos períodos na sede da empresa brasileira, “baseados” no Rio de Janeiro, realizando exatamente as operações que ultrapassavam o que é habitual nos contratos de franquia, o que também foi grifado no laudo de fls. 836, em resposta ao quesito 13, formulado pela ré. E se a franqueada permanecia submissa, decerto que tal se devia à expectativa de que a franquia era mero instrumento para a realização de empreendimento comum de nível estratégico, sob a consentida direção do parceiro estrangeiro, dono da marca dos produtos que se pretendia colocar no mercado brasileiro e do know how, de que não dispunha a franqueada, na distribuição e comercialização desses produtos.
A presença de know how do lado da produtora, e sua ausência do lado da distribuidora, trouxe à colação, ainda, a idéia de que se acoplaria aos dois indigitados contratos um terceiro, qual seja o de transferência de tecnologia (a que corresponde, no contrato de franquia, à licença do uso de marca), consistente em consultoria ou assistência técnica, sem qualquer compromisso com as decisões da assistida e com os resultados daí advindos, tal a tese da ré. Tampouco sob a perspectiva desse terceiro contrato se justificaria o tratamento dispensado pela ré à autora, diante do fracasso do empreendimento, ao que se extrai dos numerosos textos trocados entre as partes, via mídia eletrônica (originais e tradução juramentada a fls. 104-165, destacando-se, sobretudo, as intervenções ditadas a fls. 114 e 119).
Visitem-se as lições de João Marcelo de Lima Assafim, especialista brasileiro na matéria, verbis: “O adquirente é o
sujeito situado em uma posição ativa de poder jurídico em relação ao bem imaterial, cujos direitos lhes são transmitidos mediante contrato de transferência de tecnologia. O adquirente pode também ser receptor da comunicação do segredo industrial ou da prestação de serviço de assistência técnica. Um sujeito ostenta a condição de adquirente através da correspondente autorização do titular da tecnologia outorgada (…). A autorização pode ser motivada pela capacidade produtiva ou pelas características da empresa. O mais usual é que o concedente de tecnologia atenda a ambas. Por outro lado, é, também, perfeitamente possível que o adquirente seja uma pluralidade de sujeitos (…) a característica de ser intuitus personae exerce um papel importante nos contratos de transferência de tecnologia, em especial nos casos de tecnologia protegida por patente ou de contratos mistos (como, por exemplo, patentes e know how). Não obstante, o intuitus personae pode ser relegado a um segundo lugar pelo denominado intuitus instrumenti, ou seja, pelas características e capacidades da empresa que irá utilizar e explorar a tecnologia concedida (…). Nos contratos de transferência de tecnologia admite-se, pois, que o objeto consista em bens e serviços. Na realidade, esses contratos são formados por um conjunto de relações jurídicas submetidas – por questões de política legislativa e em função de determinadas características comuns – a um único regime político (…).”
(A Transferência de Tecnologia no Brasil – Aspectos Contratuais e Concorrenciais da Propriedade Industrial, págs. 133-134. Ed. Lúmen Júris: 2005).
O que já se verificou dos contratos de distribuição e de franquia firmados entre as partes é que a autora, licenciada para o uso da marca da ré, não dispunha do know how, logo, o caráter intuitus personae não poderia ser invocado em relação a ela, mas apenas em relação à ré, que almejava fazer da autora o agente da introdução de seus produtos no mercado brasileiro. E sem risco algum, já que também pretenderia transferir à autora toda a álea, fosse a ordinária ou a extraordinária (força maior, caso fortuito, fato do príncipe ou de terceiro), como retro se anotou.
Retomem-se as lições de Assafim e ver-se-á que a ré, a cogitar-se de contrato de transferência de tecnologia, teria fraudado suas mais essenciais características. Assim: “Se admite, sem discussão, que o contrato de transferência de tecnologia é um negócio jurídico bilateral (…). A reciprocidade de débitos e créditos é a pedra angular do contrato bilateral, com a qual os sujeitos da relação jurídica se alternam na posição de credor e devedor. Assim, é bilateral o contrato de transferência de tecnologia pelo qual o concedente (provedor) se obriga a autorizar ao adquirente (receptor) o uso de um determinado bem (tecnologia) em troca de remuneração. Em virtude de um contrato desse tipo, fica autorizada a exploração de um bem imaterial, uma prestação de serviço ou a divulgação de um segredo. Dessa maneira, o contrato de transferência de tecnologia, além de ser um contrato bilateral, também é um negócio jurídico sinalagmático; isto quer dizer que as obrigações surgidas do contrato são correlativas para cada um dos sujeitos contratantes, ou seja, a causa da prestação do concedente é a contraprestação do adquirente e vice-versa. Por conseguinte, as obrigações principais assumidas por cada um dos contratantes são contrapostas e equivalentes; para o concedente, consistem em colocar e manter o adquirente em uma posição que lhe permita utilizar e explorar o bem imaterial transmitido ou obter a prestação do serviço técnico pertinente, enquanto que, para o adquirente, a obrigação principal consiste em pagar ao concedente o preço acordado pela utilização do bem ou prestação do serviço (…), estamos diante de contratos onerosos. Se diz que um contrato é oneroso quando gera vantagens para ambas as partes. Ao afirmar que os contratos de transferência de tecnologia são onerosos, faz-se referência ao fato de que neles existe um intercâmbio de prestações ou de atribuições patrimoniais. Com efeito, no negócio oneroso, as prestações que cada uma das partes realiza são compensadas ou encontram equivalência no benefício obtido pela prestação realizada pela contraparte (…). Entretanto, a subjetividade da equivalência das prestações não significa que uma desproporção injustificada seja lícita e não possa dar lugar à nulidade do negócio jurídico. Com efeito, no CC de 2002, o § 1º do art. 157 prevê a nulidade do negócio jurídico nos casos em que exista uma desproporção entre as prestações, com referência aos valores destas ao tempo da celebração do negócio jurídico, também cabendo a anulação com base na quebra da função social do contrato ou na infração de disposições de ordem pública (…). Desse modo, é estabelecida uma estreita conexão entre o caráter intuitus personae vel instrumenti com outra importante característica do contrato: a de ser um contrato de colaboração. O contrato de transferência de tecnologia proporciona, na maioria das vezes, uma relação duradoura cujo conteúdo se traduz em uma espécie de colaboração (…) [que] pode manifestar-se em outros aspectos do conteúdo do contrato, como nos regimes de controle de qualidade do produto ou do processo produtivo, determinados conforme o objeto contratual. Ambos os sujeitos (concedente ou adquirente) estão interessados em uma exploração que incremente o valor agregado do bem imaterial pertinente” (op. cit., págs. 146-152).
Confrontado o perfil do contrato de transferência de tecnologia com a conduta da ré em face da autora, torna-se claro que aquela despreza, ou ignora, entre outros traços essenciais o do sinalagma e o da colaboração que os distinguem como contratos bilaterais e onerosos, a cuja sorte se vinculam os contraentes igualmente. Nenhum fundamento jurídico ampara a pretensa licitude da evidente desproporção do fato, grifado pela ré, de que apenas a autora deve enfrentar todas as áleas e responder pela consecução do objeto contratado.
Por outro lado, o que a doutrina vem assinalando desde os últimos vinte anos do século XX, quanto à evolução do conceito de joint venture – o instituto já era uma realidade reconhecida no Direito comparado quando da celebração dos contratos em testilha nestes autos – permite correlacioná-lo à vetusta universitates personarum dos romanos.
Na compilação dos dicionaristas, “a generalidade, a totalidade, ou toda composição, conjunção, ou reunião de várias coisas, congregadas, reunidas, justapostas, coletivadas, para que cumpram certos objetivos. Assim, a universalidade não somente revela o acervo de coisas, a massa de bens e de direitos, o patrimônio, como, no seu conceito de ajuntamento, coleção, concentração, união, traduz o sentido de corporação, colégio, companhia, associação e sociedade (…). A universalidade de pessoas se forma pela agremiação, associação, ou sociedade, instituídas com finalidades certas e em interesse das pessoas que as compõem. Em regra, as universitates personarem, tomando a forma de corporações, colégios, comunidades, companhias, associações, sociedades, resultam na composição de uma unidade jurídica, que se personaliza, a fim de que adquira uma individualidade distinta da de seus componentes. Bem por isso, a universalidade de pessoas, personalizando-se, passa a ser a titular de seus próprios direitos, mesmo que sobre eles haja interesse de seus integrantes” (De Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico, vol. IV, págs. 437-438. Ed. Forense: 1997).
Nada tem de inusitada ou novidadeira a sociedade de fato inspirada na remota universalidade de pessoas. A cada tempo histórico, enseja aplicações e abre novos horizontes, em todos os ramos das ciências jurídicas, notadamente no Comercial e no Empresarial. Nos anos 60 e 70 da centúria passada, começou-se a perceber sua utilidade no processo de transformações reclamadas no alvorecer do que viria a se constituir no hoje desenvolto Direito Comunitário europeu. Coube a Henri Temple antevê-la em monografia específica (Les sociétés de fait, Paris: 1975), descortinadora de novos aplicativos, que não cessam de evoluir. Recorde-se a resenha da obra, passada em revista, entre nós, por J. Lamartine Corrêa de Oliveira, verbis:
“Os autores mais recentes, ainda que admitindo que a designação ‘sociedade de fato’ cubra diversas hipóteses, preferem estabelecer esquema diverso. Assim, Temple, inserindo o exame das sociedades de fato no esquema genérico, caracteriza as situações de fato de um modo geral através da existência de um fato material (a); – o fato, na situação de direito, seria conseqüência, enquanto na situação de fato é pressuposto de existência, dele se induzindo os demais elementos; da ligação entre tal fato material e a lei, que prevê uma situação de Direito correspondente (b), bem como, finalmente, a imperfeição de tal ligação (c). Se houvesse perfeita obediência à lei, haveria situação de direito. Duas seriam as modalidades básicas de imperfeição – uma primeira, em que as exigências formais da lei não foram jamais cumpridas, e uma segunda, em que todas as formalidades foram cumpridas, mas a nulidade foi verificada ulteriormente. Aplicando essa noção às sociedades, Temple procura daí extrair uma teoria das sociedades de fato. Só haveria o fato material (a) característico de uma sociedade quando, em relação a empreendimento caracterizável como objeto de atividade social, tenha havido funcionamento efetivo. O elemento (b), relativo ao liame entre o fato material e a lei, suporia em primeiro lugar a presença dos elementos do contrato de sociedade (contribuição dos sócios para a formação do capital social, busca dos lucros e participação dos sócios nos resultados da sociedade – o que excluiria as sociedades leoninas até mesmo do rol das sociedades de fato – e a affectio societatis); em segundo lugar, a exteriorização da sociedade, seu caráter público (o que excluiria as sociedades em conta de participação, ocultas por definição, do quadro das sociedades de fato); e, em terceiro e último lugar, o caráter lícito do objeto social. Este último requisito é da maior importância. A sociedade de fato é teoria de origem jurisprudencial, e seria difícil imaginar a jurisprudência consagrando, por exemplo, associações de malfeitores. Temple admite porém o que chama de ‘gradação na ilicitude’, embora confessadamente não chegue a construir uma teoria que permita ‘traçar o limite entre os diversos graus de ilicitude e fixar o limite que, uma vez transposto, interdiz o benefício da teoria das sociedades de fato’, preferindo deixar esse ‘exercício delicado’ ao juiz, pois ‘a noção de ordem pública não é imutável e deve ser adaptada à evolução dos costumes e das necessidades sociais’ (…).
Temple apela para um tipo de solução que reconheceria em favor de tais sociedades uma ‘personalidade moral de fato’, na linha talvez do célebre acórdão da Cour de Cassation em matéria de comitês de estabelecimento, em que se diz que a personalidade civil deve ser reconhecida ‘a todo grupo dotado de possibilidade de expressão coletiva para a defesa de interesses lícitos, dignos, por conseguinte, de ser juridicamente reconhecidos e protegidos’. Invocando a lição da experiência alemã em matéria de sociedades em nome coletivo, Temple responde antecipadamente à objeção segundo a qual uma tal solução se chocaria com a intenção do legislador de 1966, que foi a de fazer da existência ou inexistência do registro a fronteira entre a existência da personalidade e a sua negação: ‘não se trata de fazer gozar uma sociedade de fato, para o futuro, da personalidade moral,  mas de tirar certas conseqüências desta última para o passado’.” (in A dupla crise da pessoa jurídica, págs. 188-194. Ed. Saraiva: 1979).
Arejado pela modernidade da economia globalizada, o conceito dá curso à idéia de “sociedade de sociedades”, em que se funda a joint venture, e autoriza que se cogite de responsabilizar a universalidade, provida de personalidade moral, pelos direitos e obrigações que, insuficiente ou ineficazmente exercidos pelas sociedades componentes no passado, implicaram o fracasso do empreendimento comum. Em outras palavras: não se pode atribuir responsabilidade pelo insucesso a apenas uma das sociedades participantes da universalidade, quando todas concorrem para a geração das causas do mau resultado.
Qualquer direito que a autora, franqueada, pudesse ter, quanto a repartir os prejuízos do empreendimento comum com a ré, franqueadora, se desvaneceria caso se demonstrasse que ao fracasso deu causa, com exclusividade, gestão desastrada ou indisciplinada da franqueada, em desobediência a escorreitas orientações da franqueadora. Tal tese, que é a da ré, porta contradição nos próprios termos, em face das restrições a que a franqueada estava submetida pela franqueadora na administração do negócio. Não se percebe como seria imputável à franqueada a total e exclusiva responsabilidade pelo insucesso, se todas as ações se faziam em estrita conformidade com as premissas, condições e orientações estabelecidas pela franqueadora, de modo cogente e inafastável, e de cuja execução participava no cotidiano da distribuidora, tutelando-a.
Em verdade, o insucesso do empreendimento, nas peculiares circunstâncias comprovadas nos autos, não decorreu de culpa exclusiva de uma das contraentes, mas de ambas. Recorra-se novamente ao esclarecedor laudo pericial: em alguns pontos, a autora não implantou o sugerido pela ré (resposta ao quesito de nº 6, fls. 834), mas, em outros itens, não se pode afirmar, como faz a franqueadora, que a franqueada deixou sem cumprimento obrigações de sua incumbência, tal como no pertinente à realização de programas de treinamento de gerentes de lojas e equipes de vendas, em que houve significativo investimento (resposta ao quesito de nº 7, fls. 834), ou como em campanhas publicitárias, a que a franqueada destinou valores consideráveis (resposta ao quesito de nº 8, fls. 834); a seu turno, a franqueadora não atendia, em tempo hábil, à entrega de peças de reposição para consertos (resposta ao quesito de nº 14, fls. 837) e impunha à franqueada política de compras e revendas, corroboradas em relatório subscrito por seus administradores, que se mostrou improfícua, elevando a níveis insuportáveis o estoque de mercadorias sem interesse no mercado brasileiro.
As perdas são fato incontroverso. A ré admitiu-lhes a existência em correspondência remetida à autora, segundo retratado pelo documento de fls. 125-129. E a perícia as estimou, no que se refere a gastos com abertura, legalização e padronização de lojas, em R$ 8.565.167,69, valor atualizado até 30.06.01 (fls. 839). A autora almeja, a título de ressarcimento, a condenação da ré ao pagamento de 50% desse valor. Assiste-lhe razão, ressalvada a possibilidade de revisão do quantum em liquidação, porém induvidoso que houve o prejuízo e que deve ser repartido em idêntica proporção.
O recurso adesivo resulta prejudicado. Uma vez que buscava a elevação da verba honorária, o provimento do primeiro recurso impõe derrota processual ao recorrente adesivo, com a inversão dos ônus da sucumbência, deixando a ré de fazer jus a honorários.
Eis os motivos de votar por que, prejudicado o segundo recurso, da ré, se dê provimento ao primeiro recurso, da autora, para, reformada a sentença, julgar-se procedente o pleito autoral, e declarar-se a existência de uma universalidade de pessoas (sociedade de fato), em ordem à satisfação de interesses econômicos comuns nos contratos que as partes celebraram, com o efeito jurídico de ambas absorverem, em idêntica proporção, os prejuízos resultantes do fracasso do empreendimento, atribuível ao desempenho inadequado de ambas, em valor a ser apurado em liquidação, sujeito à correção monetária e a juros moratórios de 1% ao mês, que se contarão e fluirão a partir da citação. Por efeito da sucumbência, a ré responderá pelas custas do processo e por honorários, que se arbitram em 20% (vinte por cento) sobre o valor que à ré caberá indenizar, em harmonia com os critérios do art. 20, § 3º, do CPC.

Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 2008.
Des. Jessé Torres
Relator