Projeto ajuda população a adquirir a casa própria_Entrevista com João Gandini

31 de maio de 2010

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Entrevista: João Gandini, Juiz da 2ª Vara de Fazenda Pública de Ribeirão Preto (SP)
Cerca de duas mil famílias de Ribeirão Preto (SP) que viviam em comunidades carentes foram beneficiadas pelo projeto “Moradia Legal” — que visa à urbanização de áreas favelizadas e até mesmo à construção de novas residências para a população mais carente. A iniciativa foi idealizada pelo Juiz da 2ª Vara de Fazenda Pública daquele município, João Gandini. Ele conta à “Revista Justiça & Cidadania” que o trabalho teve início logo após ter assumido aquele juízo. O Magistrado constatou um número sem fim de ações em tramitação ou com decisão já proferida, mas sem qualquer eficácia, envolvendo casos de assentamentos precários. Gandini chegou à conclusão de que a via judicial não seria a melhor para resolver o problema. E, por isso, foi à rua.
Primeiro ele visitou as comunidades, objeto dos processos judiciais. Depois procurou as autoridades competentes e possíveis parceiros na iniciativa privada, constituindo um grupo gestor, responsável pela criação e implantação das medidas destinadas a dar uma solução à ocupação irregular. A prática levou o Magistrado a vencer o Prêmio Innovare — que tem por objetivo justamente reconhecer as boas práticas na Justiça. Para Gandini, no entanto, quem mais saiu ganhando com o programa foi o Judiciário. “Acho que o reflexo mais importante é a respeitabilidade que o Poder Judiciário adquiriu a partir do momento em que toda mídia nacional mostrou que é possível um juiz sair de seu gabinete, ir à rua e encontrar soluções para a comunidade. Isso trouxe um respeito maior à atividade judicante”, afirmou.
Revista Justiça & Cidadania – Como surgiu o projeto “Moradia Legal”?
João Gandini – Quando assumi a Vara de Fazenda Pública em Ribeirão Preto, verifiquei uma série de problemas. Um deles era justamente os de assentamentos precários ou ocupações irregulares de áreas até mesmo públicas, de risco e proteção ambiental. Comecei a demarcar as comunidades, indo até elas. Com isso, me convenci de que a solução não estava dentro do processo. Até porque muitos tramitavam há mais de uma década sem solução, alguns inclusive já com decisões judiciais que não tinham sido cumpridas. Resolvi, então, sair às ruas e ir atrás das pessoas que pudessem me auxiliar. Acabei formando um grupo de trabalho, que chamamos de grupo gestor. Há o coordenador geral, que sou eu, o coordenador adjunto e mais cinco coordenadores dos núcleos jurídico, financeiro, físico-territorial, social e comunitário. Passamos a nos reunir para trabalhar mais detidamente em cima de uma fotografia aérea das comunidades carentes. A partir daí começamos a fazer os projetos e apresentá-los ao Poder Público. E hoje temos essa equação: na época, eram 34 núcleos de comunidades, com 20 mil pessoas morando neles. Hoje temos resolvidas as situações de duas mil famílias mais ou menos.

JC –  O objetivo, então, é fazer com que a população obtenha a casa própria?
JG – Trabalhamos com duas vertentes. Uma delas é a de construir moradias para assentar as pessoas e recuperar, para o Poder Público, as áreas que estavam degradadas. A outra é a urbanização da comunidade. Vamos ao local com técnicos e analisamos o que é possível criar ali. Há lugares em que há 80% de barracos, então não compensa. Teve um caso, do núcleo de Monte Alegre, que ficou mais conhecido, cujo projeto já terminamos. Lá havia 420 famílias. Tiramos apenas 89 delas. As demais ficaram em uma situação relativamente boa. Conseguimos água e esgoto, asfalto, luz, postes, registros, relógios, fiação, lâmpadas, chuveiros econômicos e geladeiras novas para todas as famílias, através de uma parceria com a concessionária de energia elétrica. Essas pessoas passaram a viver outra realidade. Agora estamos fazendo uma reforma, em um trabalho que chamo de promoção humana, que visa à criação de uma rede social, com ONGs, igrejas, prestadoras de serviço e escolas profissionalizantes, de modo a levar, àquelas famílias, tratamentos contra o alcoolismo, drogas, além de cursos profissionalizantes, como de pedreiro, eletricista, pintor, padeiro, manicure, cabeleireiro etc, a fim de  colocá-los  no mercado formal de trabalho.  Começamos a dar os primeiros passos. Estamos reformando uma quadra, que era precária, e uma casa, que separamos para ser a sede de várias ONGs que  trabalharão com isso. No caso dos assentamentos, fomos atrás de financiamentos em órgão de habitação de São Paulo e no PAC. Neste, conseguimos 720 unidades, que estão sendo agora construídas. Vinte e nove famílias já se mudaram. As demais deverão ir até o fim do ano.

JC –  Qual é a localidade beneficiada?
JG – Essa primeira comentada, que foi urbanizada, é a de Monte Alegre. Para a do PAC, em que 29 residências já foram construídas e outras 691 sairão até o fim do ano, realocaremos o pessoal da região do aeroporto. Há cinco grandes comunidades nessa área, muito complicadas, que devido aos ruídos das aeronaves, não poderiam ficar naquele local. Então, estamos removendo as pessoas de lá. Em outra comunidade, a mais antiga da cidade, que tem 50 anos, fizemos um parceria com o Grupo Alfaville, que está trazendo para cá um grande empreendimento. Essa comunidade fica exatamente no portão de entrada (do empreendimento). Então, quando soube do projeto, procurei (a empresa) e negociamos por um ano mais ou menos. Conseguimos que eles assumissem a construção de casas para 44 famílias.

JC –  Que retorno essa iniciativa trouxe ao Judiciário?
JG – Trouxe reflexos importantes. Os processos não teriam eficácia — ou seja, não resolveriam o problema. Então, eles ficaram paralisados durante o período que tocávamos o projeto. Conforme isso foi acontecendo, muitos foram perdendo o objeto. Verificamos, então, que o objetivo dos processos estava sendo atingido fora deles. Hoje estamos terminado as ações antigas sem que haja novas ingressando no Judiciário. A não ser as que decorrem do próprio projeto. Pode acontecer de encontrarmos, em determinada área, pessoas que não estão cadastradas, que a invadiram recentemente, vindo de outras regiões para se aproveitar do nosso projeto. Essas pessoas, claro, não são atendidas. Esses espertalhões, portanto, estão sendo retirados e as áreas degradadas recuperadas. Mas, fora isso, não temos mais ações, o que é um bom reflexo para o Judiciário. No entanto, acho que o  mais importante é a respeitabilidade que o Poder Judiciário adquiriu a partir do momento em que toda mídia nacional mostrou que é possível um juiz sair de seu gabinete, ir à rua e encontrar soluções para a comunidade. Isso trouxe um respeito maior à atividade judicante.

JC –  Esse projeto vem acompanhado de uma série de outras iniciativas, sobretudo na área social, como o senhor mesmo citou. Uma vertente se verifica na área do fornecimento de medicamentos. O que foi feito nesse campo?
JG – Temos vários projetos dessa envergadura, todos em prática, inclusive com renome. O que mais se destacou na mídia foi o “Moradia Legal”, talvez por conta do Prêmio Innovare. O segundo nasceu junto com este quando, ao assumir a Vara de Fazenda Pública, verifiquei milhares de ações pedindo medicamentos, tratamentos, fraldas descartáveis, cadeiras de rodas, próteses, entre outros. Debrucei-me sobre todos esses processos, até durante os fins de semana. Tabulei em que situações os medicamentos eram pedidos, para que moléstias eram, que tipo de informação médica havia nos autos, se a ação era patrocinada por advogado particular, promotor ou Defensoria Pública. Cheguei à conclusão de que havia um abuso fantástico. Primeiro havia gente de outras cidades vindo se aproveitar das liminares de Ribeirão Preto, o que onerava muito o Município. Segundo, os médicos receitavam o nome comercial do remédio, quando muitas vezes havia um genérico, e de boa qualidade. Passamos, então, a optar pelo princípio ativo, o que reduziu os gastos. Verificamos também que os médicos pediam os medicamentos, mas não esclareciam para qual tipo de tratamento. Com o tempo, no entanto, ao ver que o juiz estava olhando o processo e que as liminares passaram a ter um controle maior, eles se acostumaram não só a indicar o medicamento como a fazer um relatório circunstanciado, por ordem do magistrado, sobre como funciona o tratamento, desde o início, e por que a opção por determinada droga, e assim por diante. Esse é um trabalho que deu grandes resultados.

JC –  Quais foram as dificuldades para a implantação do projeto “Moradia Legal?”
JG – Se pensarmos nas dificuldades, não avançamos. Tem hora que dá vontade de desistir, mas falo: “vamos tocando”. A dificuldade maior é o convívio com o Poder Público. A burocracia é muito grande, nem sempre os secretários conseguem falar a mesma língua, mas conseguimos isso. Sempre que atendidas as formalidades, o dinheiro para o projeto aparece. Diria, então, que as dificuldades são operacionais. É ter que trabalhar com 34 mil processos; na diretoria do fórum, que tem 800 funcionários; na diretoria da associação; coordenar sete cursos de pós-graduação e ainda ter que ir à comunidade todo dia para decidir se um barraco está bom, se ele fica ou sai. A dificuldade maior é a de tempo.