Quando o Direito e o Transporte se encontram

14 de dezembro de 2015

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Mesa composta pelos ministros do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva e Paulo de Tarso Sanseverino; pela corregedora-geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, desembargadora Maria Augusta Vaz Monteiro de Figueiredo; pelo presidente do IMB, desembargador Roberto Guimarães; pelo presidente da Fetranspor, Lélis Teixeira, e o ministro Luis Felipe Salomão, do STJ

Instituto dos Magistrados do Brasil e Fetranspor realizam 8º Seminário sobre questões jurídicas relevantes no transporte de passageiros

A responsabilização do transportador por acidentes ou má prestação do serviço – e suas hipóteses excludentes; a reparação dos danos aos usuários do transporte; a adequação das concessões aos novos diplomas legais; e os avanços e riscos trazidos pelo badalado instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Estes foram alguns dos debates que movimentaram o 8º Seminário Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo, que aconteceu no início de novembro no Rio de Janeiro.

Realizado pelo Instituto dos Magistrados do Brasil (IMB), em parceria com a Federação das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), o evento promoveu profundas reflexões sobre estas questões em ambiente de intensa troca de conhecimentos entre ministros, desembargadores, advogados e empresários do transporte.

Os debates assumem uma importância e atualidade ainda maiores quando consideradas as rápidas transformações dos sistemas de transporte coletivo no Brasil, sobretudo na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, além da recente introdução de novos modais – como o BRT, o BRS e o VLT – e a incidência de legislações recentes, como a Lei da Mobilidade, o Estatuto do Idoso, a Lei da Mediação e da Arbitragem e o novo Código de Processo Civil, que entrará em vigor em março do ano que vem. Sem falar nas novas interpretações sobre diplomas legais já consagrados que vem sendo registradas na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), como ocorre em relação ao Código Tributário e ao Código de Defesa do Consumidor.

 Contexto

Coube ao presidente da Fetranspor, Lélis Marcos Teixeira, contextualizar o momento vivido pelo setor com a palestra de abertura Mobilidade inteligente: a conexão do Rio com o futuro. Por meio de números, Teixeira demonstrou o tamanho da responsabilidade assumida pela Fetranspor. Os 22.500 ônibus das 210 empresas filiadas garantem 82% de todas as viagens realizadas pelo transporte público regular. São 8,5 milhões de passageiros apenas na Região Metropolitana e 10 milhões quando consideradas as 92 cidades do estado. Deste total, dois milhões são gratuidades fornecidas a estudantes, idosos, pessoas portadoras de deficiências e doentes crônicos. Quando vistas em seu conjunto, as empresas são também as maiores empregadoras do Estado do Rio, com 110 mil empregos diretos.

“Sabemos o quanto é importante assegurar direitos e noções de responsabilidade às empresas, pois temos, enfim, a responsabilidade maior de assegurar o direito de ir e vir da população fluminense. Essa responsabilidade implica o respeito a uma série de legislações, com questões jurídicas que devem ser cada vez melhor esclarecidas”, disse o presidente da Fetranspor.

 Desconsideração da pessoa jurídica

Após a fala introdutória do presidente da Fetranspor, seguiram-se os painéis apresentados por magistrados. O primeiro deles teve como palestrante o ministro João Otávio Noronha, do STJ, que falou sobre um tema que vem sendo muito discutido na jurisprudência e nos meios empresariais brasileiros: a Desconsideração da personalidade jurídica. Esclareceu o ministro: “O que se busca é a responsabilização patrimonial de alguém que tecnicamente não é devedor, mas que está atrás de uma personalidade jurídica causando prejuízos a terceiros. (…) A finalidade é permitir ao juiz a coibição de abusos e fraudes aplicadas pelos sócios por meio da personalidade jurídica. Na desconsideração o juiz levanta o véu protetor da autonomia patrimonial para atingir o verdadeiro responsável pelo cumprimento da obrigação”.

De acordo com o ministro, deve-se evitar o uso abusivo da desconsideração, pois não é razoável que o empreendedor tenha seu patrimônio reservado atingido sem ter praticado fraudes, apenas pelo infortúnio do negócio. “Salvo a hipótese do mau-caráter, ninguém se estabelece na atividade comercial para causar prejuízo. É hora de a gente refletir até onde devemos avançar na desconsideração. (…) É imprescindível que haja abuso da personalidade jurídica, haja atos fraudulentos por parte do devedor, haja má-fé. Caso contrário, estamos falando de responsabilização objetiva. Não foi com esse propósito que se instituiu a desconsideração da personalidade jurídica no Brasil”, criticou.

 Garantias legais

Segundo Noronha, o incomoda o fato da desconsideração submeter o patrimônio do sócio a uma execução sem que o mesmo tenha direito a se defender com o devido processo legal. “É razoável o empresário sofrer penhora online de seus depósitos para depois discutir se ele é ou não é responsável? Claro que não. Isso é uma violência que sacrifica o devido processo legal”, reclamou o magistrado. Entretanto, o ministro acredita que a questão será resolvida pela entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que estabelece de forma mais clara os requisitos da desconsideração.

Em suas considerações finais, Noronha foi duro contra as tentativas de ampliação do instituto. “A desconsideração é uma exceção, não é a regra. Caso contrário, vamos acabar com o instituto da personalidade jurídica no Brasil, que pressupõe a autonomia patrimonial entre a empresa e sócios. Ninguém mais vai exercer a atividade empresarial. Não cabe desconsideração fora das hipóteses taxativamente previstas na lei. (…) Não se pode sacrificar uma construção com mais de dois mil anos no Direito que impõe a segregação da responsabilidade patrimonial da empresa em relação aos sócios. Quem tem que pagar é o responsável, não se pode subtrair indevidamente do patrimônio de outro. Tem que se assegurar o ressarcimento ao consumidor, mas à custa daquele que de fato o prejudicou”, finalizou.

 Segurança jurídica

O segundo painel do evento foi apresentado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do STJ, que tratou da segurança jurídica nos contratos de concessão e autorização no transporte público e terrestre de passageiros. Segundo o magistrado, a segurança jurídica tem muito a ver com a noção de tempo: “Em um mundo onde há incertezas e contingências incontroláveis, o Direito tem uma função estabilizadora das expectativas normativas. (…) É por isso que no Brasil e na maioria dos ordenamentos existe uma proibição geral, uma cláusula geral ao princípio geral de irretroatividade”.

De acordo com o ministro, a ideia de segurança jurídica está atrelada a três elementos: a cognoscibilidade das normas jurídicas, que significa acessibilidade às normas e sua inteligibilidade; a confiabilidade, dimensão atrelada às noções de ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido; e a calculabilidade, que é a proteção da confiança e a proibição da arbitrariedade. Segundo Cueva, a proteção da confiança traz a ideia de que a estabilidade das relações jurídicas é um valor essencial ao estado de direito. Ele ressaltou, no entanto, que o Estado, em princípio, pode revogar uma ordem jurídica ou fazer retroagir uma norma atual. Citou como exemplo a Lei 9.868/99, que trata da modulação dos efeitos na declaração de inconstitucionalidade pelo STF. “A declaração de inconstitucionalidade retira do ordenamento uma norma invalidada, que deixa de existir como se nunca tivesse produzido efeitos, o que gera consequências catastróficas, porque, frequentemente, essa declaração ocorre até vinte anos depois da edição daquela norma”, comentou.

Tarifas

Apesar disso, segundo o magistrado, um ato que demonstra que a proteção da confiança “tem chegado aqui aos trópicos” é a vinculação da Administração ao princípio da segurança jurídica na Lei do Processo Administrativo (Lei 9.784/99), que proíbe a aplicação retroativa de nova interpretação da norma administrativa. “É uma situação em que também se protege a confiança legítima do administrado, que não é apanhado de surpresa por uma mudança de interpretação após ter praticado por anos uma conduta que, até então, estava em conformidade com a lei”, explicou o ministro.

De acordo com Cueva, nos contratos de concessão de transporte, a proteção da confiança é ainda mais complexa. “Quase tudo é mutável em um contrato de administração se houver o interesse público preponderante”, explicou, ressaltando que apenas a equação econômica e financeira é imutável. Só pode ser alterada quando demonstrado que a modificação é adequada às finalidades do interesse público. Nesse sentido, segundo o magistrado, a Lei da Mobilidade Urbana prevê inúmeros componentes sociais nas tarifas de transporte, como as gratuidades, que podem afetar o resultado final da tarifação. “Quem fixa os índices tarifários é o poder concedente, mas há possibilidades de reajustes, revisões ordinárias ou de revisões extraordinárias. Em teoria se resolve, mas na prática vemos que há inúmeras disputas. Há dois anos, por exemplo, tivemos embates seríssimos que começaram após indicativo de reajuste de tarifas de ônibus no município de São Paulo, que causaram prejuízo de difícil absorção pelo setor”, esclareceu.

Responsabilidade civil

O segundo dia do evento foi aberto com o painel A responsabilidade civil do transportador terrestre sob a ótica do STJ, apresentado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Para justificar a escolha do assunto, o magistrado relembrou os números apresentados na véspera pelo presidente da Fetranspor. “Com esse número todo, apesar da eficiência do serviço, eventualmente podem acontecer alguns problemas, que acabam desembocando no Poder Judiciário”, disse. Ele esclareceu que o art. 734 do Código Civil claramente estabelece que “o transportador responde pelos danos causados a pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade”.

O ministro ressaltou, no entanto, que a regra comporta exceções, como nas hipóteses de “culpa exclusiva da vítima”, dentre as quais se inclui o suicídio. Outra situação excludente é aquela na qual ocorre culpa concorrente da vítima, prevista no Código Civil como causa para redução do montante indenizatório e que acontece com muita frequência nos casos de atropelamento por trens. Existe ainda o fato exclusivo de terceiro, descrito na regra do art. 735 do Código Civil, no qual é necessário verificar se a situação está dentro ou fora do risco normal da atividade, além de fazer uma distinção entre fatos dolosos e culposos.

Fortuito e força maior

Sanseverino destacou ainda outras duas excludentes previstas no art. 393 do Código Civil, que são o caso fortuito e a força maior. “Se eventualmente o fortuito é interno, ou seja está dentro do risco da atividade, o transportador responde. Estourou o pneu, quebrou a barra de direção do ônibus, nesses casos têm fortuito interno e ele responde, mas se eventualmente um fato externo é a causa exclusiva do evento danoso, ele não vai responder”. Segundo o ministro, a situação de força maior que ensejou maior polêmica na jurisprudência do STJ no passado foi a questão do assalto à mão armada.

“Aqui temos uma figura que fica entre o fato de terceiro e a força maior. (…) A discussão centrava-se na questão da previsibilidade e da inevitabilidade. Dizia-se que o assalto é um fato previsível e, consequentemente, exige do transportador maiores cautelas, respeitando a incolumidade do passageiro. Em contraponto, afirmava-se que era questão externa, de segurança pública. (…) Um recurso especial foi submetido a julgamento, no qual se estabeleceu que a prevalência é do critério da inevitabilidade. Consequentemente, o assalto à mão armada, fato doloso de terceiro, acaba excluindo a responsabilidade civil porque rompe o nexo de causalidade”, concluiu o ministro.

Defesa do consumidor

O painel seguinte foi apresentado pelo desembargador aposentado Sérgio Cavalieri Filho, procurador geral do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, que aprofundou a discussão sobre o Código de Defesa do Consumidor. “O CDC foi a lei mais extraordinária e revolucionária do século passado, e vai continuar revolucionando no século XXI. Se temos uma Constituição Cidadã, como foi muito bem qualificado pelo grande deputado Ulysses Guimarães, temos também uma Lei Cidadã que é o CDC”, disse Cavalieri.

Ele destacou que a defesa do consumidor é um imperativo constitucional definido pelo art. 5o, inciso XXXII, da Constituição, que diz “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Segundo o desembargador, que ingressou na magistratura no início de 1970, antes do CDC “o consumidor não tinha vez, mas com essa cláusula passou a ser sujeito de um direito fundamental, com defesa estabelecida como obrigação do Estado”. Em seguida, Cavalieri falou sobre a estratégia legislativa utilizada pelo CDC. Segundo ele, em virtude de ser absolutamente impossível aplicar a defesa do consumidor por meio de regras em todas as áreas de Direito em que ocorre o consumo, o legislador estabeleceu no Código uma série de princípios, tornando-o, em suas palavras, “uma lei principiológica de sobredireito”, com valores e determinações que devem ser colocadas em prática com o estabelecimento de condutas permanentes.

 Princípios x direitos

Ao afirmar, no entanto, que não basta afirmar princípios para concretizar direitos, o desembargador exemplificou: “O princípio da boa fé exige a realização de um estado de coisas exteriorizadas pela lealdade, sinceridade, transparência e colaboração. Sem tais comportamentos permanentes (…) os princípios não se concretizam”. Ele citou o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente: “É uma grande lei, editada pelo presidente Collor. Quando ele editou, deu uma entrevista em que disse ‘resolvemos o problema da Criança e do Adolescente no Brasil e eu gostaria de ver os outros países fazendo isso também’. Só que ficou no papel”.

Segundo Cavalieri, o problema reside no fato de que após a promulgação da Constituição de 1988 passou a haver um descompasso entre demanda e Justiça. “Nós víamos uma Justiça artesanal, caso por caso, prova por prova. Só que surgiu uma demanda em massa e nós, lamentavelmente, ainda não encontramos soluções”, resumiu o magistrado. Nesse sentido, ele exalta o novo Código Civil como uma alvissareira tentativa de desafogar a Justiça, notadamente por meio do chamado incidente de resolução de demandas repetitivas.

Cipoal de legislação

O último painel do Seminário foi apresentado pelo ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, e teve como tema O transporte público e a reparação integral dos danos nas relações de consumo.Ele apresentou algumas das características do contrato de transporte, que é bilateral, por requerer a declaração de vontade das pessoas que dele participam; é comutativo, na medida em que as prestações de ambas as partes são conhecidas de antemão; em regra é por adesão; e são contratos de resultados. “Tudo isso já foi dito aqui, mas eu queria completar a ideia de que é intrincada a solução de qualquer problema, porque é um cipoal de legislação envolvendo regras esparsas”, registrou.

Segundo o ministro, na hora de julgar questões relativas ao transporte, a primeira questão que passa pela cabeça do juiz é determinar qual é a lei aplicável. “Houve uma interligação, no que se chama diálogo das fontes, entre o Código Civil, que passou a conter as regras gerais, e o CDC. Mas muitas relações que envolvem transportes, sobretudo o transporte de carga, não têm a ver com relação de consumo. Nessa matéria ainda se aplica uma parte do Código Comercial de 1850 e regras gerais do Direito comum. No caso do transporte ferroviário é o Decreto no 2681. No caso do aéreo internacional há a Convenção de Varsóvia, que em 2006 foi substituída pela Convenção de Montreal. No transporte aéreo interno há diversos dispositivos que compete ao STJ harmonizar. Nos transportes rodoviários de carga há uma lei de 2007. Há ainda a Política Nacional de Mobilidade Urbana, com a lei de 2012”, elencou o magistrado.

Jurisprudência

Para exemplificar a complexidade do tema, o ministro citou a questão tarifária. “Não se faz benefício com chapéu alheio. Quando você dá uma gratuidade, em determinado momento aquilo quebra a equação do contrato e gera para quem investiu uma questão complexa. É preciso pensar, e essa é uma tarefa de todos nós julgadores, nas consequências das nossas decisões. Não estou aqui querendo dizer que uma parte deva ser prejudicada. Estou querendo dizer que é preciso pensar no todo. É para isso que trabalhamos, para fornecer a decisão mais justa para o caso concreto”, disse.

Na sequência, o ministro discorreu e esclareceu dúvidas sobre uma série de precedentes selecionados na jurisprudência do STJ, como casos de extravio de bagagem, de freada brusca que derruba o passageiro, casos de bagagem mal acondicionada e de transporte de materiais perigosos nos coletivos. Salomão encerrou a sua participação reiterando a seguinte reflexão: “A partir da análise dos casos concretos, é o bom senso que vai determinar a questão da responsabilidade”.