A competência dos poderes concedentes dos estados e municípios e a concessão de benefícios sociais

28 de fevereiro de 2011

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Palestra proferida pelo Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Flávio Willeman, no VI Seminário – Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo, realizado pela Emerj

A Constituição Federal de 1988 previu no artigo 175 que ao Poder Público incumbe, diretamente, ou mediante concessão e/ou permissão, a prestação de serviços públicos.

As competências para a prestação dos diversos serviços públicos encontram-se, como regra, inseridas na Constituição Federal de 1988 na medida em que, convencionalmente, pode-se conceituar o serviço público como atividade que foi retirada, pela Constituição ou pela lei, do regime de total liberdade de iniciativa para inseri-la em um regime total ou parcialmente de direito público.[1]

No que diz respeito ao serviço público de transporte, a CRFB/88 estabeleceu expressamente competências para a União Federal e para os municípios, respectivamente no artigo 21, inciso XII, alíneas “d” e “e”, e no artigo 30, inciso V:

“Art. 21. Compete à União:

XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;

e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;

Art. 30. Compete aos municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”.

No que toca à competência dos Estados, a CRFB/88 foi silente – ‘excetuando o serviço público de fornecimento de gás canalizado’ –, atribuindo a tais entes federativos competência residual, isto é, competência para atuações em todas as áreas que não lhe foram vedadas pela Carta Política. Essa é a regra que ecoa do artigo 25, § 1o, da CRFB/88:

“Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

§ 1o – São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.”

As constituições estaduais, entretanto, não ficam impedidas de estabelecerem as competências dos estados da federação desde que não colidam com às da União e dos municípios. A propósito, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, utilizando-se da competência residual atribuída aos estados pela CRFB/88, previu no artigo 242 que é competência do Estado do Rio de Janeiro prestar diretamente, ou mediante regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse estadual, metropolitano ou microrregional, incluindo o de transporte coletivo. Disse mais: que cabe ao Estado legislar sobre transporte intermunicipal:

“Art. 242. Compete ao Estado organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse estadual, metropolitano ou microrregional, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial.

§ 1o  – Compete ao Estado legislar sobre o sistema de transportes intermunicipal, bem como sobre os demais modos de transportes de sua competência, estabelecidos em lei.”

A Carta Política do Estado do Rio de Janeiro, no artigo 243, em sintonia com a Constituição Federal, previu ainda que compete aos municípios a prestação de serviços públicos de interesse local, inclusive o transporte coletivo.

“Art. 243. Compete ao município organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial, como no artigo 30, V, da Constituição da República.”

A importância de se definirem as competências legislativas para dispor sobre serviços públicos ganha relevo na medida em que consequência imanente à titularidade do serviço é a atribuição de competência ao ente político (União, estados e/ou Distrito Federal e municípios) para sua regulação[2].

Por regulação do serviço público deve-se entender o exercício de atividades que irão determinar a modelagem[3] da prestação do serviço à sociedade, notadamente para definir se isso acontecerá de forma centralizada ou descentralizada (para administração pública indireta ou para particulares), os critérios técnicos para a fixação de tarifas módicas e de universalização, prazo de eventual contrato de concessão/permissão etc.

É necessário registrar, para o desenvolvimento deste trabalho, que no conceito de regulação do serviço público está incluída a competência para editar normas que digam respeito à concessão de benefícios sociais, dentre eles a concessão de gratuidades, bem assim sobre a recomposição do equilíbrio econômico e financeiro deles decorrentes. Isto porque, ordinariamente, a instituição de benefícios sociais em serviços públicos já concedidos, não previstos no momento da delegação ao parceiro particular e que gerem prejuízo real e efetivo, deve ser objeto de indenização ao concessionário, já que pode proporcionar desequilíbrio da equação econômico-financeira originalmente pactuada.

Discussão interessante diz respeito à atuação legislativa privativa ou concorrente da União Federal em matéria de direitos sociais, notadamente para a proteção de minorias, idosos, estudantes e portadores de deficiência física, e que impactam na regulação dos serviços públicos estaduais e municipais. É preciso encontrar o ponto ideal de interseção entre o exercício das competências legislativas da União Federal e das competências regulatórias dos demais entes da federação para tratar dos seus serviços públicos, de modo que uma não aniquile e/ou prejudique a outra, bem assim para não violar o postulado do pacto federativo, previsto no artigo 1o da CRFB/88.

Exemplo do que aqui se discute diz respeito ao direito dos idosos de serem transportados gratuitamente em coletivos públicos urbanos e semiurbanos. Cuida-se de direito constitucionalmente garantido no artigo 230, § 2o da CRFB/88[4] (e, no caso do Estado do Rio de Janeiro, no artigo 245 da Constituição Estadual – CERJ/89[5]), bem assim no artigo 39[6] da Lei Federal no 10.741/2003 (Estatuto do Idoso). Duas questões, penso, merecem reflexão a partir dos dispositivos constitucionais e legais acima mencionados.

Não fosse a regra do artigo 230, § 2o da CRFB/88, seria o artigo 39 do Estatuto do Idoso inconstitucional? Estaria ele, ao dispor sobre gratuidade de idosos em todos os serviços públicos de transporte estaduais e municipais, conferindo uma espécie de “isenção heterônoma”[7] por parte da União Federal em atividades delegadas dos demais entes da federação sem estabelecimento de fonte de custeio? Estaria essa atuação interventiva heterônoma da União Federal consentânea com os postulados do pacto federativo e da separação de poderes?

Pode o Estatuto do Idoso, como o fez no artigo 39, § 2o, estabelecer as regras para fruição do direito à gratuidade, mesmo que contrárias às normas regulatórias dos entes públicos titulares dos serviços públicos de transporte?

As questões devem ser tratadas e respondidas separadamente.

No que diz respeito ao direito do idoso, maior de 65 anos, de ser transportado gratuitamente, tem ele fonte constitucional no artigo 230, § 2o, conforme acima mencionado, e também no Estatuto do Idoso (artigo 39), que não estabeleceram regras para o reequilíbrio econômico e financeiro de contratos de concessão de transportes públicos estaduais e municipais. O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADI 3768-DF, entendeu que a ausência de previsão de fonte de custeio na Lei Federal nº 10.741/2003 não impede a imediata fruição do benefício do transporte gratuito por parte dos idosos, na medida em que se trata de direito previsto na Constituição Federal e, por isso, tem aplicação direta e imediata a contratos celebrados antes e depois da Carta de 1988. Eventuais discussões de ordem econômica, como reequilíbrio financeiro dos contratos de concessão, devem ser consideradas em sede própria entre o poder concedente e os concessionários. Confira-se a ementa do acórdão referido:

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 39 DA LEI N. 10.741, DE 1o DE OUTUBRO DE 2003 (ESTATUTO DO IDOSO), QUE ASSEGURA GRATUIDADE DOS TRANSPORTES PÚBLICOS URBANOS E SEMIURBANOS AOS QUE TÊM MAIS DE 65 (SESSENTA E CINCO) ANOS. DIREITO CONSTITUCIONAL. NORMA CONSTITUCIONAL DE EFICÁCIA PLENA E APLICABILIDADE IMEDIATA. NORMA LEGAL QUE REPETE A NORMA CONSTITUCIONAL GARANTIDORA DO DIREITO. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO.

1. O art. 39 da Lei no 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) apenas repete o que dispõe o § 2o do art. 230 da Constituição do Brasil. A norma constitucional é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, pelo que não há eiva de invalidade jurídica na norma legal que repete os seus termos e determina que se concretize o quanto constitucionalmente disposto.

2. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. (ADI no 3768/DF – Rel. Ministra Carmen Lucia Antunes Rocha – pub. DJU 26/10/2007.)”

É importante transcrever parte do voto da Ministra Relatora CARMEM LUCIA ANTUNES ROCHA, donde se extrai o fundamento constitucional para validar a norma do artigo 39 do Estatuto do Idoso, bem assim a possibilidade de ressarcimento pelas empresas concessionárias diante dos entes públicos titulares dos serviços, na hipótese de rompimento do equilíbrio econômico e financeiro do contrato de concessão com prejuízos reais e comprovados advindos da instituição da gratuidade.

“(…)

10. A alegação de inconstitucionalidade do art. 39 da Lei no 10.741/03, com o que não se poderia exigir o direito constitucional do idoso sem se dar forma à assunção dos deveres financeiros pelo poder público concedente (que, no caso dos transportes coletivos municipais, é o ente local), não se resolve pela declaração de inconstitucionalidade da norma contida naquele diploma legal. Não se comprova a alegada nódoa de inconstitucionalidade a macular aquela norma. Põe-se ela em perfeita conformidade com o quanto estabelecido constitucionalmente. Tem razão, nesse passo, o Advogado-Geral da União ao afirmar que a pretensão da Autora acaba, no fundo, de ser senão a de declarar inconstitucional o § 2o do art. 230 da própria Constituição, o que não é possível. Como objeto de contratos de concessão, conforme já assentado na doutrina, sabe-se que a prestação de serviço público de transporte atribuída pelo Estado ao particular, que deve prestá-lo em nome próprio e por sua conta e risco e, para tanto, deve cumprir as condições fixadas pelo Poder Público, há de obedecer ao princípio da juridicidade. Ora, o sistema jurídico fundamental vigente estampa o direito do idoso ao transporte coletivo gratuito. 11. O investimento e os gastos oriundos da prestação dos serviços públicos de transporte coletivo, delegado pelo ente público ao particular, haverão de ser calculados e haverão de ser definidos na relação delegante-delegado, sem que tanto seja traspassado ao particular, menos ainda àquele que, por força da norma constitucional (art. 230, § 2o) e infraconstitucional (art. 39 da Lei no 10.741/2003), haverá de fruir gratuitamente do serviço. 12. Imprópria juridicamente é a assertiva de que não se poderia exercer aquele direito constitucional do idoso antes que se fixasse, contratualmente (entre o ente delegante e a empresa delegada), a forma de assunção dos ônus financeiros pelo ente público. Ao reconhecimento de que o Estado pode alterar, unilateralmente, as condições fixadas para os contratos de concessão e permissão, tem-se, de um lado, que o particular tem a garantia da preservação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato e, de outro, que as normas constitucionais devem ser cumpridas. Compete ao contratado particular comprovar perante o ente contratante a ruptura do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, em quanto, como e porque para que seja refeito se for o caso e segundo dados específicos. A constitucionalidade da garantia não ficará comprometida, em qualquer caso, pois o idoso tem, estampado na Constituição, o direito ao transporte coletivo urbano gratuito. Quem assume o ônus financeiro não é questão que se resolve pela inconstitucionalidade da norma que repete o quanto constitucionalmente garantido. Isso bastaria para aniquilar o argumento da Autora, segundo o qual a exigência de cumprimento do direito dos idosos à gratuidade dos transportes estaria a romper com o equilíbrio econômico-financeiro. A argumentação da Autora, nesse ponto, há de ser tida como perversa. Os idosos não são em número suficiente para aniquilar os ganhos dos empresários. De outra parte, não há direito adquirido a se contrapor a direitos previstos constitucionalmente, como os que se referem aos idosos. Logo, mesmo nos contratos de concessão ou permissão assinados antes da promulgação da Constituição, em respeito à garantia de equilíbrio, o máximo que poderiam requerer os delegados dos serviços de transporte municipal e intermunicipal seria da alteração dos contratos para cobrir-se, financeiramente, com os ônus comprovados em planilha sobre o uso dos transportes delegados pelos idosos. Teriam, para tanto, de provar quantos e em que condições aqueles serviços onerariam os seus contratos. De novo, a espécie não estaria a contemplar inconstitucionalidade do art. 39 da Lei no 10.741/2003, senão que a forma de implementar o quanto nela posto. Ademais, após a promulgação da Constituição da República, todos os concessionários e permissionários estão submetidos às suas normas, não podendo, desde então, alegar que não sabiam do direito dos idosos ao transporte coletivo gratuito. Mais ainda, os custos advindos da gratuidade fazem parte de estudos de viabilidade do negócio assumido pelo particular e estão incluídos entre os custos do serviço, os quais são tidos, como ponderado pelo Advogado-Geral da União, ‘como fator importante na fixação da política tarifária, os aspectos econômicos atinentes à efetivação de tal direito’ (fl. 158). Conforme lembrado no Parecer do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, ‘qualquer cidadão sabe que, independentemente da quantidade de pessoas que utilizam o transporte público, ele deverá ser prestado em horários predeterminados pela Administração. O custo dessa operacionalização é estável. O que se quer demonstrar é que a empresa não tem um custo maior por estar transportando pessoas idosas. O transporte encontra-se ali disponível com o custo já estabelecido.’ Logo, a compensação pela gratuidade de transporte coletivo urbano aos idosos, pleiteada pela Autora, que não encontra previsão na Constituição da República, só é admitida quando ficar provado que houve ‘(…) prejuízo real para as empresas de transporte público em regime de concessão ou permissão, um desequilíbrio extraordinário e inesperado’ (fl. 142). O que patentemente não ocorreu, haja vista ser praxe, entre concessionários e permissionários, a previsão dos custos e dos lucros, não se podendo dizer da existência de qualquer desequilíbrio econômico-financeiro causado pela norma do art. 39 da Lei no 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), que, repete-se, não criou exigência nova alguma no ordenamento jurídico brasileiro. (…)”[8]

Indagação pertinente é aquela que busca saber se é possível à legislação federal, a pretexto de legislar sobre algum direito social genérico previsto na Constituição Federal (ex.: educação), estabelecer gratuidades em serviços públicos concedidos estaduais e municipais, acarretando ônus financeiro imediato às concessionárias e obrigação, eventual, para o poder concedente de restabelecer desequilíbrio econômico e financeiro do contrato. Em uma única proposição: pode a União Federal, por meio de intervenção social heterônoma, conceder benefício social em matéria de concessão de serviços públicos estaduais e municipais com o “chapéu alheio”?

O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADI no 1.950-SP, em que foi Relator o Ministro EROS GRAU, entendeu constitucional a intervenção do Estado na ordem econômica (em sentido estrito) para garantir a estudantes matriculados na rede pública de ensino o pagamento do valor de meia-entrada em cinemas, teatros e casas de espetáculo, sob o fundamento de que as atividades econômicas têm como princípio vetor a liberdade de iniciativa, mas devem se sujeitar à intervenção estatal que vise a desenvolver e fomentar o esporte, a cultura e o lazer.

Em outra oportunidade, o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADI no 3512-DF, voltou a validar a intervenção social em serviço público concedido, na medida em que assegurou ser legítima a instituição de gratuidade no serviço público de transporte para pessoas que, ordinariamente, doam sangue. Confira-se:

“Meia-Entrada e Doadores de Sangue

O Tribunal, por maioria, julgou improcedente pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Governador do Espírito Santo contra a Lei Estadual no 7.735/2004, promulgada pela Assembleia Legislativa, que institui a meia-entrada para doadores regulares de sangue em todos os locais públicos de cultura, esporte e lazer mantidos pelas entidades e pelos órgãos das Administrações Direta e Indireta do Estado. Entendeu-se que se trata, no caso, de norma de intervenção do Estado por indução, que visa tão-só ao incentivo à doação de sangue, conferindo um benefício àquele que adira às suas prescrições. Vencido o Min. Marco Aurélio que julgava o pleito procedente por considerar que a norma impugnada consiste em uma forma de remunerar a doação de sangue. (ADI 3512/ES, rel. Min. Eros Grau, julg. 15/02/2006.)

É importante registrar que o STF, nos julgamentos acima, placitou a constitucionalidade da intervenção social por parte do Estado em atividades econômicas em sentido estrito, escudada no desejo de promover um fim social, cujos agentes de mercado podem estabelecer preços diferenciados e ou promoções que compensem eventuais perdas financeiras a partir da gratuidade instituída.

Diferente hipótese, a meu sentir, seria a instituição de gratuidades pela União Federal em serviços públicos estaduais e municipais concedidos, e que tiveram, no momento da delegação, o estabelecimento de regras econômicas e financeiras que representaram o equilíbrio econômico e financeiro do ajuste. Em assim acontecendo, e desde que observada a competência legislativa para a matéria, penso que as empresas concessionárias terão de acatar a intervenção “heterônoma” da União Federal, mas poderão buscar junto ao poder concedente, baseado na teoria do fato do príncipe[9], o reequilíbrio econômico e financeiro do contrato de concessão, sobretudo se a hipótese ocorrer no Estado do Rio de Janeiro, onde vigora a regra do artigo 112, § 2o da CERJ/89[10] – ‘que exige fonte de custeio para toda e qualquer gratuidade conferida em serviço público estadual concedido’ –, declarado constitucional pelo STF quando do julgamento da ADI nº 3225/RJ.

Destaque-se que, diferentemente do setor privado, a empresa concessionária de serviço público não pode, por livre e espontânea vontade, desenvolver mecanismos ou práticas comerciais para compensar perdas decorrentes de intervenções sociais, sobretudo às decorrentes de gratuidades instituídas após a celebração do ajuste inicial entre concedente e o concessionário. Necessário lembrar que o valor da tarifa decorre de critérios técnicos definidos no momento da licitação para delegação do serviço e, posteriormente, sua majoração depende de prévia manifestação formal do poder concedente ou da agência reguladora competente[11].

Diga-se mais: a se admitir a ‘intervenção regulatória heterônoma e social’ da União Federal em serviços públicos estaduais e municipais para instituição de gratuidades, sem a possibilidade de a empresa concessionária se ressarcir desse custo não previsto no momento da celebração do ajuste, violado estarão os postulados do pacto federativo e da separação de poderes, bem assim as regras protetivas do ato jurídico perfeito (contrato de concessão) e do direito adquirido, mormente de manutenção do equilíbrio econômico e financeiro originalmente pactuado entre concedente e concessionário. No que diz respeito à segunda proposição acima alvitrada, isto é, se é possível uma lei federal, tal qual o fez Estatuto do Idoso no artigo 39, § 2o, estabelecer as regras para fruição do direito à gratuidade em serviços públicos, mesmo que contrárias às normas regulatórias dos entes públicos titulares dos serviços públicos de transporte, temos que a resposta merece ponderação entre os valores envolvidos para que deles se extraia razoável interpretação que as compatibilize e que não se vulnere os postulados do pacto federativo e da separação de poderes.

A hipótese anteriormente mencionada é real e retrata a realidade de muitos estados e municípios brasileiros na medida em que o Estatuto do Idoso admite, no § 2o do artigo 39, que qualquer cidadão com idade superior a 65 anos se utilize gratuitamente do transporte público, bastando, para tanto, a comprovação da idade com qualquer documento.

No Estado do Rio de Janeiro há regra regulatória em sentido diametralmente contrário, na medida em que o controle da concessão do benefício social da isenção do pagamento das tarifas foi instituído pela Lei Estadual no 4.291, de 22 de março de 2004, que, nos artigos 6o, § 1o e 9o[12], estabeleceu os requisitos para a fruição do direito do idoso, exigindo, para tanto, que seja ele portador de um cartão magnético que o identifique e que permita a contabilização das vezes em que efetivamente se utilizou da gratuidade.

Há uma explicação regulatória importante para justificar a existência dos dispositivos legais acima referidos, sobretudo no Estado do Rio de Janeiro. É preciso criar mecanismos técnicos hábeis para o cumprimento efetivo e eficiente da regra do artigo 112, § 2º da Constituição do Estado do Rio de Janeiro de 1989, que exige do Poder Público o custeio de gratuidades instituídas para serviços públicos concedidos.

Conforme se percebe, o Estado do Rio de Janeiro, visando regular e regulamentar o exercício legítimo do direito do cidadão acima de 65 anos de idade de utilizar o serviço público de transporte, bem assim em compatibilizá-lo com a regra do artigo 112, § 2º da CERJ/89, estabeleceu o sistema de bilhetagem eletrônica para tentar impedir eventuais fraudes em processos administrativos revisionais de concessão e ou de permissão de serviço público, impossibilitando que empresas concessionárias eventualmente possam vir a ser lesadas e/ou o Poder Público acabe pagando por mais gratuidades do que as que foram efetivamente utilizadas pelos idosos.

A meu sentir, desde que razoável (como me parece se afigurar a regulação do Estado do Rio de Janeiro) e que não impeça o fácil acesso dos idosos ao sistema de gratuidades (por exemplo: não poderá o ente titular do serviço cobrar pelo cartão eletrônico e/ou limitar a sua utilização pelo idoso), creio ser constitucional o exercício da competência regulatória pelos titulares do serviço, merecendo ser afastada a regra do § 2º do artigo 39 do Estatuto do Idoso, por ser norma federal aplicável apenas à União Federal e não aos estados e municípios, exatamente para se manter a intangibilidade dos postulados da separação de poderes e do pacto federativo.

Importante registrar que a Presidência do Superior Tribunal de Justiça, quando da análise da SLS nº 001070-RJ, entendeu plenamente compatível com o pacto federativo e com a ‘separação de poderes’ a regulação local de serviços públicos concedidos para racionalizar o sistema de gratuidades, afastando, na espécie, a regra do § 2º do artigo 39 do Estatuto do Idoso. Confira-se:

“Decido.

Os elementos contidos nos autos revelam a possibilidade de lesão à ordem e à economia públicas.

Com efeito, a determinação do acórdão recorrido, que amplia a decisão de primeiro grau antecipatória dos efeitos da tutela para permitir o ingresso dos idosos nos veículos de transporte coletivo rodoviário sem o porte do cartão RIOCARD e para estender tais efeitos aos ônibus e micro-ônibus especiais, esbarra frontalmente na administração e no controle do transporte público de passageiros, que são exercidos pelo Estado.

A implantação da bilhetagem eletrônica, de outra parte, não representa, por si, desrespeito aos idosos ou afronta aos seus sagrados direitos. Ao contrário, o mecanismo, na medida em que permite a racionalização do sistema, evita fraude e assegura a fiscalização do transporte, podendo vir a assegurar a utilização do transporte coletivo de forma segura pelas pessoas idosas e também pela população do município em geral.

Penso, assim, que os argumentos trazidos nesta medida excepcional são suficientes para justificar o deferimento do pedido e a restauração dos efeitos da decisão de primeiro grau.

Diante disto, determino a suspensão do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nos autos do Agravo de Instrumento nº 2008.00237993.

Comunique-se com urgência.

Publique-se.

Brasília, 02 de julho de 2009.

MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA”

Dessa forma, tenho que o artigo 39, § 2º da Lei Federal nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) constitui norma aplicável ao serviço público de transporte federal, sendo plenamente possível e legítimo aos demais entes da federação, quando da regulação dos seus serviços de transportes, estabelecer mecanismos técnicos e tecnológicos hábeis para a sistematização do regime de gratuidades, desde que razoáveis e que não inibam, ainda que minimamente, o cidadão idoso do exercício efetivo do direito à gratuidade, expressão real da cidadania.

Conclusão

Sem a pretensão de ter esgotado os temas objeto deste ensaio, concluo perfilhando entendimento de que é possível à União Federal, no exercício de uma competência constitucional para regular direito fundamental, intervir em serviços públicos estaduais e municipais para garantir benefícios sociais (gratuidades) aos cidadãos. Todavia, poderão as empresas concessionárias pleitear junto ao Poder Concedente a recomposição de eventual desequilíbrio econômico e financeiro do contrato de concessão.

Ato contínuo, será do ente público titular do serviço objeto da intervenção social heterônoma realizada pela União Federal a competência para regular o modo de fruição da gratuidade, não lhe sendo possível, porém, criar embaraços ou exigências irrazoáveis que acabem por afugentar os beneficiários do direito constitucional ou legal que lhes foi garantido.



[1] Por todos os doutrinadores pátrios, traz-se à colação o conceito clássico de serviço público cunhado por Hely Lopes Meirelles, para quem o “serviço público é todo aquele prestado pela Administração Pública ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniência do Estado”. In: Direito Administrativo brasileiro. 23.ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 285.
[2] Importantes são os ensinamentos de Diogo de Figueiredo Moreira Neto para a compreensão do conceito de função regulatória: “Cabe aqui traçar conceitualmente o desenho das instituições jurídicas que passaram a desempenhar no Direito Administrativo contemporâneo essas funções homeostáticas com certos setores críticos da convivência, social e econômica, de modo a proporcionarem o máximo de eficiência na solução de problemas, aliando, na dosagem necessária para cada hipótese, as vantagens da flexibilidade negocial privada com o rigor da coercitividade estatal.

A essa atividade dos subsistemas de harmonização é que se denomina de função reguladora, uma expressão que não obstante o étimo, que a aproxima da voz vernácula regra, é, na verdade, um híbrido de atribuições de variada natureza: informativas, planejadoras, fiscalizadoras e negociadoras, mas, também, normativas, ordinatórias, gerenciais, arbitradoras e sancionadoras.

Esse complexo de funções vai cometido a um único órgão regulador para que este defina especificamente o interesse que deverá prevalecer e ser satisfeito nas relações sujeitas à regulação.” MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 107.

[3] A noção de modelagem para a prestação do serviço público é fornecida por Marçal Justen Filho: “(…) tem de reconhecer-se que a modelagem da concessão reflete uma opção de natureza regulatória. Trata-se de selecionar entre diversas alternativas – não apenas entre prestação do serviço pela própria Administração ou por delegação à iniciativa privada. Existem inúmeras opções distintas a propósito da concessão que se relacionam à dimensão dos encargos impostos ao particular, ao modo de sua remuneração, ao prazo da outorga. As escolhas consagradas pelo poder concedente produzirão efeitos significativos no tocante aos efeitos não apenas jurídicos, mas também econômicos da delegação. Dito de outro modo, as opções realizadas pelo poder concedente não serão economicamente neutras, mas afetarão diretamente aos usuários e indiretamente inúmeras outras atividades.

Sendo assim, é absolutamente injustificável que o poder concedente deixe de tomar em vista a instrumentalidade da concessão em face de suas políticas públicas. Não se concebe como constitucionalmente satisfatória a omissão ou o desconhecimento pelo poder concedente às decorrências das decisões adotadas no âmbito regulatório. Pode qualificar-se como padecendo de desvio de finalidade a decisão adotada pelo poder concedente que deixe de avaliar adequadamente os efeitos previsíveis da modelagem adotada para uma certa concessão.” In: Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 197.

[4] “Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

(…)

§ 2o – Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos.”

[5] “Art. 245. Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade nos transportes coletivos urbanos e intermunicipais.”

[6] “Art. 39. Aos maiores de 65 (sessenta e cinco) anos fica assegurada a gratuidade dos transportes coletivos públicos urbanos e semiurbanos, exceto nos serviços seletivos e especiais, quando prestados paralelamente aos serviços regulares.

§ 1o – Para ter acesso à gratuidade, basta que o idoso apresente qualquer documento pessoal que faça prova de sua idade.”

[7] Nas palavras de Hugo de Brito Machado, “isenção heterônoma, para o direito tributário, é aquela concedida por lei de pessoa jurídica diversa daquela que é titular da competência para instituir e cobrar o tributo a que se refere”. In: Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2007, 28.ed., p. 257.

[8] Ficou parcialmente vencido o ministro Marco Aurélio Melo, que se posicionou favoravelmente à constitucionalidade do artigo 39 do Estatuto do Idoso, mas limitou a discricionariedade do Poder Público para proceder ao eventual reequilíbrio econômico e financeiro dos contratos de concessão. Sustentou o referido ministro que o reequilíbrio, se necessário, não poderia acontecer com a majoração do valor da tarifa cobrada dos usuários, vez que a benesse social está prevista no § 2º do artigo 230 da CRFB/88 que, em sua cabeça, aduz ser a proteção do idoso obrigação da ‘família, do Estado e da sociedade’ e não dos usuários específicos do serviço público de transporte objeto da intervenção social que garantiu a gratuidade. Com isso, o ministro Marco Aurélio entende que o Estado e/ou a sociedade devem arcar com esse ônus cobrando os valores necessários de todos os cidadãos (via pagamento de impostos) e não impondo aos usuários do serviço o mencionado ônus financeiro.

[9] Confira-se a noção de fato do príncipe nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello: “Agravos econômicos resultantes de medidas tomadas sob titulação jurídica diversa da contratual, isto é, no exercício de outra competência, cujo desempenho vem a ter repercussão direta na economia contratual estabelecida na avença. É o chamado ‘fato do príncipe’, tomada a expressão com o âmbito específico a que se reporta Francis-Paul Benoit, ao dizer: ‘Convém entender por ‘fato do príncipe’ os atos jurídicos e as operações materiais, tendo repercussão sobre o contrato, e que foram efetuados pela coletividade que celebrou o contrato, mas agindo em qualidade diversa da de contratante.’ O fato do príncipe não é um comportamento ilegítimo. Outrossim, não representa o uso de competência extraída da qualidade jurídica do contratante, mas também não se constitui em inadimplência ou falta contratual. É o meneio de uma competência pública cuja utilização repercute diretamente sobre o contrato, onerando, destarte, o particular.” In: Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 605-606.

[10] “Art. 112. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Ministério Público e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(…)

§ 2º – Não será objeto de deliberação proposta que vise conceder gratuidade em serviço público prestado de forma indireta sem a correspondente indicação da fonte de custeio.”

[11] Nesse sentido, confira-se o artigo 9° da Lei Federal nº 8987/95:

“Art. 9º. A tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato.

(…)

§ 4º – Em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração.”

[12] 12 “Art. 6º. (…)

§ 1º – Para o exercício da gratuidade, cada um dos seus beneficiários utilizará o cartão eletrônico, sendo que o seu ingresso nos veículos dar-se-á da mesma forma que o do usuário pagante.

Art. 9º – No exercício do direito à gratuidade, será obrigatória a utilização do cartão eletrônico após a implantação do Sistema, na forma prevista no art. 4º e seu parágrafo único.”