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A jurisprudência do STJ em matéria tributária do setor elétrico

30 de novembro de 2007

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Nos dias atuais, a velocidade das informações e a escassez de tempo vêm aproximando os povos, e diminuindo as distâncias e as diferenças. Fala-se em um mundo global ou um mundo plano.

O fenômeno também se estende à esfera do Poder Judiciário e, hoje, podemos afirmar que estão praticamente imbricados os sistemas da common law (sistema de precedentes) e da civil law (sistema da segurança jurídica).

Como reflexo, temos a importância assumida no Brasil, tradicionalmente adepto do sistema da segurança jurídica, pelos precedentes, fazendo realçar a jurisprudência como uma das mais importantes fontes do direito.

Por outro ângulo, temos, na revisão crítica promovida no Brasil com a Constituição de 88, com imenso atraso cronológico, registre-se, o fenômeno da judicialização dos conflitos de interesses. Tudo passa e termina no Poder Judiciário, perdendo a sociedade brasileira, lamentavelmente, as tradicionais formas alternativas de resolução de conflitos. No passado, os conflitos mais simples – como desavenças de vizinhos, entre marido e mulher, entre parentes, discordância quanto a contratos de pequena monta, acidentes de automóvel, etc. – eram resolvidos por acordo, com a intermediação do pai de família, do líder comunitário, do chefe político, do padre ou da professora. Atualmente, todos buscam na Justiça Estatal a solução.

Faço o destaque para dizer da importância da jurisprudência quando se pretende saber do  desempenho do setor elétrico, como se comportam as concessionárias para com os usuários e como ambos se relacionam com o Estado, provedor último pela responsabilidade que tem sobre assuntos básicos e estratégicos, como é a questão da energia elétrica.

Diante da importância assumida pelo Judiciário na realização da paz social nos mais diversos quadrantes da vida, podemos dizer que a análise da produção judicial é também uma análise política.

Antes de tratar especificamente sobre tributos, é preciso atentar para o fato de que existem determinadas causas históricas e sociais que dificultam e influenciam a condução dos processos, a partir da magistratura de 1º Grau.

A primeira dificuldade está na aceitação do modelo político-ecomômico instalado no Brasil, o qual passou pelo enxugamento da intervenção estatal no mercado, tendo na privatização um dos mais eficientes instrumentos para alcançar o objetivo. A dificuldade tem início, pois, na não aceitação ideológica do modelo econômico traçado.

A segunda dificuldade diz respeito ao exato conhecimento do papel das agências reguladoras dentro da economia privatizada, compreensão dificultada pela deformação procedida pelo próprio Governo, que teima em não aceitar com largueza a independência técnica e administrativa das agências.

A solução para as duas dificuldades apontadas virá com o tempo, com uma nova visão ideológica do que é efetivamente a privatização no Brasil. Essa minha percepção vem das conversas que tenho tido com os magistrados, desde a época dos leilões de privatizações, ou seja, o que eles pensam sobre a privatização, como estão vendo a atuação das agências reguladoras em parceria com as concessionárias dos serviços públicos privatizados.

Dentro desse quadro de dificuldades, há ainda um outro fator: o Executivo traça a política energética, mas o Legislativo forma o arcabouço regulatório.
A divergência entre os Poderes tem reflexos no Judiciário, ensejando os mais diversos questionamentos suscitados pelas concessionárias, pelos usuários e pelos mesmos contra a União, via agência reguladora.

A pobreza do povo brasileiro, em uma sociedade absurdamente excludente, com alto índice  de concentração de renda, aliada aos movimentos em torno dos direitos de terceira geração, destacando-se a valorização de defesa do consumidor, tem ensejado uma série de questionamentos em torno do valor da tarifa, da forma de sua cobrança, da política de preço mínimo traçada pela Agência Reguladora, etc.

Na outra ponta, temos as concessionárias, que atenderam ao chamamento estatal com a privatização, realizando altíssimos investimentos,  pautados em contratos milionários. É óbvio que os investidores não podem ficar à mercê de injunções políticas e/ou de disputas ideológicas, necessitando de um mínimo de segurança, que é emanada das regras contratuais preestabelecidas e garantidas pelo Judiciário.

A alteração constante das decisões judiciais, fazendo oscilar a jurisprudência sem razões plausíveis, é preocupante para os investidores, ocasiona imensurável prejuízo para as finanças públicas e desacredita a Justiça aos olhos dos jurisdicionados.

O ideal, em qualquer sociedade organizada, é a manutenção da segurança jurídica pela sedimentação das decisões judiciais e da harmonia de entendimento entre os diversos graus de jurisdição: o dos juízes de 1º Grau, com uma visão mais acanhada, mas profundamente imbuída nos fatos que lhes são trazidos pelas partes, e o dos Tribunais, norteadores das decisões dos magistrados de 1º Grau, pela visão mais abrangente, fruto da amplitude territorial dos julgados.

Na atual conjuntura, a preocupação é fazer a aproximação da base  à  cúpula, diminuindo-se o hiato criado entre os diversos graus de jurisdição.
Nesse trabalho, estamos a reunir a visão política dos Tribunais à visão fática da base, envolvendo todos os operadores do direito, responsáveis pela produção do direito pretoriano e que, por isso mesmo, devem estar  sintonizados e harmônicos no entendimento quanto aos valores da sociedade.

Assim, luta-se para pôr fim à guerra das liminares, das cassações constantes das decisões dos juízes de 1º Grau pelo Poder de cúpula, divergências que levam a uma avalanche de demandas, de questões pontuais de natureza processual.

Após essa introdução, inicio o exame da jurisprudência do STJ pelos questionamentos referentes às tarifas, aspecto que tem contribuído para um assustador volume de litígios.

A tarifa é o preço pago pelo usuário pela utilização de um serviço que, sendo considerado essencial, está sob controle estatal, mesmo quando prestado por empresa privada. Pergunta-se, então: como é feita a fixação das tarifas? A tarifa é fixada a partir dos critérios estabelecidos pelo Estado, por meio da agência reguladora própria (ANEEL), definindo os reajustes e as revisões tarifárias, determinados sobre critérios técnicos e políticos.

À União cabe, por disposição constitucional, estabelecer a forma de investimento no setor, competindo-lhe a exploração, os serviços e as instalações no setor de energia elétrica, seja de forma direta, pelo próprio Estado, ou por intermédio de concessões ou de permissões. Assim, tem-se, no seio do Estado, a política de consumo, para a qual se deve levar em consideração, dentre outros fatores, o meio ambiente, o poder aquisitivo da população, o valor dos investimentos e o percentual de retorno desses investimentos, em equação eminentemente política.

Lembre-se, ainda, que, dentro dos critérios políticos, considera-se uma espécie de subsídio, dos consumidores mais abonados, para com os consumidores de baixa renda, selecionados pelo tamanho do consumo. Em outras palavras, quem consome mais paga tarifa unitária mais alta para subsidiar a unidade tarifária de quem consome menos.

A partir daí, estabelecem-se relações jurídicas que se apresentam imbricadas, seja entre o Estado e as concessio-nárias, seja entre as concessionárias e os consumidores, seja entre Estado, concessionárias e consumidores, esclarecendo-se que o Estado está representado pela agência reguladora.

O valor das tarifas, como visto, fixado pela agência reguladora, deve ainda cobrir os encargos tributários, bastante altos no sistema tributário nacional, não podendo se perder de vista o fato de haver, com o valor pago pelos consumidores, parcela considerável de retorno aos cofres públicos, correspondente aos tributos incidentes sobre a energia elétrica consumida.

Há, atualmente, forte reivindicação dos órgãos de defesa dos consumidores  no sentido de barateamento das tarifas, defendendo, inclusive, a proporcionalidade da atualização dos preços pelo IPCA (Índice de Preço ao Consumidor Amplo) ou pelo IPCM (Índice Geral de Preço do Mercado).

Ocorre que os ingredientes de formação do preço das tarifas são inteiramente diversos dos que compõem a formação do IPC, o que levaria a um desequilíbrio na política de preços, considerando-se, inclusive, o subsídio existente dos consumidores mais abastados para com os consumidores de baixa renda. Por outro lado, a remuneração do capital estrangeiro, financiador dos programas de ampliação e modernização da rede elétrica, tem como parâmetro a moeda estrangeira, adredemente, o que afasta a possibilidade de se seguir a atualização pelos índices de consumo interno.

As decisões judiciais que atendem às reclamações quanto à forma de reajuste das tarifas pelo IPCA ou  pelo IGPM, em desobediência aos contratos assinados pelas concessionárias com o Governo Brasileiro, estão a causar grande tumulto na esfera judicial. É grande o volume dessas ações que estão lotando a Justiça de 1º Grau, os Juizados Especiais, a Justiça Estadual e a Justiça Federal.

Lamentavelmente, a jurisprudência do STJ, seguindo um critério eminentemente prático, entendeu que o consumidor pode escolher, ao seu alvedrio, em litigar apenas com a concessionária, o que leva a demanda para a Justiça Estadual, ou com a concessionária e a agência reguladora, caso em que se torna competente a Justiça Federal, diante da presença da autarquia.

A posição jurisprudencial prevalente não contou com o meu entendimento, pois penso que não é possível mexer em cláusulas contratuais preestabelecidas com o Estado, como sói acontecer com o valor das tarifas, sem a presença do Estado, via agência reguladora.

Entretanto, quando o STJ foi chamado a decidir sobre o tema, em conflito de competência, já estavam as Justiças – Estadual e Federal –, abarrotadas de demandas. Entendeu-se, então, para evitar tumulto, manter as demandas da forma escolhida pelo autor.

Sobre o tema de fundo, valor das tarifas, vem o  Superior Tribunal de Justiça afirmando não ser possível a atualização pelos índices de preços ao consumidor, em razão dos contratos de concessão estabelecerem outro parâmetro de atualização.

A partir daí, já existe um posicionamento bastante explícito
em diversas decisões tomadas pela Presidência da Corte e confirmadas na Corte Especial, posição que se reflete nos julgamentos das Turmas de Direito Público, no sentido de observar-se o contrato firmado entre o Estado e as concessionárias, cujas cláusulas são consideradas quando a ANEEL traça a política de tarifas, pois se obedece ao contrato.

Uma outra questão, que é digna de realce, diz respeito à incidência do ICMS sobre o consumo de energia elétrica. Até a Constituição de 88, havia, a respeito do consumo de energia elétrica,  imposto único, e os questionamentos eram bem menores. Com a nova Carta, extinto o imposto único, passou  a incidir o ICMS sobre o consumo de energia elétrica, surgindo muitas divergências, e mesmo dúvidas, visto que é o ICMS imposto extremamente complexo.

A grande discussão foi sobre a forma de cálculo. Houve discussões acirradas, ainda à época do Decreto-Lei 406, e o Superior Tribunal de Justiça, contra meu voto, estabeleceu que, até a vigência do Decreto-Lei 406, era absurdo o cálculo do ICMS integrando a base de cálculo do seu próprio imposto.

Após a Lei Complementar 87/96, pacificou-se a jurisprudência na Corte, prevalecendo o entendimento de que o ICMS incide sobre si mesmo, afirmando-se, então, que se faz o cálculo por dentro. Esta posição está hoje estabilizada com a também posição do Supremo Tribunal Federal.

A sistemática causa considerável aumento no preço da energia. Diferentemente das demais mercadorias, a energia elétrica, assim considerada para efeitos tributários, tem  base de cálculo com a sua própria inclusão, ou seja, o ICMS inclui o próprio ICMS.

Muitos outros aspectos estão, ainda hoje, sendo questio-nados, como, por exemplo, o questionamento quanto à de-dução e creditamento do ICMS incidente sobre a energia elétrica utilizada como insumo.

Em relação à energia elétrica, o tratamento vinha sendo diferente, pois não se via, no seu consumo, um insumo, mas o Superior Tribunal de Justiça, em um precedente de grande importância e de grande alcance social, afirmou o seguinte: “Temos de estabelecer qual é o objeto social da empresa para saber se na mercadoria negociada a energia elétrica pode ser considerada como insumo”.
Por exemplo, nas padarias e estabelecimentos afins, que usam a energia elétrica para fazer funcionar os fornos e estufas, entende-se que há utilização da energia elétrica como matéria-prima, permitindo-se a dedução como tal. O mesmo não ocorre, por exemplo, com as lojas e os shoppings centers, uma vez que o consumo de energia elétrica não pode ser considerado como matéria-prima, e sim despesa operacional. Essa posição ficou chancelada pelo Superior Tribunal de Justiça, embora existam, ainda, algumas resistências com relação a esse entendimento.

Um outro questionamento muito interessante diz respeito ao momento de geração da energia elétrica. Os Estados produtores de energia elétrica, onde estão as usinas hidroelétricas, fazem reivindicação do ICMS incidente sobre a energia produzida nos seus territórios.

O Estado de Goiás, por exemplo, é um dos que vêm reivindicando, por ter dentro da sua área territorial usinas hidroelétricas que fornecem energia para outros Estados, como Minas Gerais e Tocantins – Estados que, pela sistemática atual, geram a energia a partir das usinas de distribuição. O entendimento do STJ foi de que, na primeira operação, que é a de produção de energia elétrica, não existe geração de ICMS, o que só existe na segunda operação, que é a distribuição, cabendo a arrecadação do ICMS ao Estado onde estão as empresas concessionárias ou permissionárias.

Ainda há uma outra questão de relevância, que ainda hoje é objeto de disputa pelos Estados, referente à incidência do ICMS sobre a chamada “demanda reservada”.

O que vem a ser “demanda reservada”? As empresas, preocupadas com a precariedade de energia, reservam um determinado percentual de fornecimento perante as concessionárias, a fim de não prejudicar sua produtividade, caso haja um gasto maior. Entretanto, o quantitativo reservado não vem a ser utilizado em sua totalidade, pois, ao final de um certo período, o consumo vem a ser menor do que o previsto e reservado. Pergunta-se, então: o ICMS incide sobre  a energia efetivamente consumida ou sobre a energia reservada?

As decisões que chegam dos tribunais, e até dos juízes de 1º Grau, são riquíssimas em detalhes técnicos. Foi preciso entender os detalhes técnicos do processo de geração de energia elétrica para decidir sobre a incidência do ICMS.
A jurisprudência que tem prevalecido nas Turmas de Direito Público é no sentido de que o ICMS incide sobre o consumo efetivo de energia elétrica e não sobre uma mera expectativa. Esse entendimento retira das empresas uma considerável sobrecarga de tributo, o que, entretanto, não agrada aos Estados, que continuam a tentar alterar a jurisprudência, até agora sem sucesso.

Temos um questionamento, hoje, muito sério, e que não diz muito respeito às concessionárias de energia elétrica, nem à ANEEL, mas à própria União, via ELETROBRÁS: trata-se da devolução do compulsório de energia elétrica da Lei 4.156/62. E por que é importante essa questão?

A devolução do compulsório de energia elétrica é importante porque, na realidade, o desfalque econômico não é pequeno e o preço será pago por todos os brasileiros.

O empréstimo compulsório de que tratamos obedece a uma legislação especial, estando prevista, em princípio, a devolução sobre a forma de ações da ELETROBRÁS. Como a empresa teve um fabuloso lucro, foi conveniente, à época, alterar a legislação para fazer-se a devolução em dinheiro.

O primeiro questionamento em torno desse empréstimo está no quantitativo a ser devolvido, entendendo-se que, por se tratar de empréstimo, deverá ser devolvido no mesmo quantitativo tomado  com a promessa de devolução, característica primeira do contrato coativo, empréstimo compulsório. Assim, discute-se: esse empréstimo deve ser devolvido pelos índices de correção monetária, que atuam em todos os processos judiciais?

Adotando-se essa forma de devolução, grande será o volume de dinheiro a ser desprendido pela ELETROBRÁS, além de se descartar a legislação específica que rege a espécie empréstimo compulsório.

Também está em discussão o prazo prescricional quanto ao creditamento dos juros do empréstimo, considerando-se as diversas alterações legislativas sobre a incidência dos frutos civis.

O STJ, em alguns julgamentos já concluídos, estabeleceu que o prazo é de 20 anos, mas o questionamento é em relação ao início do prazo da prescrição. Toda a sociedade jurídica espera uma definição.

Uma outra controvérsia que já está no Judiciário, embora não tenha chegado ao STJ, é o encargo emergencial da Lei 10.438/02, que consiste em um adicional tarifário específico, exigência compulsória instituída aos consumidores em geral, com a finalidade de incentivar o racionamento de consumo. A pergunta que se faz é a seguinte: qual a natureza jurídica desse adicional? É adicional em razão de intervenção no domínio econômico e, dessa forma, regulado pelas regras do direito tributário ou se trata de uma mera sobretarifa? As discussões  espraiam-se na imaginação dos doutrinadores e já nos preparamos para enfrentá-las no STJ.

Contudo, parece que o maior problema da incidência tributária exacerbada diz respeito ao PIS e à COFINS. Trata-se de contribuições extremamente injustas, por gravarem o resultado econômico do  empreendimento, sem questionar se incidem sobre o lucro ou não. Em tese, pode uma empresa operar com prejuízo e, assim mesmo, pagar o tributo pelo faturamento bruto.

A política tributária exacerbada onera, sobretudo, o consumidor da energia elétrica, principalmente quando se trata de mercadoria cujo consumo é de absoluta indispensabilidade.

Essas são as questões que, atualmente, estão sendo apreciadas no STJ e que foram aqui realçadas por me parecerem relevantes.