Edição

A liberdade da imprensa

30 de abril de 2009

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“Não concordo com uma só das palavras que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-las.”
Voltaire (1694/1778)

O presente editorial, busca refletir sobre a preocupação de todo cidadão consciente dos direitos assegurados na Constituição Federal, sobre a sua liberdade e, em especial, a da imprensa.
Os tempos atuais e os direitos que advieram e foram implantados nos países democráticos, impuseram, por força do resultado das lutas libertárias em todo o universo, o respeito ao preceito da liberdade, que se tornou, pelas circunstâncias, imutável.
No Brasil, a partir da proclamação da Independência, com exceção dos períodos em que o Congresso declarou os Estados de Sitio e de Guerra, e triste e infelizmente durante os anos de 1937/1945 e no período de chumbo da Ditadura Militar (1964 a 1985), o direito da liberdade de imprensa foi assegurado, inclusive com garantia dos Tribunais.
Em 9 de fevereiro de 1967, foi sancionada a Lei nº 5.250, oriunda do Congresso Nacional (consentida pelos militares), que vigora até hoje, que pelos seus dispositivos constitui uma verdadeira excrescência contra a liberdade de imprensa e os jornalistas, conferindo penas até superiores à Lei de Segurança Nacional, decreto-lei nº 898, de 29 de setembro de 1969.
As manifestações dos jornalistas expressadas nos jornais de todo o País, repudiando a vigente Lei de Imprensa (nº 5.250/67), motivaram os respectivos órgãos da classe, em especial a Federação dos Jornalistas Profissionais, e, principalmente, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) — capitaneada pelo seu incansável e valoroso presidente Maurício Azedo, que, aproveitando as comemorações do centenário de sua fundação, promoveu diversas reuniões e manifestações imprecando contra a sufocante lei repressiva —, culminando com a feliz iniciativa do deputado federal Miro Teixeira, jornalista, conselheiro da ABI, autor da petição inicial da ação de arguição de descumprimento de preceito constitucional, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal, com relatoria do eminente ministro Carlos Ayres Britto.
A brilhante sustentação oral de Miro Teixeira perante o Plenário da Corte em defesa do postulado merece destaque em um dos tópicos de sua oração: “A imprensa são os olhos do povo. Requeiro que desapareça a possibilidade de pena a jornalista ou responsável pela publicação sempre que houver causalidade com o direito do povo, e que possamos ter um país em que o povo possa controlar o Estado e não que o Estado possa controlar o povo, como temos hoje”.
O primoroso e substancioso voto do ministro Ayres Britto, acompanhado pelo ministro Eros Grau, consagrou o princípio constitucional e resgatou o espírito da Constituição de 1988, no que se refere à liberdade de expressão, ressaltando no seu brilhante voto todos os trechos da Constituição que garantem o exercício “pleno e livre” da liberdade de expressão, e aproveitou para citar a célebre frase do ex-presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson: “Se tivesse de decidir se devemos ter governo sem jornais ou jornais sem governo, eu não vacilaria um instante em preferir o último”.
No seu voto, disse mais: “Em matéria de imprensa, não há espaço para o meio-termo ou a contemporização. Ou ela é inteiramente livre, ou dela já não se pode cogitar senão como jogo de aparência jurídica. É a trajetória humana, é a vida, são os fatos, o pensamento e as obras dos mais acreditados formadores de opinião que retratam sob todas as cores, luzes e contornos que a imprensa apenas meio livre é um tão arremedo de imprensa como a própria meia verdade”.
É oportuno que rememoremos por incidente ao conteúdo deste editorial, a magnífica decisão proferida em defesa da liberdade da imprensa pelo ministro Peçanha Martins, quando apreciou no Superior Tribunal de Justiça, o habeas corpus requerido pelo senador Sérgio Cabral, contra ato do Ministro da Justiça que pretendia expulsar o jornalista William Larry Rohter Junior, repórter do “The New York Times”, por ter publicado que o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva era usuário de bebida alcoólica e dado à embriaguez.
Por importante, transcrevemos na íntegra a decisão do referido processo, cujo resultado antecipou-se ao julgamento pelo Supremo Tribunal Federal.

“HABEAS CORPUS nº 35.445 – DF (2004/0066761-3)
Relator:         Ministro Francisco Peçanha Martins
Impetrante:   Senador Sérgio Cabral
Impetrado:   Ministro de Estado da Justiça
Paciente:        William Larry Rohter Júnior

DECISÃO
Trata-se de habeas corpus requerido pelo senador Sérgio Cabral em favor de William Larry Rohter Junior, contra ato do ministro interino da Justiça que cancelou o visto do paciente, repórter do jornal “The New York Times”, por haver publicado matéria jornalística noticiando que o Presidente da República faria uso de bebida alcoólica.
Reproduzo o texto da nota do Ministro publicada pelo jornal “O Globo” de hoje, dia 12.5.2004, transcrita às fls. 3 dos autos: “Em face da reportagem leviana, mentirosa e ofensiva à honra do Presidente da República Federativa do Brasil, com grave prejuízo à imagem do País no exterior, publicada na edição de 9 de maio passado do jornal “The New York Times”, o Ministério da Justiça considera, nos termos do artigo 26 da Lei nº 6.815, inconveniente a presença em território nacional do autor do referido texto. Nessas condições, determinou o cancelamento do visto temporário do senhor William Larry Rohter Junior”.
Funda-se o requerente no art. 5º, incisos IV, IX e LII, da Constituição, pedindo seja concedida ordem liminar de habeas corpus, para suspender ‘os efeitos de ato violador da liberdade de locomoção no Brasil, a fim de fazer cessar o constrangimento ilegal praticado pela autoridade coatora’, requerendo ao final a concessão da ordem em definitivo após o trâmite legal.
É o relatório.

DECIDO
O Brasil é um Estado Democrático de Direito e o Presidente da República contribuiu com intensa participação política para a instauração da democracia plena no País e se conduz com honra e dignidade.
A imprensa é um dos pilares fundamentais da demo­cracia e “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, nos precisos termos do art. 5º, inciso IX, da Constituição.
“A imprensa”, disse Rui Barbosa, “é a vista da nação” e “o jornalista às mais das vezes é isto; um refletor da luz que vem do público, dos sentimentos populares do meio que o cerca”. (in Laudelino Freire, Ruy, pág. 38, Ed. Casa de R.B., 1958 e Obras Completas, vol. XXIX, tomo V, pág. 186, respectivamente).
O fato é que o paciente, jornalista estrangeiro, teve cancelado o visto de permanência no País, por ter assinado reportagem dita leviana, mentirosa e ofensiva à honra do Presidente da República Federativa do Brasil, publicada no “The  New York Times”.
Poderia o Ministro da Justiça fazê-lo?
O ato de concessão ou revogação de visto de permanência no país de estrangeiro, em tese, está subordinado aos interesses nacionais (art. 3º da Lei nº 6.815/80). O visto é ato de soberania. Pergunto-me, porém, se uma vez concedido poderá ser revogado pelo fato do estrangeiro ter exercido um direito assegurado pela Constituição, qual o de externar a sua opinião no exercício de atividade jornalística, livre de quaisquer peias? Estaria tal ato administrativo a salvo do exame pelo Judiciário?
Neste caso penso que não. É que no Estado Democrático de Direito não se pode submeter a liberdade às razões de conveniência ou oportunidade da Administração. E aos estrangeiros, como aos brasileiros, a Constituição assegura direitos e garantias fundamentais descritos no art. 5º e seus incisos, dentre eles avultando a liberdade de expressão. E dúvidas não pode haver quanto ao direito de livre manifestação do pensamento (inciso IV) e da liberdade de expressão da atividade de comunicação, ‘independentemente de censura ou licença’ (inciso IX).
Mas dos autos só constam alegações e notícias publi­cadas em jornais. Não acompanha a inicial a reprodução do ato administrativo e entendo necessário conhecer as razões que o determinaram.
Urge, porém, assegurar ao paciente, cujo pleito vejo revestido da fumaça de bom direito, a plena eficácia das garantias constitucionais, pelo que lhe defiro salvo-conduto até decisão do feito, nos termos do art. 201, IV, do RISTJ.
Oficie-se ao Exmo. Sr. Ministro de Estado da Justiça comunicando a decisão e requisitando informações no prazo de 72 (setenta e duas) horas.
Publique-se e intime-se.
Brasília  (DF), 13 de maio de 2004

Ministro Francisco Peçanha Martins
Relator”

Ainda há de se considerar e extrair do substancioso e bem posto voto do eminente ministro Carlos Ayres Britto, no seu acertado arrazoado que prima pelo absoluto primado da liberdade de imprensa, as lições deixadas no discorrer dos respectivos itens  30 e 46, ao citar o francês Aléxis Tocqueville (1805/1859): “numa democracia o modo mais eficaz de se combater os excessos de liberdade é com mais liberdade ainda”, e René Descartes (1596/1650): “a máxima de que não lhe impressionava o argumento de autoridade, mas, isto sim, a autoridade do argumento”.
Também do esplendoroso voto do magnífico jurista extraímos outras preciosidades, como a do item 59: “Visto que imprensa livre e desembaraço total no desfrute das liberdades aqui exalçadas são, para a nossa Constituição, uma coisa só. Uma realidade inapartável.” E mais, item 67, fulminando a questão: “Sem maior esforço mental, por conseguinte, conclui-se que a lei em causa faz da liberdade de imprensa uma obra de impostura, distanciada a anos-luz da radical tutela que salta de uma Constituição apropriadamente apelidada de cidadã pelo deputado federal Ulisses Guimarães (presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988)”.
A continuidade do julgamento no Supremo Tribunal Federal, dada a relevante importância que reveste a questão, deverá ser adiada por pedido de vista de outro eminente ministro para fundamentação de suas importantes razões. O resultado da causa, que afeta um dos alicerces maiores dos direitos da cidadania como assegurados na Carta Magna, trará consequentemente, até solução final da questão, outros relevantes depoimentos de eminentes membros da Suprema Corte.
Dada a importância desse memorável julgamento sobre a liberdade da imprensa, a editoria da Revista publicará uma edição especialmente dedicada ao assunto, contendo desde a inicial promovida pelo jornalista e deputado federal Miro Teixeira, as sustentações orais produzidas na tribuna do STF e a compilação dos votos dos eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal.
Os jornalistas de todo o País, e até do exterior, aguardam esse resultado que, consequentemente, restabelecerá o direito impostergável assegurado pela Constituição Federal e soterrará a excrescência da Lei nº 5.250, sancionada em plena Ditadura Militar, em 9 de fevereiro de 1967, pelo presidente ditador Humberto Castelo Branco, que possibilitou nestes últimos 42 anos a instauração de processos e prisões de milhares de jornalistas, em afronta e desrespeito à liberdade da imprensa.

Post Scriptum
Homenagem póstuma a um bravo jornalista
O Editor aproveita o teor desta matéria para prestar uma derradeira homenagem ao jornalista Márcio Moreira Alves, falecido no Rio de Janeiro ao anoitecer do dia 3 de abril corrente.
Nascido no Rio de Janeiro em 14 de julho de 1936, o jornalista ficou conhecido nacionalmente após um discurso pronunciado na tribuna da Câmara dos Deputados, em 2 de setembro de 1968, condenando a brutalidade das ações policiais e militares praticadas pelos vitoriosos da Revolução de 1964, sugerindo um boicote às comemorações do 7 de setembro como protesto contra o fechamento da Universidade Federal de Minas Gerais e a invasão da Universidade de Brasília.
O discurso foi considerado ofensivo “aos brios das Forças Armadas”, e usado pelo Governo Militar como desculpa para a edição do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, tendo em vista que desde os primeiros dias de abril de 1964, o repórter Marcito, como era conhecido, havia percorrido o País, visitando prisões do Dops nos estados, nos navios de Marinha de Guerra e da Marinha mercante transformados em navios presídios e em quartéis das Forças Armadas, denunciando, através de reportagens e notícias publicadas no jornal “Correio da Manhã”, as brutalidades e tortura aplicadas aos presos políticos.
Com as denúncias e entrevistas obtidas por Marcito na peregrinação pelo País, em delegacias de polícia e locais onde recebia informações de violências e torturas, Márcio publicou o livro “Torturas e Torturados”, onde este Editor é uma triste personagem, como relatado nas páginas 203 a 209, com as lamentáveis odisséias vividas durante seis meses no navio presídio Raul Soares, sofrendo injustiças e assistindo dramas, tragédias e sofrimentos vis aplicados com humilhação, rancor, ódio e tortura contra infelizes e desprotegidos trabalhadores sindicalizados.
Márcio Moreira Alves foi um dos mais corajosos e destemidos jornalistas, e também dos primeiros repórteres a escrever e denunciar as barbaridades, atrocidades e torturas insufladas e praticadas inclusive por títeres da política beneficiados pelo golpe militar de 1964.
Seu nome merece ser reverenciado pela grandeza de seu trabalho profissional como um dos grandes jornalistas brasileiros.