A paridade de gênero na magistratura brasileira e os avanços via CNJ

9 de abril de 2024

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A igualdade de gênero é um princípio assentado na Constituição Federal (art. 3o, IV e art. 5o, I) e em tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário, a exemplo da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). 

Embora as mulheres sejam mais da metade da população brasileira, ainda continuam sub-representadas em todas as esferas públicas de poder, inclusive no Poder Judiciário. Conforme o último levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a magistratura brasileira é composta por somente 38% de mulheres, com o decréscimo paulatino conforme se avança para os níveis mais altos da carreira. No Supremo Tribunal Federal há apenas uma ministra dentre dez ministros, número bem abaixo da média global, que é de 36,6% (UNIVERSIDADE DE OXFORD, 2021). Sob o marcador raça, os números são ainda mais discrepantes: somente 19% das magistradas brasileiras são pardas e pretas, enquanto tal segmento na população feminina brasileira é de 56%. 

Desde 2018 o CNJ tem se esforçado para a concretização das promessas constitucionais e convencionais relativas à igualdade de gênero. O primeiro grande passo nesse sentido foi a edição da Resolução CNJ no 255/2018, que institui a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. Baixada na última sessão do órgão sob a presidência da Ministra Cármen Lúcia, a medida teve como pano de fundo os dados colhidos no Diagnóstico da Participação Feminina no Poder Judiciário. 

Em 2021, a Resolução CNJ no 255/2018 sofreu a primeira alteração para determinar aos tribunais a criação de repositório online para cadastramento de dados de mulheres juristas para os fins de utilização nas ações concernentes à Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. Os seguidos levantamentos numéricos realizados pelo próprio CNJ evidenciaram que, apesar de o número de mulheres ingressantes na magistratura ter aumentado ao longo dos anos, há uma preocupante estagnação nos cargos de 2o grau e nos Tribunais Superiores. 

Eis que em 12 de setembro de 2022 toma posse na presidência do CNJ a Ministra Rosa Weber. E, em análise aos atos normativos relativos à Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, observa-se claramente que na gestão da Ministra Rosa Weber houve um notável incremento nesse campo. Primeiro foi criado o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, para a “elaboração de estudos, análise de cenários, diálogo com os tribunais e proposições concretas para a ampliação da representação feminina”, mediante a supervisão da Conselheira Salise Monteiro Sanchotene e participação de magistradas e servidoras dos diversos ramos (Portaria CNJ no 136/2023). 

Depois, veio a Resolução CNJ no 496/2023, que determinou a observância da paridade de gênero nas comissões examinadoras e bancas de concurso público para ingresso na magistratura. Na sequência, o CNJ promoveu dois importantíssimos eventos nos anos de 2022 e 2023, denominados Seminário Mulheres na Justiça: novos rumos da Resolução CNJ no255 (1a e 2a edições), os quais resultaram nas Cartas de Brasília pela igualdade de gênero no Poder Judiciário. A tônica dos dois documentos é uma só: ampliar a participação das mulheres na magistratura, especialmente nos Tribunais de 2o grau, no próprio CNJ e nos Tribunais Superiores mediante a adoção de ações afirmativas.

Em 2023, o CNJ publicou o relatório “Participação Feminina na Magistratura: atualizações”, segundo o qual a série histórica compreendida entre os anos de 2000 a 2022 “não permite estabelecer qualquer tipo de tendência de crescimento e, portanto, nem projeções de quando seria possível alcançar o patamar de igualdade de gênero na magistratura ou mesmo entre os(as) ingressantes”. Diante desse quadro, o Comitê supervisionado pela Conselheira Salise Sanchotene promoveu uma consulta junto ao Professor Daniel Sarmento, da cadeira de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), sobre a constitucionalidade de eventual ato normativo do CNJ que estabelecesse ação afirmativa de gênero para o acesso de Juízas ao cargo de desembargadora, no que obteve resposta afirmativa em todos os quesitos. De acordo com o parecer, a medida antidiscriminatória, além de ser totalmente constitucional, era urgente e necessária (BRASIL, 2023).

No CNJ foi instaurado processo (0005605-48.2023.2.00.0000) para alterar a Resolução CNJ no 106/2010, que dispõe que sobre os critérios para aferição do merecimento para promoção de magistrados(as) e acesso aos Tribunais de 2o grau, cuja relatoria coube à Conselheira Salise Sanchotene. Na sessão de 19 de setembro de 2023, ela apresentou voto para instituir ação afirmativa de gênero no acesso das magistradas aos tribunais de 2o grau por intermédio de listas exclusivas de Juízas nas Cortes que ainda não tiverem alcançado o patamar de 40% a 60% de mulheres nas vagas destinadas à magistratura (BRASIL, 2023). No voto originário da relatora constava a incidência da ação afirmativa no acesso pelos critérios de antiguidade e merecimento, no que foi acompanhada pelos Conselheiros Mário Goulart Maia e Vieira de Mello Filho. Todavia, o Conselheiro Richard Pae Kim pediu vista e trouxe voto parcialmente divergente na sessão seguinte, em 26 de setembro, para limitar a ação afirmativa ao critério de merecimento e excluir as Justiças Eleitoral e Militar do seu espectro de incidência. Em busca do consenso, a relatora ajustou seu voto para aderir à divergência e foi seguida pela unanimidade dos/as Conselheiros/as presentes. 

Da leitura do processo, ainda é possível verificar que diversas instituições da sociedade civil se habilitaram como amici curiae, a esmagadora maioria pela aprovação do ato (BRASIL, 2023). E matérias jornalísticas dão conta que se fizeram presentes nas sessões de julgamento Deputadas, Senadoras, advogadas e um número grande Magistradas, que lotaram o Plenário.

Já sob a Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso, a Conselheira Salise Sanchotene, ao término do seu biênio no Conselho, propôs e aprovou a Resolução CNJ no 540/2023, que altera a Resolução de 2018, com perspectiva interseccional de raça e etnia, em atividades administrativas e jurisdicionais no âmbito do Poder Judiciário, dentre elas a convocação e designação de juízes/as para cargos administrativos ou funções de livre indicação. 

A atuação decisiva de três mulheres no CNJ foi um divisor de águas na história do Poder Judiciário. Coincidência, ou não, pelas mãos das Ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber e da Conselheira Salise Sanchotene a Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário passou de um sonho longínquo, acalentado no íntimo de cada Magistrada que jurisdiciona nesse país, para uma realidade factível, que em breve mudará o perfil das Cortes de 2o grau, nas atividades jurisdicionais e administrativas.

Disso tudo, em conclusão, ficam dois questionamentos: (1) mais mulheres no Poder Judiciário significa maior observância à igualdade de gênero? e (2) as ações afirmativas de gênero continuarão a avançar para abranger as Cortes superiores e o acesso aos tribunais pelo critério de antiguidade? O primeiro questionamento ainda gera inquietação a pesquisadores do mundo todo, sem resultados conclusivos. O segundo, quem sabe o tempo poderá responder.

NOTAS/REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Ato normativo 0005605-48.2023.2.00.0000. Relatora: Conselheira Salise Monteiro Sanchotene. Brasília. J. em 26 de setembro de 2023. 

CNJ aprova regra de gênero para a promoção de juízes e juízas. Agência CNJ de Notícias, 26 de setembro de 2023a. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-aprova-regra-de-genero-para-a-promocao-de-juizes-e-juizas/. Acesso em: 05 mar. 2024.

UNIVERSIDADE DE OXFORD. Quem estamos empoderando? Indicadores e tendências sobre diversidades em Cortes Constitucionais. [s. l.]: University of Oxford, 2021. Disponível em: https://www.ajufe.org.br/images/2022/03/AJUFE_Apresentação_abreviada.pdf. Acesso em: 05 mar. 2023.

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