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A polêmica do Exame da OAB

6 de maio de 2019

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Carta aberta ao Presidente da República

Propiciar um ambiente para a busca da felicidade, na síntese das sínteses contida na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 1776, é a finalidade da República. Mas o Estado não diz, nem deve dizer – não em um governo de soberania popular, apostado na liberdade individual – como cada um deve fiar o fio da vida para alcançá-la. Ninguém, senão o próprio homem – adaptando aqui verso de Whitman – pode atravessar essa estrada por ele.

A Constituição Federal da República do Brasil, de 05/10/1988, não alude em seu preâmbulo a busca da felicidade, como, de resto, nem a estadunidense, promulgada em 1787. Mas consagra, em caráter de fundamentalidade no art. 5o, XIII, a liberdade de profissão, isto é, a opção de escolha, de cada um, do meio como a vida será vivida. Isso não significa, no entanto – conforme o referido dispositivo ressalva – que a lei não possa, e até mesmo não deva, estabelecer requisitos e fixar padrões mínimos de qualificação para o exercício de atividades profissionais, em prol da sociedade. No caso da advocacia, essa regulação cabe à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por seu Conselho Federal, de acordo com os artigos 8o e 44, II, da Lei no 8.906/1994. Dentre os requisitos exigidos para a seleção de advogados, inclui-se a aprovação do bacharel-candidato no Exame de Ordem (art. 8, IV, e parágrafo 1o).

Recentemente, o Excelentíssimo Senhor Presidente da República externou sua intenção, fruto de convicção pessoal (já antiga, aliás), de abolir o Exame de Ordem, por considerá-lo, basicamente, injusto e desnecessário. Este artigo serve, então, para que Sua. Excelência, e, de resto, toda a comunidade, antes de qualquer resolução, reflita a respeito.

É fundamental assinalar que não foi a OAB que instituiu o Exame de Ordem. Foi a lei que (re)criou a OAB (Lei no 8.906/1994) que o instituiu; a OAB apenas o regulamentou, conforme o Provimento no144, editado por seu Conselho Federal. O Exame de Ordem, portanto, é (de origem) legal. Para que se cogitasse, então, da sua supressão, nova lei revogando-o deveria ser editada pelo Congresso Nacional. Assim, o chefe do Poder Executivo federal, sozinho, nada poderia aqui, ou poderia pouco, ou poderia apenas e tão somente nos limites em que participa da regular tramitação de qualquer proposta de lei federal.

O Exame de Ordem cumpre, ao menos – para não nos estendermos demais aqui – duas relevantes funções: a) iniciática; e b) de controle de qualidade. A iniciática radica na natureza das coisas; decorre do mundo da vida. “Tudo é símbolo e analogia (o vento que passa, a noite que esfria…”), diz o verso de Pessoa. O Exame de Ordem materializa, justamente, no âmbito da advocacia, essa simbologia do devir, marcado pela constante sucessão de status: dali em diante, não mais bacharel, mas advogado, que, assim, no tirocínio e na responsável e destemida militância prática, isto é, no valoroso exercício da advocacia em defesa, antes de tudo, do cumprimento da Constituição Federal e das leis, será, na célebre exortação de Couture, cada dia mais advogado.

As universidades de Direito não formam advogados, apenas bacharéis. Aliás, não formam nem advogados, nem juízes, nem procuradores nem defensores públicos. Juízes, procuradores e defensores submetem-se a concursos públicos. Mas o concurso público não é apenas modalidade necessária de contratação/ seleção de particulares pelo Poder Público para o exercício de função pública: é, na origem, um rito de passagem. Ali, preparando-se para o certame – condicionando, focando e mobilizando suas energias físicas e psicológicas para essa finalidade, com a adoção de todos os atos necessários para o êxito da missão – o candidato se prepara para seu novo status, que o acompanhará no exercício do seu relevante ofício. O mesmo se dá no Exame de Ordem da OAB: não é só a prova em si; não é o evento isolado; não é nada disso; se fosse, seria pouco. É, antes, e previamente, aquela preparação mental e finalística; é o contato com a deontologia profissional, com as práticas, os valores e com a maneira de pensar própria de um advogado, vocacionada, como deve ser, à defesa intransigente das liberdades, sobretudo, do Estado Democrático de Direito e dos direitos e garantias fundamentais, notadamente dos Direitos Humanos. O Exame da Ordem, então, com tudo o que o pressupõe, é uma maneira do bacharel, aspirante a advogado, entrar em contato com esse universo. A prova simboliza esse trabalho de transição; objetiva essa passagem. Talvez, quiçá, em outro contexto sócio-econômico, conviesse, não sua supressão, mas sua intensificação – não, portanto, o rebaixamento, mas a elevação do sarrafo de qualidade – com a adoção de práticas adicionais, de modo ainda mais acurado. Mas talvez aí já se começasse a pender para algum excesso, com mais dispêndio de tempo, recursos e expectativas humanas. De modo que, ainda que o ensino, de modo geral, e o ensino nas universidades, notadamente as de Direito, de modo específico, fossem bons, mesmo assim o Exame de Ordem se justificaria por sua necessária função batismal.

Mas o fato é que o ensino universitário, de modo geral – e sempre há honrosas e tradicionais exceções que confirmam a regra – não é bom. Antes, é muito deficitário. Com isso, a função de controle (mínimo de qualidade) exercida pela OAB, à luz da conjuntura atual (de décadas de retilíneo depauperamento linguístico-cultural), explica-se por si mesma, como uma verdade de Conselheiro Acácio. Como, de fato, abrir mão dela, considerando todo o quadro da (des)arte em volta? Quanta responsabilidade, seriíssima, não está implicada no exercício da advocacia, que, ainda que privada, consubstancia, também ela, um serviço público? Aliás, por que, sendo ela também um serviço público, marcado pela nota da essencialidade (conforme art. 133 da Constituição Federal), assim como a própria OAB é um serviço público (art. 44, caput, da Lei no 8.906/1994), deveria se dar, com a advocacia, de modo diferente do que se dá com as demais carreiras públicas do Direito? Tirando os ministros do Supremo Tribunal Federal, para cujo cargo exige-se invulgar conhecimento jurídico, e as vagas dos tribunais da federação reservadas aos advogados pelo quinto constitucional, para cujo preenchimento, de igual modo, se pressupõe exitosa e bem encaminhada prática advocatícia, quem concebe hoje preenchimento de qualquer outra carreira jurídica sem um mínimo controle de qualidade por meio de concurso de provas ou de provas e títulos? Seria uma temeridade, portanto, pelo pouco que até aqui já se expendeu, abolir o Exame de Ordem. É nesse contexto, Excelentíssimo Senhor Presidente, que se deve compreender o zelo republicano, a atuação política desinteressada e, mais do que tudo, a contribuição de caráter técnico da OAB quando ela opina, ou mesmo se manifesta, perante o Ministério da Educação acerca da autorização de novas faculdades de Direito no país, em números, hoje, espantosos, e cada vez mais alarmantes, com quantidade avassaladora e injustificável de instituições, como em nenhum outro país. O resultado disso tem sido, de um lado, a vulgarização do ensino jurídico, com a formação massiva de bacharéis cada vez menos preparados para atender à sociedade, e, do outro, o descrédito, gerado na própria sociedade, acerca das carreiras jurídicas, notadamente a da advocacia.

A OAB, com certeza, não irá salvar a Educação no Brasil, até porque esse não é seu mister. Por isso, Senhor Presidente – e quem escreve esse singelo artigo são dois advogados, que nada mais são do que dois advogados – aproveitando que seu mandato apenas se inicia, fica aqui um apelo cívico: comecemos, enfim, a fazer a coisa certa; comecemos, afinal, do começo; comecemos, portanto, da Educação (e a implantar o gosto pela instrução), séria, intensa, massiva, comprometida e de qualidade, em todos os níveis, para todas as pessoas e para todas as idades. Mas comecemos, mais urgentemente, pelas crianças, pela nova geração que começa; que ela seja, de fato, a geração do futuro, para que ela mesma possa engendrar, para si, futuro mais alvissareiro, altivo, próspero e independente (do Estado). Nada é por acaso; nada vem por acaso; e nada aconteceu por acaso. O ensino universitário é ruim porque os ensinos fundamental e médio são ruins – para não descermos mais fundo, até a educação infantil. E os ensinos médio e fundamental são ruins, porque a Educação não é prioridade. O magistério não é prioridade. A língua portuguesa, aliás (tão bela e tão desmerecida!), não é prioridade. A situação só piora. O que vale, hoje, como dizem – e quem o diz são vozes oficiais – é comunicar e fazer-se entender, o resto é parnasianismo ou imperialismo. Com isso, e como sempre tem sido, em vez de projetarmos para cima as possibilidades, e elevarmos o discurso e o padrão das relações, forjamos ideologias e gambiarras tropicalistas para nos absolvermos de centenários erros históricos e culturais que nos condenaram à miséria – e nela somos mantidos. Assim seguimos, indulgentes e transigentes com tantos déficits. A pobreza da cultura começa com o rebaixamento de sua língua. Não se trata, aqui, Excelentíssimo Senhor Presidente, de nacionalismos obsoletos. A língua é muito maior do que a nação: ela é transnacional (o português está entre as oito línguas mais faladas no mundo, à frente do alemão, francês, italiano, russo e tantas outras, graças à coragem de Vasco da Gama e ao gênio de Camões). Nem se trata de virtuosismo estético: a língua é nosso instrumento de inserção e integração no mundo e, como tal, o maior patrimônio e a maior riqueza de que o indivíduo, isoladamente considerado, e o país, tomando-o coletivamente como soma de todos os indivíduos, pode dispor. A língua, que é experiência vital e criadora, pode levar qualquer um a qualquer lugar; ela é, pois, o princípio da liberdade. Ademais, em um mundo de dispersões, tal como o de hoje, sem narrativas globais, próprio de uma sociedade heterogênea, multitudinária e fraturada – haver diferença é bom, pois as tensões fazem parte do jogo democrático – o que, afinal, senão a língua, espiritual e materialmente nos une? Aqui, Excelentíssimo Senhor Presidente, encerramos este artigo. Que a nossa felicidade, ou, aos menos, pequena parte dela, individual e coletiva, seja a busca do tempo perdido na área da Educação.