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Pede-se bom senso ao Direito

16 de abril de 2020

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Sempre concebi a ciência jurídica de uma forma antes de tudo pragmática: arsenal de instrumentos para facilitar a vida humana. Menosprezo algum pelo aprofundamento doutrinário, a esmiuçar os recônditos desse engenho destinado a atenuar as vicissitudes a que se sujeita a criatura, durante sua frágil e efêmera aventura terrena. Todavia, o Direito precisa funcionar. Precisa mostrar a que veio. E não lhe é dado ignorar a realidade.

O advento dessa pandemia que paralisou o mundo afeta a todos. Não há quem tenha se subtraído aos potentes impactos de um confinamento forçado e de um pânico intensificado. Quando a morte ronda a humanidade, ela comprova nunca ter sabido administrar com tranquilidade a única certeza inevitável no horizonte de qualquer ser vivo.

A interrupção da maior parte das atividades rotineiras transformou a vida familiar. Que o digam os pais, há tempos acostumados a deixar sua prole confiada à escola. Sem prévio aviso, têm de administrar a contingência de tê-los permanentemente ao lado, dia após dia, sem a tranquilidade normal. As horas de entrega ao ensino convencional se alicerçavam na presunção de que os alunos estivessem a merecer a melhor formação para a vida. Afinal, a finalidade da educação é desenvolver as potencialidades de cada educando, para que ele possa atingir a plenitude, em termos de integral desenvolvimento de sua personalidade. Qualificar para o trabalho e capacitar cada aluno para o adequado exercício da cidadania. Tal a síntese extraível do art. 205 da Constituição da República Federativa do Brasil.

Eis senão quando, de repente, os estabelecimentos de ensino são fechados e as aulas interrompidas. O que fazer?

Impõe-se a adoção de alternativa ao colapso. A mais óbvia é adotar a educação à distância. A EAD, contra a qual esboçou-se nítida resistência generalizada, começou a ganhar adeptos. Decorrência da urbanização frenética, de uma cultura que priorizou o mais egoísta dentre os meios de transporte, o automóvel. O abandono às políticas públicas de investimento no interesse coletivo, para fortalecer a ambição de cada ser humano em possuir seu carro próprio, de preferência para uso exclusivamente individual.

As cidades brasileiras privilegiam o veículo automotor de uso pessoal, em detrimento do transporte público, disponível nas maiores cidades do primeiro mundo. O fenômeno da mobilidade passou a disputar espaço com outros insolúveis problemas contemporâneos, como a violência, a destruição ambiental, a falta de saneamento básico, a moradia insuficiente e o desemprego.

A odisseia da classe menos favorecida, cada vez mais expulsa para as periferias e tendo de se servir de várias conduções para chegar ao local de trabalho fez ressurgir a necessidade do EAD. Os últimos anos têm evidenciado que a opção foi sendo a cada dia mais considerada, subtraídos os preconceitos que a consideravam menos eficiente do que o ensino presencial.

O crescimento foi exponencial na Universidade, sobretudo na iniciativa privada, responsável pela maior parcela de universalização do acesso ao ensino superior. Menor a adesão do Ensino Fundamental e Médio, pois prevalecia a ideia de que nada poderia substituir o contato pessoal entre professor e aluno.

A necessidade é notável matriz de inspiração. O advento da pandemia do coronavírus obrigou essa faixa a também se servir daquilo que a Quarta Revolução Industrial disponibilizou e tornou acessível a todos, no âmbito do que se convencionou chamar Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).

O Brasil, a despeito de vergonhosa disparidade entre segmentos incluídos e excluídos, é uma nação que dispõe de 265 milhões de mobiles. Não há quem estranhe manusear seu celular, smartphone, tablet, notebook, nas mãos de quase todas as pessoas. Somos 210 milhões de habitantes e considerada a quantidade de bugigangas eletrônicas que viabilizam o acesso a um universo crescente de sons, imagens, dados e informações, há brasileiros que manejam vários desses aparelhos.

O fenômeno já transformara a educação formal. Enquanto a primeira infância ainda se submetia à tradição de permanência em uma classe escolar tipo-padrão, com distribuição física arcaica e obsoleta – as fileiras indianas imutáveis – e aulas prelecionais ao estilo do magister dixit, os adolescentes se rebelaram.

Não era incomum encontrar salas do Ensino Médio com capacidade ociosa, enquanto o alunado se aglomerava nos barzinhos das imediações. Aqueles que permaneciam dentro da classe, nem todos atentavam para o conteúdo das lições expositivas. Preferiam acessar os seus mobiles, para troca de mensagens ou até para a busca de conhecimento atualizado, o que nem sempre coincidia com o conteúdo da aula.

A proibição ao uso de celular na sala de aula defrontou-se com a evidência de que a juventude não iria abandonar aquilo que se tornou extensão de seu corpo. Enfrentei, como Secretário da Educação do Estado de São Paulo no período de 2016 a 2018, considerável dificuldade para permitir uma utilização compatível com as exigências de uma formação adequada. Foi excepcionada a proibição do uso do celular dentro da sala de aula, desde que a utilização visasse finalidades pedagógicas.

Estas já eram o alvo de docentes experimentados no trato da mocidade milenial, aquela que parece já nascer com chip. Percebeu-se que a gamificação poderia ser valioso recurso no desenvolvimento das competências em geral negligenciadas na educação convencional. Aquelas habilidades socioemocionais como a empatia, a criatividade, a comunicação, a capacidade de se adaptar ao mundo em que o inesperado é a única certeza.

Os resultados do uso das infinitas e mutáveis funcionalidades do mundo virtual são palpáveis na aferição da performance de alunos familiarizados com essa onda irreversível e aqueles condicionados ao ensino regular.

Podem ser alinhadas evidentes vantagens do EAD. Os conteúdos podem ser atualizados de maneira a suprir a insuficiência de aulas apostiladas e reiteradamente ministradas para turmas de anos seguidos, sem qualquer alteração. Além disso, têm condições de oferta muito mais sedutora do que a monocórdia leitura de textos prontos. Podem abrigar ilustrações, cenas de filmes, textos escolhidos da literatura universal, tudo para atrair um ser curioso, ávido por desvendar o universo ainda ignorado.

O tempo, capital de valia extrema, porque não pode ser fabricado, é um fator que recomenda a intensificação do implemento em escala maior do EAD. Poupa-se aquele despendido no percurso da casa à escola. Economiza-se o deslocamento, cada vez mais dificultoso e sacrificado nas grandes cidades e que penaliza exatamente o mais carente.

Os argumentos em contrário são ponderáveis. Como exigir de alguém ainda imaturo que mantenha atenção desperta e consciente para aquilo que a tela transmite? É uma questão de responsabilidade e de interesse. Quem experimentou o magistério presencial não estranha que em uma classe exista o aluno interessado e aquele cuja presença é apenas física, mas cuja mente está a viajar, absorta em outros temas.

Aqui entra a responsabilidade dos pais. A educação é direito de todos, mas é dever do Estado e da família, em colaboração com a sociedade. Não se pode generalizar, mas há um contingente imenso de pais que acreditam ser obrigação exclusiva do governo a de educar seus filhos.

Nada como uma crise para valorizar a professora que se incumbiu de alfabetizar a cria alheia, nem sempre polida e atenta, muita vez em detrimento da própria.

A educação à distância é um teste à maturidade dos pais, ao talento dos educadores, à criatividade dos designers e formatadores de plataformas cativantes, que agucem a curiosidade do aprendiz e o estimule a aprofundar a pesquisa.

É o momento apropriado de experimentar a educação no seio familiar. Há muitos pais que não se conformam com a homogeneidade na transmissão do conhecimento, sem respeitar a individualidade do discípulo. Uma das características do ser humano é sua irrepetível heterogeneidade. Cada qual tem um ritmo de aprendizado, uma facilidade e uma dificuldade. Uma educação programada tenta homogeneizar o alunado, em um adestramento que prioriza sua capacidade mnemônica e não sua faculdade de pensar e de extrair consequências de sua elaboração intelectual.

As questões práticas não podem ser relegadas a momento posterior. É óbvio que as escolas particulares encontrarão fórmulas de ressarcir os pais, com abatimento proporcional à economia gerada pela transitória paralisação. As planilhas de custo devem ser expostas com franqueza, para demonstrar que o dispêndio preponderante na educação privada é a folha de pagamento e as utilidades públicas. O melhor caminho é o da busca de composição consensual de controvérsias. Judicializar, neste caso, continua a ser a pior solução.

Os tempos reclamam postura cidadã madura e responsável. A esperada revolução educacional que superasse o fosso entre o Brasil e as nações de melhor desempenho na avaliação trienal PISA, promovida pela OCDE, talvez resulte da inventividade provocada pela calamitosa pandemia.

É chegada a hora de reconhecer a imersão da humanidade no cenário disruptivo das tecnologias que nos obrigam a contínua reformulação de rota. Na adoção das melhores práticas que permitam a evolução do convívio, rumo ao ideal de uma fraternidade universal.

O Direito não pode ser obstáculo nesse momento. Cumpre recordar a lição imperecível de Jean Cruet, no livro “A vida do direito e a inutilidade das leis”, cuja epígrafe é autoexplicativa: “vê-se todos os dias a sociedade reformar a lei; nunca se viu a lei reformar a sociedade”.