Crise no ensino jurídico

7 de abril de 2021

Advogado/ Representante institucional adjunto do IAB no Rio Grande do Sul

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Dedico este estudo a Augusto Teixeira de Freitas, jurista genial, ser humano extraordinário.

No início do Século XX, fundada a Faculdade de Direito de Porto Alegre, havia a mais absoluta clareza entre seus idealizadores sobre o significado da criação de uma instituição voltada para a formação de juristas no Brasil. O Estado brasileiro, com quase cem anos de existência, ainda não contava com o número de técnicos qualificados que era preciso para gerir a recém-fundada República que substituiu a monarquia.

A missão de um curso de Direito, nesse cenário histórico, seria preparar pessoas dotadas das competências indispensáveis para pôr em funcionamento as instituições do Estado republicano em atividade. A iniciativa rendeu bons frutos, produziu líderes como Oswaldo Aranha, Getúlio Vargas e juristas como Ruy Cirne Lima e Osvaldo Vergara, entre outros. Desde então, o curso progrediu, foi incorporado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e é hora de avaliar se os propósitos foram atingidos, ou se as carências e as necessidades identificadas, à época, pelos nossos cultos antepassados continuam vigentes.

a) O problema do método no ensino jurídico

O estudo da teoria jurídica é tema complexo. O Direito, por ser produzido unicamente pela razão, não é encontrado na natureza. Ele não tem como ser ouvido, apalpado, degustado ou visto, e a única forma possível de ser entendido, para poder ser estudado, é quando são colocadas às claras as relações tomadas como referência pelo intelecto humano para ordenar seu ambiente de inteligência.

No entanto, o apelo à exegese de códigos e de normas legais é muito mais atraente ao neófito do que examinar os fundamentos de racionalidade para entender as razões da distinção do Direito como ciência e conhecimento; a importância da linguagem na teoria jurídica; as relações entre Direito e política; as noções de direito objetivo e subjetivo; as relações de imputação no Direito e os fundamentos das relações jurídicas sob o ponto de vista da racionalidade do jurista.

Provavelmente sejam essas as razões pelas quais há uma grave crise assolando o ensino jurídico no mundo todo, inclusive no Brasil, como se tentará verificar, mesmo que de forma superficial, no tópico a seguir.

b) O ensino jurídico brasileiro

Não restam dúvidas de que o ensino jurídico se insere no mais importante sistema de uma República. Cabe a ele constituir, e pôr em ordem, o sistema de inteligência utilizado para a organização e o funcionamento das instituições administrativas, políticas e jurídicas dos Estados. Igualmente, compete-lhe preparar os sujeitos responsáveis por produzir o sistema de normas que disciplinam as relações entre pessoas, de modo a promover o desenvolvimento humano de uma nação.

Em face disso, todo programa de ensino do Direito deve partir do reconhecimento que lhe cabe promover a formação de sujeitos dotados de competências funcionais e de conhecimentos materiais indispensáveis à promoção do bem comum e da paz entre as pessoas. Dessas atribuições, o seu papel mais destacado é o de formar sujeitos dotados das qualificações indispensáveis para compor as instituições que administram a Justiça, órgão de extrema relevância na pacificação e submissão dos indivíduos à lei, instrumento racional de ordenação da vida em sociedade.

Foi certamente com esse propósito que, em 11 de agosto de 1827, ainda no período da monarquia, Dom Pedro I criou os dois primeiros cursos de Direito no Brasil. O primeiro, instalado em Olinda, em 1827. O segundo, em São Paulo, em 1828. Ambos foram responsáveis pela formação de uma elite intelectual de renome, destacando-se, entre tantos, Augusto Teixeira de Freitas, jurista que influenciou a codificação do Direito Civil na Argentina, no Paraguai, no Uruguai, no Chile, na Alemanha, na Suíça, na China, no Japão, na Rússia e na Itália, entre outras nações.

Durante todo o restante do Século XIX, o País contou com apenas duas faculdades de Direito. Já no Século XX, o aumento do número de faculdades foi vertiginoso: em 1961, o País possuía 60 cursos regulares; em 1982, 130 e; em 1997, 260, sendo que atualmente o Brasil possui mais de 1.700 cursos de Direito.

Sem dúvida, a literatura jurídica[1] do Século XIX está aí para comprovar os resultados hauridos desde a criação das faculdades de Direito de Olinda e São Paulo. Mas, se de uma parte, nesse período, o País produziu juristas de destaque, na medida em que aumentou a quantidade de cursos jurídicos, inegavelmente diminuiu a qualidade técnica e intelectual de seus bacharéis.

Nesses quase duzentos anos que se sucederam à criação das duas primeiras faculdades, é possível identificar acontecimentos singulares com informações relevantes para o exame desse tema. O primeiro deles foi a realização, em agosto de 1927, do Congresso de Ensino Superior, comemorativo ao centenário dos cursos jurídicos, na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Nesse evento, a justificava constante do documento da convocação para o congresso estava na necessidade de contribuir “eficazmente para a formação da classe dos dirigentes, de cujo preparo científico e prático depende precipuamente a grandeza dos nossos destinos”[2].

O primoroso questionário, apresentado pelos organizadores do evento sobre organização universitária e a respeito do ensino jurídico revela o quanto ainda se fazia presente no ensino universitário, à época, a noção da função republicana do ensino de Direito no Brasil.

Outro acontecimento importante, de grande relevância para entender as transformações que se operaram nesse período, foi o Congresso Jurídico Nacional Comemorativo ao Cinquentenário da Faculdade de Direito de Porto Alegre, realizado em agosto de 1950. Esse evento, além de festejar o cinquentenário da Instituição, comemorou o centenário do Código Comercial Brasileiro[3]. No entanto, o colóquio não dedicou absolutamente nada ao ensino ou à função republicana do ensino jurídico no Brasil[4].

São abundantes os textos acadêmicos e doutrinários produzidos no curso dos últimos cem anos registrando a perda da perspectiva republicana da formação do jurista no Brasil, assim como o distanciamento de seus estudos de um sistema de racionalidade instrumental. Esses dois conclaves referidos aqui servem apenas para chamar a atenção sobre a importância da retomada de debates, de fundamental importância para o desenvolvimento da nossa Nação.

c) Considerações finais

O aumento descontrolado da quantidade de faculdades de Direito, em um exame superficial, poderia parecer avanço, desenvolvimento, mas é um veemente alerta da desconstituição das bases da República brasileira. Da destruição do mais importante alicerce produzido pela inteligência dos nossos antepassados para organizar a vida em sociedade, especialmente quando se percebe claramente que, ao invés de se constituir em instrumento de pacificação, esses cursos se inseriram na lógica da disputa política e da produção de riquezas e de bens.

Portanto, o propósito deste texto é provocar debates sobre os fundamentos do Estado republicano e o ensino jurídico. Por óbvio que o exame poderia propor outras discussões, e quem sabe até sejam feitas em outra oportunidade, sobre questões fundamentais para entender as instituições que compõem todo o ambiente de ordenação da inteligência do jurista. Mas, dá-se por encerrado este texto na expectativa de encontrar interessados em ir além nos estudos, considerando a importância dessas investigações para uma sociedade notadamente em crise.

Notas________________

[1] Até o final do Século XX nenhuma faculdade de Direito obtinha autorização de funcionamento se não tivesse em sua biblioteca as obras clássicas de Direito. Do início do Século XXI em diante, passou a viger a política das últimas edições de livros. Com isso, obras raras da literatura brasileira foram descartadas em recicladoras de papeis e juristas como Clóvis Beviláqua, Teixeira de Freitas, Ruy Cirne Lima, Rui Barbosa, entre outros, foram expulsos da vida acadêmica ao ponto de serem desconhecidos da maioria dos bacharéis que hoje se formam nas faculdades brasileiras.

[2] O “appello-convite” iniciava afirmando a necessidade de “incutir na mocidade brasileira vivos sentimentos de sadio nacionalismo e proporcionar adequado e sólido preparo jurídico aos que se destinassem, quer ao exercício da magistratura e da advocacia, quer ao desempenho das funções de maior responsabilidade no governo, no parlamento e na administração”. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1929.

[3] São dignas de nota a fala de Eduardo Couture sobre as modernas diretrizes do Processo Civil e de Luiz Gimenez de Asua, a respeito de legítima defesa.

[4] É interessante notar, pelas teses apresentadas, a importância que já ganhavam certas discussões teóricas que renderiam fama e riqueza a muitos juristas nas décadas seguintes.