“É implausível esperar autorregulação daqueles que lucram com o caos”

12 de julho de 2023

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Entrevista com o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes

Decano do Supremo Tribunal Federal, professor, intelectual e escritor, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes é uma das personalidades mais notáveis do cenário jurídico, com uma influência que transcende fronteiras, diante de sua atuação em universidades europeias e como o principal articulador do monumental Fórum Jurídico de Lisboa um dos maiores eventos jurídicos ibero-americano, marcado pela pluralidade, profundidade e relevância das discussões que promove.

Firme, culto e objetivo, não há pergunta sobre tema jurídico que o Ministro Gilmar Mendes se furte a responder com absoluta sinceridade. Nessa entrevista, concedida logo após o encerramento da 11a edição do Fórum, ele nos fala sobre os principais assuntos tratados no encontro: defesa da democracia, governos digitais, regulação das redes sociais e da inteligência artificial.

Revista Justiça & Cidadania – O tradicional Fórum Jurídico de Lisboa tem como temas desta edição “Governança digital, Estado Democrático de Direito e Defesa das Instituições”. Qual é a importância destas discussões, hoje, na perspectiva do Direito comparado?
Ministro Gilmar Mendes – Os desafios que a ambiência digital apresenta à governança são significativos. Algoritmos, inteligência artificial generativa e desenvolvimentos tais que não podem continuar a receber dos juristas uma abordagem blasé. Os desdobramentos concretos causados pelo novo “digital” são eloquentes demais para serem colocados para debaixo do tapete. Esse é um tema que tem que ser discutido. Vejo que as intervenções produzidas ao longo da 11a edição do Fórum enfrentaram de frente o problema. E convergiram na compreensão de que a solução para esse problema passa pelo reforço da dimensão procedimental do direito fundamental à autodeterminação informativa. Esse prognóstico a mim parece correto, principalmente porque acerta em cheio no diagnóstico: é implausível esperar autorregulação por parte daqueles que lucram com o caos.

JC – A democracia constitucional está sob ameaça? Quais são os riscos para o Estado Democrático de Direito?
GM – É necessário reconhecer que a entrada em cena das mídias digitais confere uma tonalidade inédita ao novo populismo. Como até falei na abertura do Fórum de Lisboa, aquela velha premissa de que a televisão é o “colégio noturno da nação” – ouvia muito isso na Europa dos anos 1980 – fazia com que o problema fosse outro; debatia-se coisas do gênero: “como garantir que a programação seja pluralista”. Esse mundo se perdeu. No Brasil de hoje, a pluralidade de canais midiáticos é um dado, assim como a existência de quadrilhas digitais que se valem dessa pluralidade para inviabilizar qualquer debate público.

JC – O senhor relatou recentemente em entrevista ter sido questionado pelo ex-comandante do Exército sobre a equivocada interpretação do art. 142 da Constituição Federal, segundo a qual os militares poderiam atuar como um “poder moderador”. Qual deve ser o papel das Forças Armadas na democracia?
GM – As Forças Armadas, nos termos postos pela Constituição Federal de 1988, destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Este último trecho é o que tem causado maiores controvérsias nos últimos anos. Entre 1992 e 2022, as Forças Armadas foram empregadas em 145 ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), em cenários que vão desde o descontrole da segurança pública até greves da Polícia Militar e garantia da tranquilidade do processo de votação e apuração eleitoral. Nos últimos quatro anos, tenho a impressão de que houve, de fato, um propósito de fazer com que as Forças Armadas se imiscuíssem na política, fazendo com que alguns desavisados afirmassem que Exército, Marinha e Aeronáutica são um “poder moderador”, responsável por arbitrar eventuais conflitos entre Supremo e Congresso. Essa interpretação, todavia, não se sustenta – a não ser por uma “hermenêutica da baioneta”.

JC – Como o senhor vê as propostas de emenda constitucional que tramitam no Congresso Nacional para estabelecer mandatos fixos para os ministros do STF? É o momento oportuno para essa discussão?
GM – Estou bem certo que não vale a pena mimetizar o modelo das indicações dos Tribunais de Contas para o Poder Judiciário. E acho curioso também, do ponto de vista de momento, que se escolha logo o STF como alvo da primeira reforma. 

JC – O acirramento das polarizações na sociedade, turbinado por notícias falsas e campanhas de ódio e desinformação, levou-nos à iminência de um golpe de Estado e deixou clara a urgência da regulação das redes sociais. Na opinião do senhor, de que forma o extremismo político deve ser enfrentado de agora em diante, tanto na regulação da Internet, quanto na atuação cotidiana do Estado brasileiro?
GM – Precisamos mudar a relação com as redes sociais, as big techs, e caminhar para um modelo de maior responsabilidade delas. Já não basta utilizarmos apenas as salvaguardas do Marco Civil da Internet, que, em seu art. 19, determina que um conteúdo somente pode ser retirado das plataformas mediante ordem judicial. É preciso que haja uma outra arbitragem nesse sentido e que possamos avançar nesse tema.

Claro, a liberdade de expressão precisa ser preservada, e para isso acontecer se faz necessário buscar um modelo que combine liberdade com responsabilidade. Torço de maneira muito enfática para que o Congresso encontre uma solução. Os espantosos episódios do dia 8 de janeiro abriram essa janela de oportunidade. Creio que não estamos discutindo apenas o problema dos ataques nas redes sociais, estamos discutindo a própria sobrevivência da democracia.

JC – Outro desafio regulatório diz respeito ao desenvolvimento da inteligência artificial e da governança algorítmica. Quais são os riscos que enfrentamos ao confiar às máquinas decisões nas quais o homem sempre foi a medida de todas as coisas?
GM – A confiança nas máquinas para tomar decisões que hoje são de responsabilidade dos seres humanos traz consigo certos desafios, como o viés algorítmico, que pode resultar em discriminação sistemática e perpetuação de desigualdades existentes; sem falar na falta de empatia… A tomada de decisões humanas muitas vezes envolve a consideração de fatores que dizem respeito ao contexto social, o que a máquina, ao que me parece, não é capaz de fazer. As máquinas podem ter dificuldade em incorporar esses e outros elementos, motivo pelo qual eventual utilização da inteligência artificial deve se limitar a aspectos bem auxiliares, nunca em substituição à decisão em si. E mesmo nesse diminuto aspecto, deve vir acompanhada de firme supervisão, com critérios auditáveis.

JC – O Fórum Jurídico de Lisboa também discutiu os efeitos das novas regulações europeias para a economia digital global. Fala-se em “Efeito Bruxelas”, pela capacidade regulatória unilateral da União Europeia na efetividade de direitos além de sua jurisdição. É tempo do Brasil construir um modelo próprio, que leve em conta as especificidades dos negócios digitais no Brasil, ou esse é um debate que transcende fronteiras?
GM – No Brasil, as discussões sobre regulação de plataformas adquiriram um renovado fôlego em razão dos tristes acontecimentos do 8 de janeiro. A brutalidade das cenas de ataques às instituições democráticas foi antecedida da circulação de conteúdos on-line produzidos por grupos extremistas. Há uma grande conscientização em curso de que os episódios cruéis vivenciados no início do ano foram orquestrados virtualmente. Tem emergido consenso, nos planos nacional e internacional, de que o papel exercido pelas redes na formação do discurso público requer política regulatória democrática, que aprimore a responsabilidade dos intermediários na moderação de conteúdos on-line danosos. E sim, na construção de novo modelo regulatório, é inevitável aprofundar o diálogo com as experiências estrangeiras, em especial com os desenvolvimentos recentes que sucederam a adoção do DSA (Digital Services Act) na União Europeia.

JC – O que o senhor teria a dizer sobre a digitalização das relações entre os cidadãos e a Administração Pública?
GM – Vendo pelo lado otimista, a digitalização das relações entre os cidadãos e a Administração Pública oferece uma série de oportunidades e benefícios significativos. Permite, por exemplo, que os cidadãos acessem serviços e informações públicas de forma mais fácil e conveniente, eliminando a necessidade de deslocamentos físicos, longas filas e papelada. Isso torna os serviços mais acessíveis, especialmente para aqueles que enfrentam barreiras geográficas, físicas ou de mobilidade. A digitalização também pode abrir novas oportunidades para a participação cidadã nas decisões públicas. É importante, todavia, que essas novas relações sejam orientadas pelos princípios que pautam a atuação da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, preservando os direitos individuais. O Estado deve investir em infraestrutura tecnológica e na capacitação dos cidadãos e garantia de medidas robustas de segurança cibernética. O Brasil, com suas iniciativas, como a Carteira Nacional de Habilitação digital e tantos outros serviços públicos disponíveis pela Internet, tem se mostrado um verdadeiro precursor nesse assunto.