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Em pauta o PL das Fake News e a reforma do Marco Civil da Internet

5 de abril de 2023

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Quase três décadas após o surgimento das redes sociais, o sentimento de que elas poderiam vir a se tornar um fórum privilegiado da democracia mundial hoje não passa de uma desilusão. A manipulação do debate público e a ascensão dos discursos intolerantes por meios digitais ficou evidente em vários episódios de afronta à vontade cidadã, em todo o mundo, como no escândalo da manipulação do plebiscito do Brexit, no Reino Unido, em 2020; na trágica invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, em 2021; e no violento ataque às sedes dos três Poderes da República, em Brasília, em janeiro passado. Se antes a Internet era saudada como o território da liberdade sem limites, hoje há um crescente consenso sobre a necessidade de sua regulamentação.

Foi o que se discutiu no seminário “Liberdade de expressão, redes sociais e democracia” – promovido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em parceria com a Rede Globo e o Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) – que reuniu representantes dos poderes Judiciário, Executivo e Legislativo, Ministério Público, advocacia, imprensa e Polícia Federal para debater a regulação das redes sociais e a eventual reforma do Marco Civil da Internet.

“As discussões sobre regulação de plataformas adquiriram renovado fôlego em razão dos espantosos episódios do dia 8 de janeiro de 2023 (…). Há uma grande conscientização em curso de que os episódios cruéis vivenciados no início do ano foram orquestrados virtualmente”, apontou o decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Gilmar Mendes – membro do Conselho Editorial da Revista JC – na exposição inaugural do seminário, na qual traçou um panorama geral em torno da regulação das redes sociais no Brasil e no mundo (Leia a fala completa na página 14).

“Toda a organização do dia 8 foi feita pelas redes sociais, nem disfarçaram”, acrescentou na exposição seguinte o Ministro Alexandre de Moraes, que abordou os argumentos jurídicos da regulação com a visão de quem preside o Tribunal Superior Eleitoral e os inquéritos das fake news (nº 4.781) e dos atos antidemocráticos (nº 4.879).

Em busca do equilíbrio – “Se tivermos que resumir as necessidades deste novo momento das relações políticas e sociais brasileiras numa única palavra, essa palavra seria sem dúvida equilíbrio. (…) É para tentarmos dar um passo em direção a esse equilíbrio que estamos reunidos aqui. A sociedade espera que os administradores, os representantes eleitos e os magistrados desse País consigam encontrar o quanto antes uma forma de equilibrar o fenômeno das redes sociais com a democracia e a liberdade de expressão”, já havia comentado o Presidente da Câmara, Deputado Federal Arthur Lira (Progressistas-AL).

O parlamentar e os já citados ministros do STF participaram da mesa de abertura do seminário ao lado do Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luis Felipe Salomão, do Ministro da Justiça, Flávio Dino, do Diretor-Geral da Polícia Federal, Andrei Augusto Passos Rodrigues, do Governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, do Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), Desembargador Ricardo Cardoso, do Procurador-Geral de Justiça do Rio de Janeiro, Luciano Mattos, do Presidente da FGV, Carlos Ivan Simonsen Leal, do Diretor-Jurídico da Rede Globo, Antônio Cláudio Ferreira Neto, e da colunista da Folha de São Paulo Patrícia Campos Mello – autora do livro “A máquina do ódio”, um estudo sobre as fake news e a violência digital.

Os apresentadores da Globo Maju Coutinho e Heraldo Pereira foram os mestres de cerimônias do evento, realizado no Centro Cultural da FGV no Rio de Janeiro (RJ), que contou ainda com a participação dos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Benedito Gonçalves, Marco Aurélio Bellizze, Antonio Saldanha Palheiro e Mauro Campbell Marques; da Juíza Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) Caroline Tauk; do Desembargador do TJRJ Elton Leme; do Procurador do Estado do Rio de Janeiro Gustavo Binenbojm; do Diretor de Combate aos Crimes Cibernéticos da Polícia Federal, Otavio Margonari Russo; da Diretora Jurídica Tributária, Societária e Regulatória da Rede Globo, Andreia Saad; e do Deputado Federal Orlando Silva (PCdoB-SP), relator na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei das Fake News (PL nº 2.630/2020 e apensados), para o qual convergem várias propostas de regulamentação.

Contribuições do Judiciário – Ainda nas exposições iniciais, o Ministro Alexandre de Moraes disse que tem mantido contato com representantes das grandes companhias que operam as redes sociais, as chamadas big techs, com o objetivo de reunir sugestões para a regulação e autorregulação das plataformas. “Não é possível tratarmos as redes sociais, em todas as plataformas, como terra de ninguém, um metaverso em que você ingressa e pode praticar tudo o que não pode na vida real. (…) A premissa básica é simples, o que você não pode fazer na vida real, não pode fazer escondido covardemente nas redes sociais”, comentou o magistrado, que considera que as redes devem ser responsabilizadas pelos conteúdos que impulsionam e monetizam – “Se impulsionou, é coautor”, disparou.

Dirigindo-se aos representantes do Legislativo e do Executivo, Moraes fez um apelo: “Se quisermos regulamentar tudo sobre fake news, não vamos regulamentar absolutamente nada. Então, vamos começar replicando o modelo já existente nas big techs para a pedofilia, a pornografia infantil e para direitos autorais. (…) Vamos replicar esse modelo, responsabilizando pelo menos nesses três casos: o impulsionamento, a monetização e a utilização de algoritmos. Vamos regulamentar e a partir disso verificar o que melhorou, o que falta e em que podemos ou não avançar. Nada aqui estará indo de encontro à liberdade de expressão, que continua dentro daquele binômio que a Constituição consagra: liberdade com responsabilidade”.

A escolha do modelo – O debate sobre a regulação foi aprofundado no painel “Os três Poderes da República e a governança digital – Uma visão contemporânea”, presidido pelo Corregedor Nacional de Justiça, o Ministro do STJ Luis Felipe Salomão, que contou com palestras do Ministro Flávio Dino, do Ministro do STJ Antonio Saldanha Palheiro e da jornalista Patrícia Campos Mello.

Em sua participação, o Ministro Salomão informou que o Centro de Inovação Judiciária da FGV, do qual é coordenador, realiza atualmente, em parceria com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e outras entidades o levantamento de todas as decisões judiciais que envolvam fake news e campanhas de desinformação desde 2019, para identificar os parâmetros das decisões e os critérios que levaram à categorização das notícias falsas. “Essa pesquisa vai nos mostrar o caminho que o Poder Judiciário tem trilhado até aqui, pelo menos, para enfrentar esse tema. No TSE tivemos algumas medidas importantes, como o inquérito administrativo que continua reunindo provas em relação aos ataques às urnas eletrônicas, que teve um papel muito importante, porque desaguou na decisão inédita de desmonetizar os sites e redes que lucravam espalhando notícias falsas. Manteve-se o site e as redes sociais, mas impediu-se o lucro com aquela desinformação”, comentou o magistrado.

“Temos alguns paradigmas do mundo todo, mas precisamos achar o nosso próprio modelo, porque regular as redes sociais – e entra aí também o WhatsApp, aplicativo de mensagens mais utilizado no mundo – mexe com o modelo de negócios das big techs, com os acionistas que compram e lucram com esse modelo de negócios e com anunciantes espalhados pelo mundo inteiro. O que implica em tributação, responsabilidade, etc. Percebam o tamanho dessa encrenca”, acrescentou o Ministro Salomão, que é também Presidente do Conselho Editorial da Revista JC.

Contribuições do Executivo – O Ministro Flávio Dino trouxe reflexões sobre o assunto a partir da perspectiva do Governo Federal, que elabora um projeto de lei – coordenado por técnicos do Ministério da Justiça e da Secretaria de Comunicação Social (Secom) – que será encaminhado ao relator do PL nº 2.630/2020, Deputado Orlando Silva, em trâmite combinado pelo ministro com o parlamentar e com o Presidente da Câmara, Deputado Arthur Lira. A principal motivação do projeto, segundo Dino, “deriva da imperatividade do que se passou no Brasil na última década, cuja expressão concentrada e exponencial foi exatamente o 8 de janeiro”.

Segundo o ministro da Justiça, as principais premissas do projeto são: a transparência, para que exista controle público da regulação; o dever de cuidado, que de acordo com ele se traduzirá em relatórios periódicos sobre moderações, impulsionamentos e retirada de conteúdos, dentre outras informações; e a procedimentalização, com a transposição do devido processo legal para o ambiente digital, com o estabelecimento de notificações, prazos e responsabilidades das plataformas à luz do Código Civil. A única questão ainda em aberto na proposta que o Executivo vai oferecer ao Parlamento, segundo Flávio Dino, é a criação ou não de um órgão regulador.

O ministro lembrou por fim que o seminário era realizado na véspera da data em que o assassinato da Vereadora Marielle Franco completaria cinco anos. “Marielle foi assassinada e no dia seguinte políticos e autoridades, entre outros, se dedicaram a matá-la novamente. Até hoje é como se houvesse um homicídio por dia. O caso da Marielle serve de referência para aquilo que o Brasil não deve e não pode ser. Talvez esse debate sobre a Internet possa abrir uma porta pela qual consigamos sair deste labirinto de ódio em que a política brasileira seguiu imersa nos últimos dez anos”, comentou o titular da Justiça.

Ambiente favorável na Câmara – Segundo afirmou o Deputado Orlando Silva em um dos painéis seguintes, o objetivo do PL nº 2.630/2020 é ser a “lei brasileira da liberdade, responsabilidade e transparência na Internet”. Para o parlamentar – que aguardava receber ainda em março as contribuições dos poderes Executivo e Judiciário ao projeto de lei – a autorregulação realizada pelas plataformas digitais é insuficiente e deve sim ser criado um órgão regulador para aplicar as penas previstas em lei, como advertências, multas, suspensões e até o bloqueio dos serviços. “É preciso que haja uma convivência das políticas e termos de uso dos códigos de conduta dessas plataformas, que organizam suas operações, com algum tipo de regramento definido pela Constituição ou por lei que fixe parâmetros para esses serviços, acrescido de um órgão regulador já existente ou que venha a ser criado”, definiu o parlamentar.

De acordo com o deputado, o ambiente na Câmara dos Deputados é hoje favorável à aprovação do PL, já aprovado pelo Senado Federal. “Passamos por algumas lições obtidas da Justiça Eleitoral, tivemos a mudança para um governo com viés regulatório, temos um padrão para a regulação e os atos antidemocráticos do 8 de janeiro foram uma referência. Teremos uma melhor síntese para favorecer a liberdade de expressão como instrumento fundamental da democracia”, resumiu Orlando Silva.

Outros olhares dos magistrados – O Corregedor-Geral da Justiça Eleitoral, Ministro Benedito Gonçalves, defendeu a responsabilização das plataformas pela hospedagem de conteúdos ilegais e pediu ponderação entre os limites da liberdade de expressão e do enfrentamento à desinformação: “Precisamos garantir a liberdade de expressão sem confundi-la com esculhambação, mas também controlar os danos provocados à democracia pela disseminação de notícias falsas, discursos de ódio e atentados ao Estado Democrático de Direito. Assim como qualquer pessoa é livre para divulgar as informações que desejar, deverá ser responsável por danos que vier a causar a terceiros. Não é pedir demais que sites sejam responsáveis pelos conteúdos que hospedam”.

Julgando processos que envolvem plataformas digitais no âmbito do Direito Privado e com a responsabilidade de formar novos juízes e juízas como Diretor-Geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), o Ministro Mauro Campbell foi enfático ao declarar que a regulação deixará os magistrados em posição mais confortável para solucionar conflitos: “Na Escola, ensino que devemos incorporar a figura do Estado. É aí que começam a aparecer as soluções viáveis para a comunidade. Os novos magistrados serão formadores e ajudarão a conceber algoritmos que efetivamente apaziguem as relações sociais, além de não permitir jamais que vieses algorítmicos, cancelamentos ou superexposições venham a contaminar o trabalho que prestamos à população”.

Em um cenário de ausência de transparência, excesso de informação e escassez de atenção que limitam a visão de mundo dos usuários das plataformas, a Juíza Federal do TRF2 Caroline Tauk disse acreditar que o melhor caminho é começar pela autorregulação das big techs para não sobrecarregar o Judiciário. “Cabe às plataformas ter essa liderança, pelo menos para fazer um filtro inicial. A regulação virá em boa hora justamente para dar ao Judiciário mais segurança jurídica e evitar que ele tenha que atuar tanto e tão proativamente. Porque não há como socorrer todos os pedidos que vão resultar em violações à liberdade de expressão”, frisou a magistrada.

Se parte da sociedade percebe a questão como censura, a Juíza Caroline Tauk rebate: “A liberdade de expressão não é um direito absoluto e está vedada quando há o anonimato. É preciso lembrar que nas redes sociais há milhões de perfis que são robôs. Nos discursos de ódio, há um exercício abusivo dessa liberdade. Proibir esse tipo de discurso não significa que estamos fazendo censura”.

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Visões sobre a regulamentação das redes sociais

“A comunicação transversal introduz uma volatilidade nas percepções sociais sobre certos fatos que deveriam ser analisados com calma e frieza, introduz aquele instinto de ‘estouro da boiada’ e obviamente há quem manipule isso. A regulação não é acabar com a liberdade, pelo contrário, é uma questão de manutenção da liberdade, evitar que o poder, seja econômico ou de outro tipo, possa manipular as decisões da maioria, que geralmente é míope para o longo prazo e foca demais em informações pouco checadas e autenticadas”
Carlos Ivan Simonsen Leal, Presidente da FGV.

“Conteúdo nocivo sempre existiu nas plataformas. A novidade hoje é o volume, a  capacidade de disseminação e de cooptar tanta gente ao ponto de colocar em risco a saúde, a estabilidade social e o regime democrático de um país. O fator que explica esse cenário é o modelo de negócios das plataformas, baseado parcialmente na disseminação descontrolada de conteúdo nocivo, em que os que mais geram engajamento são os extremistas, os incendiários e os mentirosos. Também são poucas empresas concentrando a maior quantidade de verba publicitária e milhões de usuários. Então, qualquer conteúdo nocivo que elas decidam manter no ar ganha alcance viral e o regime de responsabilização também é leniente e pouco claro. O Marco Civil da Internet só aborda a remoção de conteúdo de pornografia de vingança e de direitos autorais”
Andreia Saad, Diretora Jurídica Tributária, Societária e Regulatória da Rede Globo.

“Vimos em 8 de janeiro aqui no Brasil e em 6 de janeiro de 2021 no Capitólio, nos EUA, atos de selvageria que nasceram e foram alimentados nas redes sociais e que trouxeram esse novo fenômeno, de tirar as ações do mundo virtual e transformá-las em ações concretas no mundo real, com todos os danos e estragos que foram feitos. Quero aqui reafirmar o compromisso da instituição de atuarmos vigorosamente, com todas as nossas competências constitucionais e legais, em defesa da democracia. Atuamos como uma polícia de Estado, uma polícia republicana que não persegue nem protege, mas atua com muito vigor”,
Andrei Augusto Passos Rodrigues, Diretor-Geral da Polícia Federal.

“É muito mais importante do que parece discutir sobre isso, porque estamos falando verdadeiramente sobre vidas. Uma informação errada sobre um hospital, uma escola ou sobre uma vacina pode levar pessoas à dificuldade, à morte ou ao desemprego. Se não há verdade, não há liberdade e não há democracia”
Cláudio Castro, Governador do Rio de Janeiro.