IAB em vigília pela democracia

3 de outubro de 2022

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Entrevista com o Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, Sydney Sanches

Revista Justiça & Cidadania – O senhor assumiu em abril a Presidência do IAB. O que significa estar à frente da mais antiga entidade representativa da advocacia no Brasil? E o que o motivou a concorrer ao cargo?

Sydney Sanches – Estar à frente da entidade jurídica mais antiga das Américas e que contribuiu para a formação do Estado brasileiro é uma honra e um presente da vida. Ter sido escolhido por um grupo seleto de advogados e juristas para representar essa entidade com um legado histórico único para o Direito, a advocacia e o País foram a verdadeira motivação, e importa em grande responsabilidade, especialmente neste sensível momento de nosso País.

RJC – O que foi possível realizar desde então e quais são os projetos que o senhor pretende realizar até o final de sua gestão? 

SS – Desde o início do mandato, a atual gestão se ocupou em manter os projetos existentes em curso e dedicar especial atenção ao momento político do País, que demanda especial atenção para que não ocorram rupturas constitucionais. Criamos uma comissão especial denominada Comissão de Defesa da Democracia, das Eleições e da Liberdade de Imprensa, com a finalidade de responder com rapidez às demandas de defesa da institucionalidade constitucional; firmamos convênios com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para apoio ao sistema eleitoral e acompanhamento das eleições; além disso, estreitamos nossos laços históricos com as entidades internacionais da advocacia, como a Federação Interamericana de Advogados e a União Internacional de Advogados; renovamos nossas formas de comunicação com o público em geral, democratizando os conteúdos produzidos pelo IAB; criamos uma comissão dedicada à celebração dos 180 anos da instituição em 2023; avançamos nos estudos internos para a realização de um censo, a fim de compreender melhor o perfil de nossos associados e a partir daí trabalhar políticas afirmativas que melhorem a representação de gênero, raça e orientação sexual. Isso tudo sem deixar de lado a contínua produção de nossas comissões, que alimentam a comunidade jurídica e a sociedade brasileira de constantes estudos e pareceres; bem como continuaremos a ampliar nossas representações estaduais, com a criação de subsedes em todo o País, em linha com o excelente trabalho realizado pela gestão anterior.

RJC – Em seu discurso de posse, o senhor comentou que o IAB permanecerá na luta para “assegurar o debate democrático das expressões do pensamento crítico”. O que pode ser
feito pelos advogados brasileiros e suas entidades para se contrapor às campanhas de desinformação e ao fenômeno das fake news?

SS – O amplo acesso às ferramentas tecnológicas permitiu um nível de troca de informações que trouxe conquistas positivas, mas ao mesmo tempo acarretou os descaminhos da desinformação/ fake news, que se transformou em um fenômeno da sociedade pós-moderna, com calibre para interferir nas estruturas sociais dos Estados-nação. O nosso passado recente nos apresenta vários exemplos e o processo eleitoral nacional de 2018 já indicava a gravidade do problema. A solução dessa complexa engrenagem vem sendo um desafio em todo o mundo, e o Brasil não é exceção, ao contrário, tornou-
se terreno fértil para as notícias falsas. A autorregulação regulada e a responsabilização das plataformas precisam ser debatidas com responsabilidade, a fim de minorar o problema causado pela ampla capilaridade das plataformas digitais, que se monetizam com notícias falsas e alimentam o seu tráfego, sem qualquer responsabilização e em detrimento à imprensa legitimamente constituída, que responde por seus atos e pela divulgação de inverdades. 

O TSE afirma que essas eleições serão as mais auditadas da história do País e procurou firmar termos de cooperação com as plataformas digitais e serviços de mensagens, entretanto, creio que ainda assim as eleições serão impactadas pelas fake news. Compete às instituições da área jurídica compartilhar e divulgar as políticas de combate às notícias fraudulentas, em especial afirmando a segurança de nossas urnas e do sistema eleitoral brasileiro. As advogadas e advogados possuem papel estratégico nesse processo, na medida em que integram o sistema de justiça na forma prevista no art. 133 da Constituição Federal. No mesmo sentido, devem prestigiar o TSE e a ação estadual de cada Tribunal Regional Eleitoral na defesa das eleições, como forma de assegurar o pleno funcionamento de nossa democracia. O IAB vem cumprindo o seu papel e denunciando toda e qualquer violação da ordem constitucional.

RJC – O senhor enxerga algum risco de quebra da normalidade democrática? Como o IAB pretende reagir a eventuais ameaças e ataques à democracia?

SS – Infelizmente, temos visto tentativas reiteradas de ruptura institucional. A intolerância, a propagação do discurso de ódio, notícias falsas e o desprezo aos princípios de um Estado civilizatório democrático são páginas recorrentes do nosso noticiário. Não se trata de um fenômeno nacional, mas de um processo advindo das novas formas relacionais da humanidade, aprisionadas em algoritmos monetizados por interesses de grandes conglomerados econômicos e alimentadas por uma crise de representação das democracias. Precisamos reconhecer que não construímos novas lideranças e há clara dificuldade dos atores participantes do espaço público em encontrar diálogos, interlocuções e afetos públicos. Isso vem contribuindo para o esgarçamento das democracias e oferecendo espaço para que oportunistas corroam o Estado democrático a partir da apropriação de sua própria lógica organizacional. Isso é perverso e de complexa solução, pois podemos terminar por viver em “democraturas”, que subtraem os direitos individuais e sociais dentro de aparente legalidade. Esse curioso processo histórico impõe às instituições comprometidas com o Estado Democrático de Direito um elevado padrão de vigilância e cobrança da normalidade institucional, que transmita ao público em geral a compreensão de que divergir é parte do espaço público, expressar suas opiniões, escolhas e exercer com liberdade suas identidades é assegurar a convivência humana pacífica, e que a democracia social é o objetivo de uma sociedade solidária pautada no bem comum. Esses propósitos devem ser perseguidos de forma intransigente e objeto de constante cobrança das autoridades constituídas, mesmo que, momentaneamente, esses primados se apresentem como posição contra majoritária.

RJC – Quais são hoje as pautas prioritárias do IAB no cenário nacional?

SS – Neste ano, a defesa da democracia e o efetivo cumprimento do processo eleitoral, a fim de assegurar que o resultado das urnas seja respeitado. Como projeto de gestão, a inauguração de nossas subsedes nos estados e a ampliação do nosso quadro social, com a preservação de nossa qualidade acadêmica. Como instância de consulta do Congresso, continuaremos a atuar no processo legislativo, com o encaminhamento permanente de nossos pareceres, bem como a atuação nas cortes superiores como amicus curiae. Adicionalmente, iremos constituir a Diretoria de Aprimoramento Legislativo, que terá como papel a elaboração de projetos de lei que venham a melhorar nosso ambiente regulatório, o que permitirá uma atuação proativa e mais próxima com o Congresso e os demais poderes.

RJC – A pandemia acelerou uma ruptura paradigmática que já estava em andamento, em termos da digitalização da Justiça. Até que ponto a tecnologia ajuda a advocacia e o quanto ela também pode atrapalhar o trabalho dos advogados? 

SS – A digitalização do Judiciário é um evento que veio para ficar, e o desafio é não permitir que esse processo seja excludente. Em um cenário ideal, a tecnologia pode ajudar a advocacia na diminuição de deslocamentos, aproximar a magistratura, reduzir custos, conferir agilidade e facilitar pesquisas jurisprudenciais e de acesso à doutrina. Por outro lado, esse papel positivo e útil só será válido se for inclusivo e abrigar o largo espectro da advocacia, respeitando as dificuldades de acesso às novas ferramentas, as faixas etárias, entendendo as diferenças regionais, sociais e de qualidade técnica das redes e bandas de Internet oferecidas. Se isso não for central nessa migração, haverá injustiça, maior diferença no seio da classe e o abandono de muitas advogadas e advogados. 

RJC – Qual é a sua opinião a respeito do atual contexto do ensino do Direito no Brasil? 

SS – Hoje temos uma precarização brutal do ensino jurídico em todo o País. São milhares de faculdades que formam milhares de novos bacharéis, muitos com formações claudicantes e que não conseguem ser absorvidos pelo mercado. As faculdades de Direito sempre foram as matrizes dos grandes pensadores do Estado brasileiro e a desconstrução do ensino jurídico reflete o esvaziamento do espaço e do debate públicos que vivemos hoje. A reforma do ensino jurídico passa por uma política de Estado, na qual se aprimorem os critérios de habilitação dos cursos de Direito, que já foram banalizados, como também se eleve o rigor da avaliação dos cursos existentes, a fim de expurgar aqueles que alimentam esse cenário caótico.