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Interpretação e aplicação do Direito: método e legitimidade da Ação Judicial

13 de janeiro de 2020

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Ao longo da história, juristas e filósofos se dedicaram ao estudo do direito, propondo teorias que influenciam a forma como as normas jurídicas devem ser interpretadas e aplicadas, delimitando o campo de ação de juízes e tribunais, sempre em conformidade com os arranjos político-institucionais prevalecentes em cada época. Em todos esses momentos, no entanto, sempre se mostrou essencial a adoção de um método claro e objetivo destinado a orientar,  com segurança, a atividade do intérprete. No presente, o sistema jurídico não mais se limita a um conjunto de regras prescritivas de comportamentos diretos, claros e objetivos, cuja transgressão atrairia a incidência da sanção ou da consequência jurídica estatuída pelo legislador. A visão de que os juízes seriam “a boca da lei”, característica do momento histórico que marcou o alvorecer dos estados modernos, limitava o papel do intérprete judicial à simples imposição da conse­quência normativa prescrita ao sujeito transgressor do comportamento idealizado, em atividade quase mecanicista, por meio de juízos silogísticos de subsunção, que partiam da ideia de que a lei, expressão máxima da razão e do ideal de justiça, contemplava todas as situações da vida, tornando desnecessária a própria atividade de interpretação.

O prestígio conferido à ideia da liberdade, implementada por meio do princípio da legalidade, acabou impondo limites sérios à atividade judicial, tanto que a Lei Revolucionária francesa de agosto de 1790 dispôs que os tribunais deveriam se reportar “ao corpo legislativo sempre que assim considerarem necessário, a fim de interpretar ou editar uma nova lei.” Naquele modelo, de absoluta contenção da atividade interpretativa, os princípios jurídicos, sede natural dos valores, eram compreendidos como simples fontes de inspiração ao legislador, que seria o único agente político autorizado a inscrever regras gerais e abstratas no sistema normativo, disciplinando comportamentos e prescrevendo sanções, cabendo ao Poder Judiciário aplicar, de forma fria e mecanicista, os comandos ditados pelo legislador. No curso da história que se seguiu, a noção de legalidade foi alçada a postulado clássico e essencial para a realização do ideal de defesa da cidadania contra os abusos cometidos pelos detentores do poder político.

No sistema constitucional brasileiro de 1988, as competências normativas reconhecidas aos Poderes Executivo e Judiciário deveriam ser absolutamente excepcionais, limitadas, respectivamente, aos casos de urgência e relevância (CF, art. 62) e à atuação como legislador negativo (CF, art. 102, I, “a”) ou, ainda, excepcionalmente, após o advento da EC 3/93, à análise de atos do Poder Público que possam implicar ameaça ou lesão a preceito fundamental (art. 102, § 1o, da CF).

No caso do Poder Judiciário, em particular, em face da ampla abertura semântica proporcionada pela filosofia da linguagem e da própria ressignificação do papel dos princípios na ordem jurídica – como verdadeiras normas providas de eficácia normativa imediata, independentemente da mediação legislativa ou mesmo para além do próprio trabalho elaborado pelo legislador –, juízes e tribunais, em todos os ramos e níveis de jurisdição, passaram a atuar como autênticos legisladores, desenvolvendo raciocínios jurídico-filosóficos mais críticos e sofisticados, na perspectiva da construção das melhores respostas ou das respostas “mais compatíveis” com os valores por eles identificados no ordenamento jurídico.

Nesta fase, referida como “neo-constitucionalismo” ou pós-positivismo, os princípios assumiram uma outra e expressiva função, regulando diretamente as situações da vida, independentemente da intermediação legislativa. Considera-se que os conteúdos semânticos dos princípios são fixados quando invocados para a regência de situações concretas da vida, segundo a carga axiológica ou “sistema de referência” – ou conjunto de experiências e crenças morais – de cada intérprete.

Para operar nesse sistema pós-positivista, adota-se o método indutivo para compreensão das regras inscritas no sistema e resolução dos conflitos, por meio de silogismos que consideram a prescrição normativa (norma primária) como premissa maior, o quadro fático examinado como premissa menor e a fixação da consequência ou efeito como conclusão; diferentemente, se considerados os princípios, o critério dedutivo é adequado, cabendo ao intérprete partir da noção ampla e geral que atribui ao princípio, considerar o caso concreto e construir a melhor solução ou resposta, a resposta que seria possivelmente atribuída pelo legislador para o conflito de interesses que lhe é apresentado.

Nesse novo contexto de atuação institucional, a legitimidade da ação judicial – aqui  referida como qualidade intrínseca da motivação exposta pelo julgador –passou a exigir um método de análise mais sofisticado e uma argumentação jurídica mais racional, coerente, consistente e dialógica, ou seja, de simples aplicadores do direito positivo, por meio de atividades mecânicas e acríticas desenvolvidas por meio de silogismos, os magistrados se tornaram verdadeiros construtores da “lei do caso concreto”, ainda que partindo do referencial normativo positivado pelo legislador. Passam os magistrados a atuar com os postulados da ciência do direito, pois são naturalmente levados a discutir: as condições ideais de regulação de muitas das condutas questionadas em ações judiciais; os melhores resultados interpretativos para a resolução das disputas a partir da análise sistêmica do ordenamento jurídico; o significado ou a teleologia das normas que postulam incidência em situações concretas; os efeitos ou impactos sócio-econômicos das escolhas interpretativas possíveis etc.

Essa nova realidade fez nascer inclusive um novo sistema já denominado pela doutrina de “direito jurisprudencial”, introduzido pelo Código de Processo Civil de 2015, com o qual o legislador se rendeu, de forma definitiva, a uma evidência antes reputada incômoda, ligada ao papel da jurisprudência como fonte primária, e não indireta ou secundária, do direito. Esse novo procedimento criado para a edição de precedentes busca seguir, em alguma medida, a lógica do próprio processo de produção normativa desenvolvido no âmbito do Poder Legislativo, no qual há a participação ampla dos grupos sociais interessados nos temas que serão objeto de deliberação e regulação (CPC, artigos 976 a 987).

Nesse novo cenário normativo, a função da jurisprudência é garantir isonomia, previsibilidade e segurança jurídica aos cidadãos, que estarão previamente cientes do conteúdo das respostas judiciais que lhes serão concedidas, quando se encontrarem em situações jurídicas semelhantes àquelas que foram previamente examinadas pelo Poder Judiciário.

Neste complexo universo de investigação e produção científica, a adoção de um método se mostra essencial para que os objetos investigados possam ser adequadamente decompostos, explicados e compreendidos. Em relação ao direito, objeto cultural por excelência em que estão depositados valores e meios para garantia de sua eficácia ou concreção, múltiplas são as possibilidades de investigação ou os métodos passíveis de adoção para a melhor e mais adequada compreensão de seus objetos. 

Como o direito se expressa por meio de enunciados linguísticos ou textos compostos por conjuntos de palavras, nada mais natural que possa – e deva – ser especialmente analisado, compreendido e explicado por meio da teoria da linguagem. Daí a relevância da adoção dos instrumentos legados pelo campo de investigação da linguagem, com o objetivo de conferir coerência intrínseca e, portanto, rigor científico ao discurso jurídico, afastando-se o risco de ambiguidades e incertezas, que comprometem a própria finalidade e funcionalidade do direito.

A relevância e centralidade da linguagem, enquanto sistema de signos (sistema semiótico) e base para a produção científica em qualquer área do conhecimento humano, é indiscutível, havendo autores, como Benvenista, que a qualificam como “expressão simbólica por excelência e todos os outros sistemas de comunicação são dela derivados e a supõem.”

No âmbito plural e complexo do tráfego social, em que as relações e interações sociais se realizam e se desenvolvem por meio da linguagem, múltiplas são as situações de conflitos que, reguladas em maior ou menor grau pelo direito positivo, são levadas ao Poder Judiciário. E os juízes, também lançando mão da linguagem, produzem narrativas e decisões sobre fatos e preceitos normativos, também produzidos por meio de linguagens pelos demais sujeitos envolvidos nesses processos, numa atividade metalinguística infindável e, em alguma medida, imprevisível porque sempre vinculada ao sistema de referência de cada qual desses intérpretes.

Frente a esse rico e inesgotável manancial de realidades da vida, valores, textos, enunciados e proposições, a atividade do jurista reclama a adoção de um método que possa conferir segurança à atividade de atribuição de sentido pressuposta para a sua atuação profissional. O construtivismo lógico-semântico, nesse sentido, oferece ao indivíduo um percurso analítico claro e objetivo que confere segurança e rigor científico ao processo de produção interpretativa. Partindo da compreensão de que o direito não é meramente revelado ou simplesmente descrito de modo imparcial ou não valorativo pelo intérprete, cuja função estaria limitada a enunciar a vontade do legislador, o construtivismo assume a premissa de que todo intérprete é também construtor do próprio sentido da norma, embora essa operação intelectiva não se deva realizar de forma absolutamente livre ou aleatória. Essa atividade rica, complexa e sistematizável de “outorga de sentido” há de se realizar com base em critérios lógicos (sintáticos) e semânticos, por meio da exposição e articulação das principais ideias fixadas a partir das expressões linguísticas utilizadas, analisadas isoladamente e em conjunto, como forma de obtenção das principais ideias ou premissas valorativas vinculadas ao objeto estudado.

Ainda, por esse método, não se relega a nível secundário o plano pragmático da linguagem, inclusive pressuposta pelo próprio legislador ao considerar a realidade ou o objeto digno de regulamentação. Realmente, detectada pelo legislador a conveniência de revisão da regulação jurídica de determinada situação da vida social, tal como ocorreu em relação à legislação trabalhista brasileira, a linguagem ou a prática social dos conteúdos normativos revisados, como editada por seus próprios destinatários, está sempre pressuposta nas dimensões sintática e semântica da nova linguagem positivada pelo legislador, figurando ao mesmo tempo como causa ou força-motriz e resultado das próprias inovações normativas editadas.

Fixada a relevância do método na produção do conhecimento e exposto o modelo do construtivismo lógico-semântico, cabe avançar sobre a dimensão axiológica ou valorativa do fenômeno normativo, na qual se projeta e se desvela a subjetividade do intérprete.

No âmbito do Poder Judiciário, em especial, as escolhas interpretativas processadas nos julgamentos proferidos revelam as preferências exercidas por esses “intérpretes autorizados” entre os sentidos possíveis dos valores considerados ou mesmo evidenciam as preferências por determinados valores em detrimento de outros potencialmente aplicáveis aos casos examinados.

A interpretação judicial, portanto, é atividade valorativa por excelência, absolutamente indissociável da “tábua de valores” ou do “bloco axiológico” professado por seus protagonistas. Apesar dessa evidencia irrefutável, é preciso estabelecer parâmetros que possibilitem o controle da atividade judicial, de vez que, em uma sociedade aberta, plural e democrática, não parece adequado que os juízes assumam a função de tutores morais, impondo seus valores de forma indiscriminada nos julgamentos que proferem, como se a mera investidura por meio do concurso público os habilitasse a conduzir os destinos da sociedade, inclusive contra as próprias instancias representativas da soberania popular.

Essa necessidade de controle contra abusos e desvios justifica as previsões de publicidade das sessões e de motivação de todas as decisões judiciais, sediada no art. 93, IX, da Carta Política, como meio capaz de viabilizar o controle perante as instâncias ordinárias e extraordinárias de revisão, através dos recursos e meios autônomos de impugnação previstos na legislação processual brasileira. Ainda que o processo decisório seja marcado por uma base valorativa indissociável e, quem sabe, necessária, a exposição dos motivos ou das razões de decidir possibilita a compreensão do processo psicológico que presidiu o convencimento do juiz e mesmo a sua própria ideologia, compreendida como filtro ou critério de hierarquização dos valores integrados a seu patrimônio ético-moral.

Ainda que a resolução judicial de demandas sociais sensíveis – no processo denominado de “judicialização da política – não mais venha gerando tantos questionamentos e causando grandes perplexidades, é preciso relembrar que a função institucional do Poder Judiciário alcança, essencialmente, a tutela das regras do processo democrático, dos direitos fundamentais e da integridade da ordem jurídica, reservando-se às demais esferas de Poder, periodicamente legitimadas pelo sufrágio universal, o exercício das escolhas sensíveis ligadas a interesses coletivos – o Poder Legislativo –, bem assim a própria execução das políticas públicas que guarnecessem interesses sociais relevantes – o Poder Executivo. Nos casos, porém, em que instados a decidir casos difíceis, a legitimidade da ação judicial, sob a perspectiva substantiva, estará umbilicalmente vinculada à clareza do método utilizado para a construção das decisões, com o qual se afasta o risco autoritário de apropriação ideológica da pauta normativa, aliada à exposição lógica, coerente e consistente das razões de decidir, permitindo o amplo controle social do processo decisório a cargo do Poder Judiciário.