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Juizados Especiais Federais: algumas observações quanto aos reflexos cíveis da Lei 10.259/2001 sobre a Lei 9.099/95

5 de janeiro de 2005

Presidente do Conselho Editorial/Ministro do Superior Tribunal de Justiça/Corregedor-Geral da Justiça Eleitoral

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Introdução

A lei 10.259/2001 instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal, cumprindo mandamento inserido na Carta Magna, por força da Emenda Constitucional nº 22, de 18.03.99.

Assim dispõe o artigo 98, parágrafo único da Constituição Federal:

“Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal”.

A Lei dos Juizados Federais, logo no artigo 1º, mandou que se lhe aplique, naquilo que não houver conflito, as disposições da lei 9.099/95. A técnica legislativa adotada, pois, foi a de tracejar os contornos gerais dos Juizados Federais, definir competência cível e criminal, estabelecer adequação de procedimentos e formas mais eficazes para criação e estruturação dos novos órgãos.

Na verdade, cumpre verificar que o processo propriamente dito e os princípios gerais foram definidos na legislação que serve como paradigma (Lei 9.099/95).

Os Juizados Especiais representam mais um esforço dos juízes brasileiros, na tentativa de apresentarem à sociedade uma solução adequada, rápida e gratuita para democratizar e facilitar o acesso à justiça. Não resolverão, por certo, todos os problemas estruturais e de gestão do Judiciário brasileiro, mas simbolizam um passo firme em direção à construção do Poder apto a atender nossos jurisdicionados.

Leis especiais e gerais. Formas de interpretação

Quando surge no mundo jurídico uma lei nova, especial em relação à outra geral, regulando uma questão específica, cabe logo a indagação sobre a forma de interpretação, de modo a evitar-se conflitos.

Nesse passo, a lição sempre atual de Vicente Ráo1:

“A disposição especial de uma lei não revoga a geral de outra, nem a geral revoga a especial, senão quando a ela, ou ao seu assunto, se referir, alterando-a”.

Assim dispõe o artigo 2º, §2º da Lei de Introdução ao Código Civil:

“A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga  nem modifica a lei anterior.”

Por outro lado, quando a lei posterior “… regula inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”, há a revogação (§1º, artigo 2º da LICC).

A competência dos Juizados Federais Cíveis

O artigo 3º da lei 10.259/2001 fixou a competência para os Juizados Federais Cíveis2.

Utilizou-se o legislador de dois critérios para fixar a competência dos novos órgãos de jurisdição. O primeiro, remetendo o intérprete à Constituição Federal, são todas as causas de competência da Justiça Federal (artigo 109 da CF/88), excetuadas as mencionadas no §1º do artigo 3º da lei em comento. O segundo foi o critério de valor, limitando-se aquelas causas que seriam da Justiça Federal comum, até o equivalente a sessenta salários mínimos.

Portanto, no que pertine ao critério de valor para fixação de competência dos novos Juizados, a lei 10.259/2001 foi mais ousada que a anterior (artigo 3º, inciso I da Lei 9.099/95), ampliando o limite para sessenta salários.

A ampliação do limite para 60 salários vale também para os Juizados Estaduais?

A resposta é afirmativa.

Para efeito de valor, houve uma nova definição do legislador quanto à “causas cíveis de menor complexidade”.(artigo 98, inciso I da CF/88).

De fato, a lei 9.099/95, ao estabelecer a competência para o julgamento das “causas cíveis de menor complexidade”, utilizou-se também de dois critérios básicos, tais como “em razão da matéria e valor” (artigo 3º, Lei 9.099/95)3.

Ao dispor que as causas de menor complexidade, no que toca ao limite de valor, seriam aquelas até quarenta salários mínimos (artigo 3º, inciso I), o legislador de 1995 foi prudente. Certamente, tinha receio de que os Juizados fossem receber muitas demandas, e por isso a interpretação daquele dispositivo foi a de que, mesmo situado como inciso (e não no caput), o limite prevaleceria para todos os demais incisos do mencionado artigo 3º da Lei 9.099/954.

Com o advento da Lei 10.259/2001, na verdade o legislador, a pretexto de dispor sobre a competência dos Juizados Federais, veio a fixar novo conceito de causa cível de menor complexidade, ao menos pelo ângulo do critério de valor. Dispôs, nesse passo, que o limite será o de sessenta salários mínimos.

Parece claro, pois, que houve ampliação também, no que se relaciona ao valor máximo de sessenta salários, para o Juizado Especial Cível, à semelhança do que ocorreu no âmbito da competência dos Juizados Criminais5.

Regulando a nova lei integralmente, a mesma matéria versada na lei anterior, prevalece a lei especial mais recente (artigo 2º, §1º, LICC).

Nesse particular, a parte final do artigo 20 da Lei 10.259/20016 não é óbice para que se atinja a plenitude dessa interpretação.

De fato, ao estabelecer a flexibilização da competência territorial, no caso de ausência de Vara Federal, a lei dispôs que, nesse caso (e somente nesse caso), não cabe aplicação da mesma no “juízo estadual”. Vale dizer, não poderá a parte, não havendo Juizado Federal no local, valer-se da Justiça Estadual ou do Juizado Especial Estadual. Deverá procurar o Juizado Federal mais próximo do foro definido no artigo 4º da Lei 9.099/95, fugindo ao padrão fixado pelo artigo 109, §3º da CF/88.

Interpretar de maneira diferente a norma seria ferir de morte o que, expressamente, dispõe o artigo 1º da Lei dos Juizados Federais, ainda porque uma lei federal não pode ter sua aplicação vedada em qualquer sede de juízo neste país.

Aplicação do disposto no artigo 17 da Lei dos Juizados Federais (dispensa de precatórios) também para o âmbito estadual.

Na mesma linha de raciocínio, tenho que a nova lei ampliou a possibilidade de pessoas jurídicas públicas figurarem no pólo passivo, aplicando-se, mutatis mutandi, a regra do art. 17, com a dispensa do precatório.

Estabelece o artigo 8º que não poderão figurar como partes no Juizado Especial Cível, o incapaz, o preso, as pessoas jurídicas de direito público, as empresas públicas da União, a massa falida e o insolvente civil.

Parte, em direito processual, é quem pede ou em face de quem se pede a tutela jurisdicional.

O dispositivo retira de determinadas pessoas a capacidade de ser parte, pressuposto subjetivo para constituição válida do processo.

Vale dizer que, se um incapaz propõe uma ação no Juizado, o juiz deve extinguir o feito (artigo 51, incisos II e IV da Lei dos Juizados Especiais) sem julgamento do mérito.

A intenção do legislador foi, sempre, de valorizar a conciliação e a celeridade, o que estaria comprometido, de certa forma, com a presença das partes indicadas no dispositivo.

Lamentava-se, contudo, a exclusão da possibilidade de litígio contra as pessoas jurídicas de direito público no âmbito estadual7.

Sabe-se o quanto é dificultoso para o cidadão ajuizar qualquer ação tendo como réu o Estado. As Varas de Fazenda Pública estão abarrotadas de processos, e o litígio tende a se eternizar. Há desestímulo para que seja exercida a cidadania em sua plenitude, pois o custo e o tempo para a solução da demanda fazem com que o cidadão renuncie ao direito que, em tese, quer ver reconhecido. Basta citar, apenas como exemplos, os sucessivos planos econômicos, os expurgos de índices inflacionários, com “confiscos” e depósitos compulsórios e a falta de remédios nos hospitais públicos, indispensáveis ao tratamento de doenças crônicas. Diante da violência, em certas situações, por parte do Estado, com flagrantes violações aos direitos individuais, o cidadão prefere permanecer inerte, porque uma ação contra o Estado, em previsão otimista, não se encerra antes de cinco anos. E se houver condenação, o recebimento se dará por precatório, em moeda absolutamente defasada.

Ao ampliar a possibilidade para que os entes públicos federais figurem no pólo passivo da demanda, a lei nova trouxe inegável reflexo para a Lei 9.099/95, haja vista o princípio da isonomia consagrado no texto constitucional (artigo 5º, CF/88).

Vale transcrever a observação certeira do Professor Luiz Roberto Barroso sobre o assunto8:

“Reproduzindo-se o conhecimento convencional, costuma-se afirmar que a isonomia traduz-se em igualdade na lei – ordem dirigida ao legislador – e perante a lei – ordem dirigida ao aplicador da lei. O princípio da isonomia forma uma imperativa parceria com o princípio da razoabilidade. À vista da constatação de que legislar, em última análise, consiste em discriminar situações e pessoas por variados critérios, a razoabilidade é o parâmetro pelo qual se vai aferir se o fundamento da diferenciação é aceitável e se o fim por ela visado é legítimo.”

Ao estabelecer, portanto, a possibilidade de participação do ente público nos processos dos Juizados Federais, quer parecer que o legislador, desenganadamente, criou situação de derrogação do disposto no artigo 8º da Lei 9.099/95, nesse ponto específico – tendo em vista os princípios constitucionais da isonomia e do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal).

Conclusão

A conclusão, portanto, é que a jurisprudência, com sua construção paulatina, por certo enfrentará e resolverá as questões relacionadas com essas breves reflexões.

A Lei dos Juizados Federais trouxe inequívocos reflexos para a Lei 9.099/95.

No âmbito criminal, ampliou a competência para julgar delitos a que a lei comine pena não superior a dois anos.

No aspecto cível, aplicando o mesmo raciocínio, a lei nova criou outro paradigma para dispor sobre causas cíveis de menor complexidade, estabelecendo-as como de valor até sessenta salários mínimos (artigo 3º da Lei 10.259/2001). Esse novo conceito, por certo, se aplica aos Juizados Especiais Estaduais.

Também em relação à vedação dos entes públicos figurarem como partes, a nova lei dispôs de forma diferente. Logo, há reflexos na lei que regula o assunto no âmbito dos Juizados Estaduais, tendo em conta os princípios constitucionais da isonomia e do devido processo legal.

Apenas cabe acentuar uma observação final, mas relevantíssima. Os Juizados Estaduais já sofrem com uma explosão de processos, decorrentes da chamada “demanda reprimida” da cidadania. Se não houver aporte de recursos e definição de uma política de valoração dos Juizados Especiais pelas estruturas do Poder constituído, com investimento maciço em informatização, formação de juízes e conciliadores, e uma estrutura de ações coletivas, os novos órgãos, de pequenas plantas que são, não poderão cumprir com seu destino histórico de se tornarem grandes arbustos para o Judiciário.

Mas esse é outro assunto, e não pode servir de argumento quando o tema é interpretação de textos legais.

Notas ______________________________________________________________________

1 “O direito e a vida dos direitos”, Vicente Ráo, RT, Vol 01, 3ª Edição, pág. 303.

2 “Compete ao Juizado Especial Cível Federal processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças”.

3 “O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas: I – as causas cujo valor não exceda a 40 (quarenta) vezes o salário-mínimo; II – as enumeradas no art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil; III – a ação de despejo para uso próprio; IV – as ações possessórias sobre bens imóveis de valor não excedente ao fixado no inciso I deste artigo”.

4 Enunciado Jurídico Cível do Encontro dos Juízes dos Juizados Especiais nº 2.4.1 – “Todas as causas da competência dos Juizados Especiais Cíveis estão limitadas a 40 salários mínimos.” Os enunciados podem ser localizados  no site do TJ/RJ (www.tj.rj.gov.br).

5 Enunciado Jurídico Criminal do Encontro dos Juízes dos Juizados Especiais nº 1 -  “Aplica-se ao Juizado Especial Criminal Estadual o conceito de infração de menor potencial ofensivo definido no art. 2º, parágrafo único, da Lei 10.259/01 (delitos a que a lei comine pena não superior  a dois anos)” . Os enunciados podem ser localizados no site do TJ/RJ (www.tj.rj.gov.br) .  Na doutrina, confira-se “Juizados Especiais Criminais – Temas Controvertidos”, Editora “Lumen Juris”, 2002, do Juiz André Luiz Nicolitt e “Sistema Acusatório”, da mesma editora, de autoria do Juiz Geraldo Prado.

6 “Onde não houver Vara Federal, a causa poderá ser proposta no Juizado Especial Federal mais próximo do foro definido no art. 4º da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, vedada a aplicação desta lei no juízo estadual”.

7 Confira-se o livro “Roteiro dos Juizados Especiais Cíveis”, Luis Felipe Salomão, 3ª Edição, ano 2003.

8 Em nota de rodapé, prossegue o eminente constitucionalista: “Ao julgar o Mandado de Injunção nº 58, do qual foi relator para acórdão, averbou o Min. Celso de Mello (RDA 183/143): Esse princípio (o da isonomia) – cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA, 55/114), sob duplo aspecto: a) o da igualdade na lei; b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera uma fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório”.

Bibliografia __________________________________________________________________

1 “O direito e a vida dos direitos”, Vicente Ráo, RT, Vol 01, 3ª Edição, pág. 303.

2 “Compete ao Juizado Especial Cível Federal processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças.”

3 “O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas: I – as causas cujo valor não exceda a 40 (quarenta) vezes o salário-mínimo; II – as enumeradas no art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil; III – a ação de despejo para uso próprio; IV – as ações possessórias sobre bens imóveis de valor não excedente ao fixado no inciso I deste artigo.”

4 Enunciado Jurídico Cível do Encontro dos Juízes dos Juizados Especiais nº 2.4.1 – “Todas as causas da competência dos Juizados Especiais Cíveis estão limitadas a 40 salários mínimos.” Os enunciados podem ser localizados  no site do TJ/RJ , www.tj.rj.gov.br.

5 Enunciado Jurídico Criminal do Encontro dos Juízes dos Juizados Especiais nº 1 -  “Aplica-se ao Juizado Especial Criminal Estadual o conceito de infração de menor potencial ofensivo definido no art. 2º, parágrafo único, da Lei 10.259/01 (delitos a que a lei comine pena não superior  a dois anos)” . Os enunciados podem ser localizados no site do TJ/RJ, www.tj.rj.gov.br .  Na doutrina, confira-se “Juizados Especiais Criminais – Temas Controvertidos”, Editora “Lumen Juris”, 2002, do Juiz André Luiz Nicolitt e “Sistema Acusatório”, da mesma editora, de autoria do Juiz Geraldo Prado.

6 “Onde não houver Vara Federal, a causa poderá ser proposta no Juizado Especial Federal mais próximo do foro definido no art. 4º da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, vedada a aplicação desta lei no juízo estadual.”

7 Confira-se o livro “Roteiro dos Juizados Especiais Cíveis, Luis Felipe Salomão, 3ª Edição, ano 2003.

8 Em nota de rodapé, prossegue o eminente constitucionalista: “Ao julgar o Mandado de Injunção nº 58, do qual foi relator para acórdão, averbou o Min. Celso de Mello (RDA 183/143): Esse princípio (o da isonomia) – cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA, 55/114), sob duplo aspecto: a) o da igualdade na lei; b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera uma fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório”.