“Não é possível falar de desenvolvimento sem tratar da desigualdade”

2 de janeiro de 2023

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No exercício da Presidência do Tribunal de Contas da União (TCU) desde a aposentadoria compulsória da Ministra Ana Arraes, em julho de 2022, o Ministro Bruno Dantas Nascimento acaba de assumir, em dezembro passado, a titularidade do cargo, eleito por seus pares para mandato de um ano, com a possibilidade de reeleição por igual período.

No cargo desde 2014, tendo sido indicado pelo Senado Federal, onde trabalhou como consultor legislativo, o Ministro Bruno Dantas contribui para estabelecer uma nova mentalidade ao TCU – órgão auxiliar do Poder Legislativo, de controle externo do Poder Executivo. Hoje, para além de vigiar e punir, a Corte de Contas busca construir soluções consensuais de conflitos e se posicionar como parceira dos gestores públicos brasileiros, aos quais dá orientações e compartilha informações sobre as melhores práticas e ferramentas de gestão.

Prova disso é o relatório apresentado pelo TCU à equipe de transição, que apontou importantes caminhos para o novo Governo. Dentre eles, o ministro destaca a sustentabilidade fiscal, o aumento da competitividade, os investimentos em infraestrutura e redução das desigualdades como fatores essenciais para a retomada do desenvolvimento do País. Saiba mais na entrevista a seguir.

Revista Justiça & Cidadania – No último semestre, o senhor acumulou o exercício da Presidência, da Vice-Presidência e da Corregedoria do Tribunal de Contas da União. Como fez para se desdobrar dentre as tantas tarefas que esses cargos exigem?
Ministro Bruno Dantas – Esses últimos cinco meses realmente foram repletos de grandes desafios. O acúmulo temporário de funções foi uma necessidade em que procuramos suprir com muita dedicação. O mais importante nem foi o meu esforço pessoal e, sim, a capacidade do Tribunal de agir coletivamente. Para isso, contei com o apoio de ministros, servidores e de todos os colaboradores do TCU. Foi um semestre muito proveitoso, em que assumimos a Presidência da Organização Internacional das Instituições Superiores de Controle (INTOSAI) e conseguimos estruturar uma transição interna que culminou em alterações na estrutura e no modo de funcionamento da Casa. Tais mudanças já se iniciarão em janeiro de 2023, quando começa meu período oficial na Presidência da Corte. 

RJC – Agora, ao assumir a Presidência efetiva, quais são as marcas que o senhor pretende imprimir à sua gestão?
MBD – Minha grande responsabilidade é manter o nível de excelência da Casa, conquistado ao longo dos anos durante as gestões anteriores de todos os ministros que me antecederam na presidência, a exemplo dos ministros mais antigos, como Walton Alencar Rodrigues e Benjamin Zymler. 

Meus principais objetivos são reforçar três questões. A primeira é a implementação da solução consensual e prevenção de conflitos.

A segunda consiste em incrementar a transparência da administração pública, de modo que os cidadãos possam tornar-se parte do acompanhamento dos recursos públicos, seja diretamente, seja por meio de organizações da sociedade civil. No Governo Federal, a Lei de Acesso à Informação já é uma realidade, apesar de ainda precisar de aprimoramentos; mas isso ainda não ocorre nos municípios.

A terceira é reforçar o controle da responsabilidade fiscal, promovendo o controle da eficiência das despesas públicas por meio da revisão periódica dos gastos.

RJC – O senhor comentou que pretende criar no TCU uma unidade de auditores especializada em soluções consensuais de conflitos na administração pública. Quais são os objetivos que pretende alcançar com essa unidade?
MBD – A busca de soluções consensuais para problemas relevantes tem ganhado destaque no mundo e deve estar presente na atuação de todos os servidores públicos, uma vez que o conflito gera custos e sempre atrasa a implementação de obras e serviços públicos. A adoção de instrumentos de solução de controvérsias, baseados na consensualidade, tem como objetivo aumentar a eficiência e a economicidade do Estado.

Tenho defendido que é possível obter economicidade em acordos com o Estado, nos quais cada lado cede um pouco, mas o interesse público é preservado. Em muitas situações, o interesse público consiste em encontrar uma solução mais célere da controvérsia, viabilizando serviços públicos melhores para o cidadão.

Essa abordagem institucionalizará algo que o Tribunal já tem realizado em diversos momentos. Precisávamos definir um processo de trabalho e uma estrutura em nosso organograma para promover essas ações na busca de soluções consensuais. A criação de uma secretaria no TCU especializada em soluções consensuais e prevenção de conflitos pretende ampliar essa forma de atuação, com medidas que zelem pela segurança jurídica e valorizem o diálogo institucional entre os diferentes órgãos estatais e com particulares que se relacionam com o poder público.

A Secretaria de Soluções Consensuais e Prevenção de Conflitos funcionará a partir de 2 de janeiro de 2023 e contará com um corpo de auditores treinados para auxiliar a achar soluções dentro da lei para questões relevantes identificadas pelos gestores públicos.

RJC – Com informações sobre aspectos fiscais, patrimoniais e de execução orçamentária da atual gestão federal, o relatório apresentado pelo TCU ao governo de transição apontou importantes caminhos para a próxima administração. Na ocasião, o senhor ressaltou a questão dos critérios para a concessão de isenções fiscais num quadro de “crise fiscal”. Qual é o tamanho dessa crise e quais são as principais orientações do Tribunal para superá-la?
MBD – As projeções para 2023 apontam que teremos um ano desafiador em termos de política fiscal. O projeto de lei orçamentária anual prevê que o resultado primário do governo central continuará sendo deficitário.

Nesse cenário, estima-se a elevação da dívida para um patamar próximo a 80% do Produto Interno Bruto (PIB). Garantir a sustentabilidade da dívida pública é uma diretriz definida pela própria Constituição Federal, em seu art. 164-A.

Gerir o equilíbrio das contas passa tanto pelo controle de gastos quanto pelo aumento de arrecadação. Nesse sentido, destaca-se a importância de avaliar as renúncias de receitas tributárias. Os incentivos e benefícios de natureza tributária devem totalizar cerca de R$ 456 bilhões em 2023, o que corresponde a cerca de 4,3% do PIB, o dobro do observado no início dos anos 2000. Exatamente pelo peso fiscal que a renúncia representa para o País, a Emenda Constitucional nº 109/2021 determinou a elaboração de um plano de redução gradual das renúncias fiscais, para um patamar de 2% do PIB. O Governo ainda não conseguiu avançar nessa agenda.

O TCU tem apontado que as renúncias tributárias são marcadas por problemas de transparência, controle, monitoramento e avaliação. Em resposta, foi criado o Comitê de Avaliação de Políticas Públicas, para avaliar, inclusive, políticas financiadas por renúncias tributárias. O desafio é fortalecer e integrar essas avaliações a decisões políticas. O TCU tem um papel fundamental para isso, fazendo a ponte entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo.

RJC – Para cada uma das 29 áreas identificadas, o relatório descreve os problemas verificados, aponta o que precisa ser feito, apresenta o motivo que levou o tema a ser considerado de alto risco e traz decisões recentes do TCU sobre o assunto. Além da questão fiscal, quais outros pontos do documento o senhor destacaria como fatores importantes para ampliar a eficiência da Administração Pública Federal ou para contribuir com a retomada do desenvolvimento econômico do País?
MBD – Destacaria quatro pontos: sustentabilidade fiscal, elevação contínua da produtividade e competitividade do produto nacional, investimentos inteligentes em infraestrutura e redução das desigualdades sociais.

Sobre o primeiro ponto, é importante lembrar que regras fiscais não substituem boas políticas fiscais. Então, é preciso avançar tanto no desenho das instituições quanto na condução responsável da gestão das contas públicas, com atenção à previsibilidade e à clareza nas comunicações sobre as decisões na área econômica.

Em relação à produtividade, a expansão requer desdobramentos em várias agendas, cuja avaliação vai além da atuação do TCU, mas que, a partir dos trabalhos que temos realizado, dentro de nossas competências, podemos opinar, por exemplo, quanto à necessidade de reforma tributária, educação de qualidade, valorização da inovação no setor privado e na gestão pública.

Por fim, não é possível falar de desenvolvimento econômico sem tratar da questão da desigualdade social e regional em nosso País, que é ainda um dos mais desiguais do mundo. Essa certamente é uma questão ética, sendo a inclusão de todos, além de nosso dever como nação, uma questão econômica muito relevante. O crescimento econômico sustentável requer a inclusão de todas as pessoas e todas as regiões integradas de forma coesa na geração, no compartilhamento e na utilização da riqueza nacional. O TCU tem realizado trabalhos importantes preocupado em avaliar a correta destinação dos recursos alocados para a redução das desigualdades. 

RJC – O TCU tem realizado estudos e seminários voltados a debater a modernização da prestação de contas públicas. Quais foram as principais conclusões até o momento?
MBD – Esse processo de modernização da prestação de contas públicas teve como gatilho avaliações internacionais realizadas há mais de dez anos, feitas pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo Banco Mundial, que identificaram pontos em que o Brasil não observava boas práticas e padrões técnicos internacionalmente aceitos.

Nesse período, o TCU qualificou e regulamentou o processo sobre contas do governo e modernizou a prestação de contas dos ministérios e demais órgãos e entidades federais. Hoje temos uma avaliação da capacidade que os principais ministérios detêm de cuidar dos recursos públicos sob sua responsabilidade. 

Recentemente, por exemplo, as contas de 2021 do Ministério da Cidadania tiveram uma recusa para emitir uma opinião, por limitações para obtenção de evidências, e a prestação de contas do Ministério da Saúde teve uma opinião adversa. Isso significa que esses dois ministérios falharam no objetivo de prestar contas à sociedade e a seus representantes.

RJC – As diferentes reações do mercado e dos economistas diante das movimentações do novo governo para flexibilizar o teto de gastos públicos no intuito de ampliar os investimentos sociais levantaram esta importante questão. Há, de fato, uma dicotomia inconciliável entre manter a responsabilidade fiscal e ampliar os gastos com políticas sociais? Ou é possível equilibrar esses dois pratos na balança?
MBD – Essa é uma questão muito importante. Há muitas variáveis na decisão de flexibilizar ou não o teto de gastos. Quando foi criado, em 2016, houve também grandes discussões e, naquele momento, o Congresso Nacional decidiu que a medida mais adequada era impor o teto. Hoje temos outro contexto. Passamos por uma crise sanitária cujos efeitos ainda estamos colhendo em diversos aspectos, entre eles o agravamento da desigualdade, o aumento da pobreza e a volta ao mapa da fome. O equilíbrio nas finanças do País passa também pelas perspectivas da economia para os próximos anos. Enfim, destaquei aspectos que o Congresso certamente precisará ponderar ao decidir sobre a questão. Trata-se de uma decisão sobre a qual o TCU não participa diretamente.

Uma das principais funções do TCU é auditar as finanças públicas e, nesse contexto, ser o guardião da responsabilidade fiscal. Para realizar políticas públicas efetivas e eficazes é preciso garantir um arcabouço fiscal sólido, equilíbrio entre o arrecadado e o gasto e um nível de endividamento sustentável. Podemos sinalizar preocupações, opinar sobre a capacidade de administrar o endividamento, traçar cenários fiscais, mas definir a existência ou não de um teto, ou sua flexibilização, constitui um debate eminentemente político, em que são discutidas alternativas para atender as demandas da sociedade. Aqui, entendo que não há que se falar em dicotomia, mas sobre que demanda o Estado vai decidir atender e em que momento.

Como órgão fiscalizador, o TCU avalia a legalidade dos atos. Uma vez decidido pelo Legislativo qual será o novo marco legal, caberá ao Tribunal acompanhar a execução orçamentária e verificar a adequação ao aparato normativo definido.

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Perfil

Pós-doutorado em Direito (UERJ), doutor e mestre em Direito (PUC-SP), o Ministro Bruno Dantas é pesquisador visitante da Cardozo School of Law de Nova Iorque, do Max Planck Institute for International, European and Regulatory Procedural Law de Luxemburgo e da Université Paris I Panthéon-Sorbonne. Como docente, é professor da graduação, do mestrado e do doutorado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), dos programas de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio) e da Universidade Nove de Julho (Uninove).

Autor de inúmeros artigos científicos e livros jurídicos, foi aprovado no concurso público para consultor legislativo do Senado Federal, casa legislativa na qual atuou entre 2003 e 2014, tendo exercido a função de consultor-geral de 2007 a 2011.

Indicado pelo Senado, compôs o Conselho Nacional de Justiça (CNJ/ biênio 2011-2013) e o Conselho Nacional do Ministério Público (2009-2011). Presidiu a Comissão de Articulação Federativa e Parlamentar do CNJ, na qual foi o autor da Resolução nº 156/2012, que instituiu a exigência de “ficha limpa” para a ocupação de cargos comissionados no Poder Judiciário. Integrou ainda a Comissão de Juristas encarregada de elaborar o anteprojeto do novo Código de Processo Civil.