“Não existe modelo eleitoral perfeito”

9 de agosto de 2021

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Recém-nomeada Ministra Substituta do TSE, Maria Cláudia Bucchianeri fala em entrevista sobre os desafios da Justiça Eleitoral para realizar eleições livres, justas e seguras

Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro é umas das juristas brasileiras mais militantes na área do Direito Eleitoral. Já foi assessora-chefe da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e assessora dos ministros do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello e Ayres Britto.   Como advogada eleitoral, tem trânsito em vários partidos políticos. Atuou como defensora do PT nas eleições de 2018 e brilhou no julgamento da impugnação da candidatura do então candidato a presidente Luís Inácio Lula da Silva. Atuou também no processo que culminou no afastamento do ex-governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel (PSL) e foi advogada do atual Presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP). 

Professora de pós-graduação em Direito Eleitoral, fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e integrante da Comissão Nacional de Direito Eleitoral do Instituto dos Advogados Brasileiros (CNDE/IAB), Maria Cláudia Bucchianeri teve seu trabalho consagrado com a recente nomeação para atuar como Ministra Substituta do TSE pela classe dos juristas.

Na Corte, ela será uma das responsáveis por analisar ações relacionadas à propaganda eleitoral da campanha presidencial de 2022. Nessa entrevista, concedida após sua participação no podcast Conversa com o Judiciário a Ministra fala sobre o enfrentamento às fake news, a discussão do novo Código Eleitoral e as propostas de alteração do sistema político-eleitoral em tramitação no Congresso.

Revista Justiça & Cidadania – Há anos a senhora se destaca como uma das advogadas mais atuantes no Direito Eleitoral nacional. Agora, vai atuar no centro do sistema eleitoral de uma das maiores democracias participativas do mundo. Está animada para o desafio?

Maria Cláudia Bucchianeri – Estou muito animada e extremamente honrada! Minha paixão pelo Direito Eleitoral e minha história de afeto com o Tribunal Superior Eleitoral se iniciaram há muitos anos, quando tive a oportunidade de ser servidora da Casa, uma Corte célere, moderna e que tem cumprido, com reconhecido êxito e para orgulho de todos nós, a tarefa de organizar e realizar eleições seguras, livres e justas numa democracia que conta com quase 150 milhões de eleitores.

Sob o aspecto estritamente pessoal, sei que é grande o desafio de honrar a melhor tradição dos juristas que me antecederam no Tribunal, na condição de juiz substituto. Para além disso, reconheço ser igualmente desafiadora a missão de dar continuidade ao belíssimo trabalho feito pela querida Ministra Luciana Lóssio, primeira mulher a integrar o TSE, na classe dos juristas.

RJC – Quais são os pontos favoráveis e desfavoráveis nos projetos de reforma eleitoral ora em tramitação no Congresso Nacional? Quais seriam as mudanças adequadas ao momento atual? Destaca algum ponto positivo para a democracia brasileira?

MCB – Há vários projetos em tramitação no Congresso Nacional e que procuram aprimorar o sistema político-eleitoral brasileiro. De saída, eu destacaria o projeto do novo Código Eleitoral e de Processo Eleitoral. Trata-se de um trabalho de fôlego, que sistematiza a legislação eleitoral brasileira, padroniza ritos e atualiza nosso atual Código, que é de 1965. Eu também não poderia deixar de registrar que esse é o primeiro Código em nossa história a ser relatado por uma mulher, a Deputada Federal Margarete Coelho (PP-PI). Evidentemente que num trabalho legislativo dessa magnitude há temas que despertam maior controvérsia, mas há ali uma inequívoca tentativa de modernização das normas eleitorais, com a previsão de temas que estão na ordem do dia, tais como como o a proibição do uso de robôs para divulgação artificial e maciça de propaganda eleitoral, a necessária glosa da prática de violência política contra as mulheres, bem assim o estabelecimento de algumas balizas a respeito das candidaturas coletivas.

Outro ponto digno de registro foi a aprovação, pelo Senado Federal, de proposta de emenda constitucional que prevê a reserva de cadeiras para mulheres nas casas legislativas, num percentual que chegará a 30% até o ano de 2038. Muito embora seja largo o tempo de implementação integral da norma (17 anos), trata-se de importante iniciativa para reduzir o agudo déficit de representação feminina no Legislativo brasileiro. O mapa de mulheres na política divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) revela que o Brasil ocupa o constrangedor 142º lugar, numa lista de 193 nações. Estamos atrás, em tema de representação feminina, de países como Etiópia e Arábia Saudita, numa realidade cuja superação se faz urgente.

RJC – Todas as vezes em que se discute a reforma política ou a reforma do sistema eleitoral, esbarra-se no fato de que essa iniciativa cabe ao Congresso Nacional, cujos parlamentares foram eleitos pelo sistema em vigor. Acha factível que os atuais deputados e senadores tenham vontade política para alterar o modelo atual? Quais caminhos devem ser percorridos para que tenhamos mudanças positivas nesse cenário?

MCB – Tenho absoluta confiança em que o Poder Legislativo, que é o Poder constitucionalmente competente para realizar as escolhas políticas atinentes a modelos de sistema político ou eleitoral, atuará com o único propósito de aprimorar e aperfeiçoar as regras do jogo democrático. 

Não me parece que o fato dos parlamentares terem, por força da Carta Política, a competência legislativa para disciplinar as eleições em que eles próprios concorrerão contamine ou comprometa a qualidade das normas por eles produzidas. Fosse assim, jamais teria sido aprovada a chamada “Lei da Ficha Limpa”, lei complementar que atingiu diretamente muitos parlamentares, ao prever novas hipóteses de inelegibilidade e ao ampliar o prazo de inelegibilidades já existentes.

Outro bom exemplo disso é a recente aprovação, tal como disse antes, pelo Senado Federal, da proposta de emenda constitucional que estabelece a reserva de cadeiras nos parlamentos para as mulheres. Dentre 81 Senadores, contamos apenas com 12 mulheres, o que revela que o texto contou com o maciço apoio masculino para sua aprovação. 

Tudo a revelar, portanto, o engajamento dos nossos congressistas no aprimoramento de nossa legislação eleitoral, sem quaisquer desvios de finalidade.

RJC – Para que possam valer já nas próximas eleições, em 2022, as mudanças precisariam ser aprovadas pelo parlamento até outubro. A senhora acha viável que isso ocorra? 

MCB – Nos termos do art. 16 da Constituição da República e do princípio da anualidade eleitoral ali previsto, toda lei que alterar o processo eleitoral precisa ser publicada até um ano antes da realização das eleições, para que possa a ela ser aplicável. Trata-se de dispositivo que visa conferir previsibilidade e segurança às disputas eleitorais, mediante a estabilização, com certa antecedência, das regras que serão aplicáveis a cada disputa.

É possível que não haja tempo suficiente para que o Poder Legislativo forme consenso sobre tudo que ali tramita e que se relacione com o processo eleitoral, mas acredito que algumas questões menos polêmicas e mais amadurecidas possam ser aprovadas a tempo.

RJC – Caso de fato mudanças venham a ser aprovadas, a Justiça Eleitoral teria tempo e recursos (humanos e materiais) suficientes para viabilizá-las até outubro de 2022?

MCB – Isso vai depender muito de qual alteração o Poder Legislativo venha a aprovar e de seu impacto na organização das eleições, mas, seja como for, a Justiça Eleitoral conta com um corpo de servidores de reconhecida dedicação e capacidade técnica, prontos para colocarem em prática, em espírito de total boa-fé, aquilo que vier a ser decidido pelo Parlamento.

RJC – O que de fato se pretende, na sua visão, com a PEC 135/2019? É uma questão jurídica, técnica ou política? Quais são os riscos que a impressão do voto pode trazer ao processo eleitoral? 

MCB – O que pretende a referida proposta é acrescentar ao texto da Constituição da República um dispositivo estabelecendo a obrigatoriedade, no momento da votação, da expedição de cédulas físicas, conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas em urnas indevassáveis, para fins de posterior auditoria.

Trata-se, na minha opinião, de proposta que envolve questões simultaneamente de natureza jurídica, técnica e igualmente política.  

Isso porque, por introduzir um dispositivo no texto da Carta Política, referida proposta naturalmente suscita debates de natureza jurídico constitucional sobre a compatibilidade, ou não, dessa nova previsão com outras garantias constitucionais, tal como, por exemplo, a do sigilo do voto. Para além disso, a implementação do chamado voto auditável, se aprovado, necessariamente também envolverá questões técnicas sobre, por exemplo, modelos de impressoras e formas de apuração que evitem eventuais situações de fraude com as cédulas impressas. Por fim, por envolver a realização de uma escolha parlamentar sobre a melhor forma de realização das eleições, a proposta naturalmente também envolve questões de índole eminentemente política.

RJC – Sob o ponto de vista da democracia, quais são os prós e contras de modelos que vêm sendo discutidos, como o “distritão”, o voto distrital misto e o
semipresidencialismo? Existe um modelo ideal?

MCB – É preciso dizer que não existe modelo eleitoral perfeito ou que seja livre de efeitos colaterais indesejados. Toda modelagem traz prós e contras, de sorte que o grande desafio repousa não na busca por um modelo ideal, mas na correta identificação daquele específico regime institucional que seja mais adequado às realidades políticas e sociais de cada país, uma escolha eminentemente política a ser exercida pelo Poder Legislativo.

O chamado “Distritão” nada mais é do que a adoção do modelo majoritário para as eleições parlamentares. Os mais votados levam as vagas. Se, por um lado, isso elimina aquilo comumente chamado de “efeito do puxador de voto”, que acontece quando o voto dado a um candidato A acaba ajudando a eleger um outro candidato B, por outro lado a implementação de um modelo puramente majoritário para as disputas parlamentares tende a personalizar as eleições, com o consequente enfraquecimento dos partidos políticos, além de dificultar a representação de segmentos sociais importantes, porém minoritários, e de comprometer a possibilidade de surgimento de novas lideranças políticas.

Fala-se também, agora, no chamando “distritão misto”, que seria uma combinação do distritão com o modelo proporcional, de sorte que parte das vagas seria preenchida pelo modelo majoritário e a outra parte pelo sistema proporcional. Se, por um lado, esse modelo misto atenua os efeitos indesejados do distritão, por outro tende a tornar as eleições ainda mais complexas e de difícil compreensão pelo eleitor.

Por fim, está também em debate eventual adoção do semipresidencialismo, em que o Presidente da República eleito escolhe, em acordo com o Parlamento, um primeiro-ministro, com quem dividirá a chefia de governo. Os defensores da proposta sustentam que a estruturação de um governo em parceria com o Congresso conferiria maior governabilidade e estabilidade às relações entre Legislativo e Executivo. Por outro lado, os opositores da ideia sustentam que a fragmentação partidária existente no Parlamento brasileiro pode fazer do semipresidencialismo um regime ainda mais instável politicamente.

Como dito anteriormente, não há modelo livre de críticas. O relevante é a identificação daquele que mais se ajusta à realidade política e institucional de cada nação.

RJC – Qual é sua opinião a respeito da proibição das coligações e da cláusula de desempenho?

MCB – A proibição de coligações para as eleições proporcionais já foi testada nas últimas eleições municipais e o modelo parece ter sido bem recebido pela sociedade e pelos participantes do pleito eleitoral. Esse novo modelo, no entanto, ainda não foi aplicado em eleições gerais, ou seja, para deputados federais e deputados estaduais, o que deve acontecer no pleito do ano que vem. Acho importante aguardar os efeitos desse novo formato nos próximos resultados eleitorais para avaliarmos mais concretamente a relação entre custos e benefícios. Se, por um lado, o fim das coligações para pleitos proporcionais encerra a chamada “sopa de letrinhas” e a mistura completa de ideologias partidárias em torno de uma lista única de candidatos que gerava alguma perplexidade ao eleitor, por outro lado a formação de coligações era o único caminho para que partidos menores e com certa afinidade programática pudessem ultrapassar o quociente eleitoral e conquistar ao menos uma vaga no respectivo Poder Legislativo, o que homenageia a necessária representatividade social. Mais uma vez, percebemos que toda escolha de modelagem traz perdas e ganhos, a serem devidamente sopesados pelo Poder Legislativo.

Já a adoção da chamada cláusula de desempenho foi uma correta iniciativa do Parlamento voltada justamente à redução do cenário de fragmentação partidária, que compromete a governabilidade e dificulta o diálogo institucional entre poderes. 

RJC – O que pensa a respeito das candidaturas coletivas? E das candidaturas avulsas?

MCB – As candidaturas coletivas são uma realidade social e política e uma interessante forma de agregar representatividade aos mandatos. O importante, no entanto, é assegurar a correta informação do eleitor, para que ele esteja certo e seguro sobre para quem exatamente ele está dirigindo seu voto, já que as candidaturas no Brasil são individuais. O projeto de novo Código Eleitoral em tramitação na Câmara dos Deputados traz previsões específicas sobre as candidaturas coletivas, o que confere mais transparência e segurança a essa nova modalidade de se apresentar ao eleitor.

Já as candidaturas avulsas, ou seja, desvinculadas de qualquer partido político, estão em discussão perante o Supremo Tribunal Federal, que já reconheceu existir repercussão geral dessa específica temática. Como toda e qualquer escolha de modelagem eleitoral, há perdas e ganhos com as candidaturas avulsas. Se, por um lado, cogita-se vantagens no fim do monopólio dos partidos políticos em tema de candidaturas, por outro lado teríamos uma fragmentação política ainda maior do que aquela já experimentada atualmente, com agravamento dos problemas de governabilidade.

RJC – Qual é o papel e quais têm sido as ações empreendidas pela Justiça Eleitoral no combate às fake news relacionadas às eleições?

MCB – A Justiça Eleitoral, em geral, e o TSE, em particular, têm desempenhado um relevante papel no combate à desinformação relacionada ao processo eleitoral. Foram criados canais de denúncia, como o aplicativo Pardal, para que o cidadão possa encaminhar com rapidez às autoridades casos de indevida divulgação de notícias falsas, o que gera um importante engajamento da sociedade na busca por um ambiente virtual de informações com o menor número possível de indevidas manipulações. Para além disso, o TSE promoveu relevante Programa de Enfrentamento à Desinformação, que contou com a importante adesão de dezenas de entidades que atuam na temática, veículos de mídia, agências de checagem e dos próprios partidos políticos, que se comprometeram a somar esforços no combate a esse fenômeno. Campanhas de conscientização foram lançadas, como a “Se for fake news, não transmita”, e o TSE ampliou sua participação nas diversas plataformas de mídia social, com uma maior aproximação com a camada mais jovem do eleitorado. Tudo isso, aliado a julgamentos muito céleres quando a temática é objeto de judicialização, revela o compromisso da Justiça Eleitoral no enfrentamento desse problema, que é mundial.

RJC – Ao que se atribui a baixa representatividade das mulheres na política? As cotas serão capazes de ampliar a presença feminina na política até a paridade com os homens?

MCB – São múltiplas as causas do enorme “gender gap” que caracteriza a política brasileira. O alijamento das mulheres das estruturas decisórias das agremiações partidárias é uma delas. A invisibilidade das candidaturas femininas e a realidade de violência política contra as mulheres também são fatores a serem considerados. Já temos em nossa legislação a previsão de cota de candidaturas femininas (30% das listas de candidatos proporcionais precisam contemplar um dos gêneros), mas essa regra tem se mostrado insuficiente para alterar, com a velocidade que se espera, a vergonhosa baixíssima participação política no Brasil. O aparecimento das chamadas candidaturas fictícias (ou mais vulgarmente apelidadas de “candidaturas laranjas”) foi um efeito colateral indesejado, resultante da obrigatoriedade de candidaturas femininas.

Possivelmente dando-se conta de que o arcabouço jurídico constitucional precisa ser aprimorado nessa temática, o Senado Federal, como dito, vem de aprovar a reserva não mais de candidaturas, mas de cadeiras femininas nos Parlamentos, num limite máximo de 30% a ser atingido na fase final de implementação da norma. Caso essa proposta seja igualmente aprovada pela Câmara dos Deputados, teríamos a legítima expectativa de alteração desse estado de coisas ao menos até 2038.

RJC – Mulheres que atuam na política apontam que os partidos somente cumprem a legislação de cotas, mas que na verdade não existe real investimento nas candidaturas femininas. A senhora concorda com este ponto de vista?

MCB – Concordo e o resultado atingido nas eleições de 2018 reforça essa premissa. Isso porque, até então, os partidos políticos, muito embora fossem compelidos a apresentarem ao menos 30% de mulheres em suas listas de candidaturas, não precisavam destinar a elas nem a verba correlata do fundo especial de financiamento de campanha e nem o tempo proporcional de rádio e de televisão. O resultado era um só: candidaturas femininas absolutamente invisibilizadas, que sequer chegavam ao conhecimento do eleitor.

O Tribunal Superior Eleitoral, no entanto, sob a liderança da Ministra Rosa Weber e com posterior chancela do Supremo Tribunal Federal, rompeu esse manto de invisibilidade ao estabelecer, pela via jurisprudencial, que a previsão legal da cota de candidaturas também impunha, como consectário necessário, a destinação, às candidatas mulheres, das verbas do fundo de campanha e do tempo de rádio e de TV correlatos, sempre observado o mínimo de 30%. Com essa iniciativa, a eleição de mulheres para a Câmara dos Deputados em 2018 experimentou um salto de 51%, a reforçar a premissa de que a deliberada falta de estrutura às candidatas mulheres era um dos fatores a causarem a baixíssima representatividade feminina no Parlamento.