“Nosso sistema prisional já não admite inércia”

6 de agosto de 2019

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Coordenadores do Programa Justiça Presente, do CNJ, explicam o esforço interinstitucional para superar a crise do sistema penitenciário nacional

Em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) iniciou uma série de missões para mobilizar os atores sociais e governamentais em torno de medidas para superar o “estado de coisas inconstitucional” do sistema prisional brasileiro. Desde março, a força-tarefa do programa Justiça Presente já aterrissou em todos os estados para começar a elaborar políticas conjuntas para enfrentar os gargalos da execução penal, fortalecer as audiências de custódia e criar alternativas de ressocialização para os egressos, dentre outras iniciativas, customizadas conforme a realidade de cada unidade da Federação (UF).

Para saber mais sobre o progresso do projeto após a primeira rodada de missões, entrevistamos de forma conjunta, com apoio da assessoria do CNJ, o secretário-geral do Conselho, Desembargador Carlos Vieira von Adamek, e os juízes do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), Luís Geraldo Lanfredi (coordenador), Carlos Gustavo Vianna Direito e Márcio da Silva Alexandre.

Confira a entrevista:

O ciclo de visita aos estados foi concluído?

Até o momento, o Justiça Presente fez missões de apresentação do Programa e pactuação com atores locais em 26 unidades da federação (UF). Vale destacar que essas missões, realizadas entre os meses de março e junho, foram precedidas de reuniões com representantes de tribunais das 27 unidades da federação em Brasília em fevereiro. O principal objetivo do CNJ ao trabalhar em conjunto com os atores locais é buscar soluções que sejam adequadas à realidade de cada unidade da Federação, em consonância com os objetivos gerais do Programa, pois sabemos que cada local tem um cenário muito próprio e desafios específicos. Só assim entendemos que é possível construir resultados duradouros que seguirão para além de uma única gestão.

Cada visita foi balizada por planos executivos desenvolvidos para cada UF a partir das conversas entabuladas no CNJ em fevereiro. Com a conclusão das missões, foram registrados encaminhamentos para cada estado que já estão se desdobrando em ações de campo. Esses encaminhamentos estão sendo consolidados, neste momento, em um relatório geral que será usado para fins de acompanhamento pela coordenação geral do Programa. 

Quais foram os principais gargalos encontrados para normalizar a situação no sistema penitenciário?

As dificuldades enfrentadas pelo sistema prisional são conhecidas de longa data, e o Ministro Dias Toffoli, desde que assumiu a presidência do CNJ, não hesita em reconhecê-las, até porque assim o fez quando da apreciação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347. Nessa ocasião, o plenário da Corte Suprema admitiu, pela primeira vez, o ‘estado de coisas inconstitucional’ em que se encontra o sistema prisional brasileiro. Eis, aqui, portanto, o marco jurisprudencial em que se escora o Justiça Presente, cujo compromisso é atacar as reais causas dos problemas de modo a interferir na complexidade de arranjos institucionais e operacionais que são típicos desse contexto, marcado por um desarranjo estrutural absoluto.

Um dos principais problemas identificados na lida com o sistema prisional é a interlocução insuficiente entre Judiciário e Executivo para a construção de soluções estruturadas, lembrando que os dois poderes são responsáveis pela gerência e acompanhamento da execução penal. Neste cenário de pouco diálogo, cada poder aponta problemas que não são seus e a responsabilidade compartilhada gera nenhuma responsabilidade. Por meio do Programa Justiça Presente, a proposta da gestão do Ministro Dias Toffoli para o sistema prisional é não apenas abrir caminho para esse diálogo, como também garantir e incorporar a necessária participação dos demais atores do sistema de Justiça e da sociedade civil.

No campo operacional, os gargalos são muitos, passando pela falta de informações confiáveis, atualizadas e qualificadas sobre o sistema prisional, a falta de transparência, a falta de controle sobre a porta de entrada com muitas prisões desnecessárias que vão contra o interesse público. Dentro das prisões, há falta de políticas de cidadania que tornem o cárcere uma fase preparatória para o retorno ao convívio social, além da falta de uma política consistente para egressos. Essa situação acaba contribuindo para a reincidência, uma vez que essas pessoas não encontram qualquer assistência do Estado ou da própria sociedade para retomarem suas vidas longe do crime.

O protagonismo será do CNJ ou dos atores locais?

O papel tanto do CNJ quanto dos demais parceiros (PNUD, Departamento Penitenciário Nacional/Depen e Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime/UNODC) é atuar no planejamento, na coordenação e apoio das ações do Programa. O protagonismo para a execução das atividades será dos atores locais, sob a indução do Judiciário, pois só com essa internalização de novas práticas na ponta é que poderemos ver uma real transformação do sistema prisional, transformando a letargia que domina esse espaço de ação em atividades e serviços que tenham cabimento e sentido em face de uma proposta de reintegração social efetiva.

Serão medidas gerais nacionalizadas ou haverá customização das atividades conforme as particularidades de cada estado? Poderia exemplificar?

O Programa tem um claro escopo de gerar compromissos e accountability envolvendo nossas atividades, não nos afastaremos disso. É importante mencionar que a atuação do CNJ, na dimensão como estamos agindo, só está sendo possível graças a três termos de execução descentralizada assinados entre CNJ e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, no final de 2018. Nacionalmente, o Programa está estruturado
em quatro eixos de atuação, com entregas e cronogramas bem definidos. Esses eixos envolvem: 1) Combate à superlotação e superpopulação carcerária, 2) Atenção ao sistema socioeducativo, 3) Políticas de cidadania e garantia de direitos, 4) Sistemas informatizados e identificação.

No entanto, sabemos que cada unidade da Federação tem arranjos próprios e que elas estão em estágios diferenciados no âmbito de cada um desses eixos. Um exemplo disso é a questão da informatização de processos por meio do Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU). Adotado como política nacional do CNJ em 2016 para uniformizar e centralizar o controle da execução penal, o SEEU passou a ser obrigatório em todos os tribunais até o final de 2019 (Resolução CNJ 280/2019). Alguns tribunais não tinham qualquer sistema informatizado, outros tinham sistemas próprios, e outros já haviam aderido ao SEEU em outra oportunidade. Estamos trabalhando para o sucesso dessa ação levando essas diferenças em consideração.

De que forma será feito o fortalecimento dos atores locais?

A primeira forma de realizar essa demanda se dá a partir da escuta estratégica. Desde o início do Programa, o CNJ está em constante interlocução com os diversos atores da execução penal em todo o País, e eles têm sido uma valorosa contribuição para a construção das nossas ações. No âmbito do Judiciário, estamos trabalhando para fortalecer cada vez mais os Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, órgãos internos dos tribunais estaduais e federais que são os responsáveis pela implementação das políticas judiciárias penais desenvolvidas pelo CNJ.

Outra ação inovadora do Programa é o envio de 27 coordenadores estaduais a cada unidade da Federação para trabalhar em conjunto com os tribunais na execução das ações do Justiça Presente, com foco em entregas e resultados de curto, médio e longo prazo no contexto do Programa. A principal função dos coordenadores é atuar como facilitadores e articuladores para a construção de pontes duradouras entre os atores locais. Hoje percebemos que os atores raramente conversam de forma geral, o que acaba ocorrendo em situações de emergência, mas que não leva a construção de ações estruturantes. É essa contribuição que queremos deixar.

Quais medidas imediatas o CNJ enxerga como necessárias para superar a crise do sistema prisional brasileiro?

Entendemos que o passo mais urgente é que os agentes de Estado parem de promover o encarceramento como recurso infinito, tolerando que os estabelecimentos prisionais sigam recebendo novas pessoas de forma indefinida. Há muito tempo o sistema prisional passou do limite prudencial para conseguir dar respostas que atendam ao interesse social, no sentido de garantia de uma sociedade mais segura. Esse caos preordenado nos presídios, ao mesmo tempo que passou a significar menos Estado atuando e praticando políticas sociais intramuros, resultou no surgimento das facções que tanto interferem na paz social.

Com a internalização da ideia de que a política penal precisa ser tratada como qualquer outra política pública – com gestão qualificada baseada em evidências e diálogo interinstitucional – conseguiremos nos mover para sair desse quadro. A proposta do Ministro Dias Toffoli com o Programa Justiça Presente é justamente trazer luz a essa discussão, reunindo evidências agregadas em nível local, regional e nacional que auxiliem atores chave a tomarem decisões mais qualificadas para a melhoria da performance do sistema como um todo. É difícil gerir algo que não se conhece, e esse desconhecimento abre caminho para achismos e soluções improvisadas que nem sempre são as mais efetivas.

Em que escala persiste a situação dos presos com pena vencida?

A situação ainda é grave, não apenas em relação a penas vencidas, mas sobre qualquer atividade de acompanhamento da evolução dos processos de execução penal. Para se ter uma ideia, hoje não sabemos ao certo sequer quantos processos de execução penal existem no Brasil, mas estimamos algo entre 1,5 milhão e dois milhões. Por mais que o Judiciário brasileiro seja capilarizado e ativo, assim como a rede dos demais atores do Sistema de Justiça, não há recursos humanos possíveis que deem conta do acompanhamento adequado de cada caso, dando cumprimento efetivo à ideia de individualização da pena. Os desafios são enormes e esbarram em questões difíceis como a própria disponibilidade orçamentária do Estado para melhorar a oferta de serviços. No entanto, esperamos que ações propostas pelo Programa, como a melhoria de fluxos e rotinas judiciárias, ações de ponta mais efetivas, maior articulação de atores para resolver problemas conjuntos e uso de tecnologia consigam trazer melhorias visíveis já em curto e médio prazo.

As condições de trabalho dos internos estão sendo observadas?

O terceiro eixo do Programa, dedicado a ações de cidadania e garantia de direitos, irá trabalhar diretamente com a questão da inserção laboral dentro e fora dos presídios. Embora a oferta de trabalho aos internos seja uma ação articulada pelo Executivo, o Judiciário tem um papel importante no monitoramento e fiscalização para a garantia do cumprimento de penas dignas e que preparem o cidadão para a volta ao convívio social. Trabalharemos de forma articulada para chegarmos a modelos em que os atores colaborem para que o trabalho dentro dos presídios e também para que os egressos sejam contemplados com oportunidades dignas, lembrando que hoje apenas 18% dos presos trabalham. Isso ocorre menos pela falta de vontade dos presos de trabalhar, uma vez que além da renda o trabalho contribui com a redução da pena, do que pela falha do Estado em oferecer estruturas adequadas para esse fim.

Quais medidas estão sendo/poderão ser tomadas para facilitar a incorporação dos egressos ao mercado de trabalho?

Garantir que os egressos tenham condições de retomar a vida em sociedade por meio de acesso a oportunidades de trabalho é uma preocupação antiga no CNJ, concretizada ainda em 2009 com o lançamento do Programa Começar de Novo. Hoje temos um quadro difuso de políticas de atenção ao egresso, com cada unidade da federação agindo segundo arranjos locais, sendo que em alguns casos não há qualquer política em andamento. Em 2016, o CNJ lançou a ideia do Escritório Social, um arranjo em que Judiciário e Executivo se aliam para o encaminhamento qualificado do egresso a uma ampla rede de atendimento, o que inclui pontes para oportunidades de trabalho. Agora, o Justiça Presente trabalha para a ampliação e consolidação do Escritório Social em todo o País, levando em consideração diferentes modelagens possíveis que atendem às necessidades e possibilidades locais.  Além disso, estamos articulando diversas parcerias que serão úteis nesse sentido, tanto em escala nacional quanto em escala local.

Foi particularizada em algum momento a situação das mulheres mães de filhos de até 12 anos que ainda compõem a população carcerária, mas que deveria estar cumprindo pena em prisão domiciliar?

As questões de gênero e raça são tão importantes no escopo do Programa que estão sendo tratadas de forma transversal em todas nossas ações. A questão de gênero é indiscutivelmente grave quando olhamos a explosão da população encarcerada feminina nos últimos anos. Nesse sentido, nossa proposta não é reinventar a roda, mas sim fazer valer institutos já definidos quanto a essa temática, como por exemplo, o cumprimento à Lei nº 13.769/2019 e ao comando que decorre do Habeas Corpus coletivo nº 143.641 do STF. Diversas ações do Programa convergem para esse objetivo, desde as atividades do Eixo 1 relativas a uma melhor qualificação da porta de entrada evitando prisões preventivas em desacordo com o HC, até à automatização do acompanhamento do processo de execução penal por meio do SEEU. O sistema já tem campos para indicação de quando a apenada é mãe para que os prazos sejam calculados de forma diferenciada em cumprimento à lei.

  

O que mais há para dizer sobre o Programa?

O Justiça Presente nasceu de esforço interinstitucional inédito a partir do entendimento comum de que nosso sistema prisional caminha para a estagnação, com efeitos ainda desconhecidos para o agravamento do quadro de violência crônica que vivemos no País. Ao longo dos anos, ações pontuais para reverter esse quadro se mostraram insuficientes considerando o tamanho do esforço necessário para superar a inércia de um sistema que não devolve cidadãos melhores à sociedade.

Nesse sentido, o Justiça Presente surge para propor uma nova metodologia de ação com articulação de atores em rede para tratar todos os gargalos da execução penal de forma simultânea. Objetivos que parecem ambiciosos em um primeiro momento nada mais são que a concretização de uma forma de agir bastante linear – em uma analogia simples, sabemos que não adianta consertar só o motor, ou só o acelerador, quando todo o carro apresenta problemas graves que o impedem de andar. Se tudo não for resolvido de forma simultânea e com um nível de qualidade satisfatório, esse carro jamais sairá do lugar.

Nosso sistema prisional já não admite inércias – precisamos galgar novo patamar se quisermos manter o grau de civilidade almejado por um estado democrático de direito que promove garantias mínimas aos seus cidadãos, em especial aqueles que estão sob sua custódia.