O assédio no ambiente de trabalho sob a perspectiva de gênero*

2 de agosto de 2023

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O silêncio é o que permite que as pessoas sofram sem remédio, o que permite que as mentiras e hipocrisias cresçam e floresçam, que os crimes passem impunes. 

Se nossas vozes são aspectos essenciais de nossa humanidade, ser privado de voz é ser desumanizado ou excluído da sua humanidade. E a história do silêncio é central na história das mulheres. (Rebecca Solnit, em “A mãe de todas as perguntas”).

O direito do trabalho no qual se abriga a discussão sobre assédio é gestado na assimetria entre o capital e o trabalho e está assentado numa relação igualmente assimétrica de poder que é intrínseca a todo contrato de trabalho.

Nesta relação, o trabalhar – oferta contratual de uma das partes – consiste na entrega da força de trabalho, na entrega de si mesmo e está inafastavelmente ligada à condição humana e, portanto, à dignidade do trabalhador.

Consiste num ramo do Direito cujo razão de ser decorre do reconhecimento da existência de um desnível entre os contratantes, no qual um deles entrega a si mesmo, o que demanda a necessidade de tutela.

E quem constrói e construiu até aqui nas normas deste respaldo jurídico? Homens, brancos e de determinada classe social.

Embora a entrega da força de trabalho como elemento contratual esteja presente em diversos pactos laborais, a proteção legal oriunda do Direito do Trabalho se destina apenas ao trabalhador e a trabalhadora que detém um contrato de trabalho formal – deixando de lado o universo dos informais.

Segundo a pesquisa Pnad Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no segundo trimestre de 2022, 40% dos trabalhadores brasileiros estavam no mercado informal, ou seja, “vendendo” a sua força de trabalho, sem nenhum direito trabalhista ou previdenciário.

É importante fixar: o Direito do Trabalho existe para equilibrar assimetrias em que uma das partes está legalmente na condição de subordinado, mas não tutela todos os que trabalham. Ademais, o Direito do Trabalho institui um espaço oficial e aceitável para a outorga da proteção legal, de modo a rechaçar o que não tenha sido previsto para ser protegido.

O assédio é uma conduta abusiva que se dá preponderantemente no ambiente da subordinação, o que faz do contrato de trabalho um território fértil para seu desenvolvimento. Estatisticamente, as mulheres compõem o maior universo de vítimas de assédio, exatamente porque ocupam em maior número os cargos com maior carga de subordinação, além de por questões estruturais terem menos acesso a qualificações.

Feitas tais considerações, como enfrentar o assédio sob a perspectiva de gênero?

Temos usado a prática de pretender que a vítima assediada, que se encontra no último elo da cadeia de agressão, reaja corajosamente contra o abuso. E, contando com depoimentos de outras trabalhadoras e trabalhadores, vença a demanda. Isto não é impossível, mas o nível de sucumbências na matéria vem demonstrando que o caminho não tem se mostrado eficaz para abater a política do assédio contra mulheres.

Como exigir que a trabalhadora faça uma denúncia formal pelos canais competentes da empresa?

Ao mesmo tempo, a reiterada improcedência de ações reforça o argumento de que as mulheres mentem, exageram e são ardilosas, o que concorre para o agravamento da discriminação estrutural que se estão submetidas. Minha proposta, baseada numa compreensão sob a perspectiva de gênero, a partir do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ); dos fundamentos que embasam o Projeto de Lei no 1.852/2023, de iniciativa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará); dentre outros instrumentos, é que se considere a demanda não do ponto de vista individual, mas sim focando no caráter estrutural da questão da violência contra a mulher no ambiente de trabalho.

Ou, como é possível concorrer para a redução de um processo estrutural de perpetuação da desigualdade com relação a mulher a partir de caminhos que enfrenta a questão sob a perspectiva estrutural?

Desmantelar hierarquias – Portanto, enquanto as mulheres estiverem ocupadas na base da cadeia de subordinação, mais subordinadas que todos aos quadros do poder, ocupando postos de menor expressão no cenário decisório, a desigualdade permanecerá. 

Logo, dentre as medidas de reação é imprescindível que as mulheres ocupem cada vez mais cargos superiores e decisórios. E, neste ponto, mostra-se necessária a quebra de hierarquização entre homens e mulheres, e não apenas a garantia da igualdade jurídica. 

Violência de gênero, portanto é aquela que ocorre em razão de desigualdades estruturais de gênero. E estas, as desigualdades estruturais, como obstáculos que são, precisam ser atacadas. Enquanto as mulheres estiverem sub-representadas nas esferas de poder, o olhar feminino não adentra nas estruturas decisórias 

Retrato desta situação: O Brasil ocupa a 134a posição (de 193 nações) no ranking de representatividade feminina no parlamento, segundo o Mapa Mulheres na Política 2019, um relatório da Organização das Nações Unidas e da União Interparlamentar. Em 2022, 27 senadores foram eleitos e apenas quatro são mulheres. Na Câmara, 513 deputados foram eleitos, mas apenas 91 são mulheres.

No Judiciário não é diferente. A despeito da população feminina ser superior a masculina, apenas 38% da magistratura é feminina. E nos tribunais superiores a sub representação é ainda mais aguda. Dos 90 cargos de ministros nos tribunais superiores, apenas 19,6% são ocupados por mulheres. 

Na esfera privada segundo os Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil (IBGE), as mulheres representam mais da metade da população brasileira, mas são minoria até mesmo nos cargos gerenciais (37,4%) e, de forma geral, ganham 77% do rendimento dos homens.

Se o assédio a mulher se encontra fundado nas relações de subordinação e estas decorrem da estrutura social e de poder em que vivemos, que instrumentos dispomos para alteração este quadro? Ou como é possível enfrentar a questão do assédio sob a perspectiva de gênero?

Insisto que se mostra importante termos um viés coletivo, social deste enfrentamento. Não podemos pensar que a mulher negra, sozinha, dentro da fábrica vá lograr êxito solo, se nós aqui, neste ambiente confortável, não nos dermos as mãos e nos dispusermos, enquanto pessoas do mundo do trabalho, a participar desse processo de ruptura estrutural.

É necessário estabelecermos práticas de enfren­­tamento para este tipo de violência. Pois existe uma estrutura social hierárquica que molda o Direito do Trabalho que, como vimos, veio para intermediar e propor soluções de afastamento da desigualdade. Então, se como advogados e advogadas trabalhistas que somos não nos dispusermos a enfrentar esta estrutura, estaremos fazendo de conta de advogamos.

É importante registrar que a desigualdade de gênero apresenta outros marcadores sociais agravantes como raça, classe, escolaridade, origem, etnia, deficiência, idade, identidade de gênero e sexualidade, num processo de discriminação múltipla, numa sobreposição de opressões e discriminações (interseccionalidade).

A opressão de gênero não é única nem homogênea. E nem se apresenta de igual modo para todas as mulheres. Há marcadores sociais e estereótipos que são agravantes. A mulher branca é discriminada como a rainha do lar, papel em que a força física é inimaginável, mas a empregada doméstica negra, que recebe por transferência o encargo de cuidar do lar onde a outra é rainha, é considerada como detentora de uma força humana que a faz capaz de realizar serviços brutos que jamais seriam determinados a mulher branca patroa – a rainha. Portanto, há marcadores que se cruzam como a raça e a classe social.

Dado: Estudo de 2019 indica que dentre as empregadas domésticas, 92% são mulheres e 63% são mulheres negras. Além disso, é notável a predominância de baixa escolaridade e pertencimento a famílias de baixa renda neste universo.

Formas estruturais de opressão – A divisão sexual do trabalho é uma construção social que atribui por gênero papéis diferentes de trabalho. À mulher são destinados trabalhos reprodutivos; ao homem são reservadas tarefas produtivas. Mas o que é trabalho produtivo e reprodutivo? O trabalho produtivo resulta em bens ou serviços que têm valor de troca no capitalismo e são, portanto, compensados na forma de um salário. Já o trabalho reprodutivo está associado à esfera privada e envolve o valor de uso.

Nesta divisão sexista do trabalho: mulheres supostamente têm aptidão para tarefas de passividade, trabalho de cuidado, usam a emoção em detrimento da razão, esfera privada, são domésticas, enfermeiras, cuidadores, professoras; homens têm mais força, estão destinados a tarefas produtivas, agressividade, trabalho remunerado, racionalidade e neutralidade. Trata-se de estereótipos de gênero que reproduzem forma de violência e dominação.

Como enfrentar para desconstruir este arcabouço discriminatório?

Do ponto de vista legal, dispomos dos mais variados instrumentos. A Constituição Federal estabelece o primado do trabalho como base da ordem social (art. 193), e inaugura seu pórtico com a dicção de que a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa constituem fundamentos da república (art. 1o) e no art. 7o traz o conjunto da tutela mínima do trabalhador.

Temos a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) aniversariante, que com o seu caráter conceitual nos oferece diversos dispositivos (e quem diz que a CLT está velha não conhece a jovem senhora). O parágrafo único do art. 3o proíbe distinções relativas às espécies de emprego e à condição do trabalhador, entre o trabalho intelectual, técnico e manual; o art. 461 conceitua trabalho de igual valor, proibindo expressamente a distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade; o art. 9o constitui cláusula de proteção contra fraude aos dispositivos consolidados e o art. 483 assegura a possibilidade de rescisão contratual nas hipóteses de abuso ali elencadas.

As normas internacionais de direitos humanos trabalhistas compõem este elenco protetivo normativo. E, muito importante e pouco utilizado, diversos instrumentos que permitem invocar controle de convencionalidade.

Temos as normas do CNJ como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero,  iniciativa destinada ao enfrentamento à violência contra as mulheres e ao Incentivo à participação feminina no Poder Judiciário.

Neste ponto faço destaque para os considerandos do Protocolo que se propõe a ser um guia para que os julgamentos que ocorram nos diversos âmbitos da Justiça possam ser aqueles que realizem o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas, de modo que o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos.

No documento, há demonstração de que em verdade vivemos entre hierarquias estruturais e que há uma relação de poder entre os gêneros. Significa que no mundo real desigualdades são frutos não do tratamento diferenciado entre indivíduos e grupos, mas, sim, da existência de hierarquias estruturais. 

Temos o Conselho Federal da OAB enviando projeto de lei para inserir incluir o assédio como infração ético-disciplinar, prática punível até com o afastamento, cujo texto sobre o assédio contra mulheres advogadas no âmbito do Sistema OAB foi precedido de um excelente trabalho de fundamentação. 

Pois bem, temos um arcabouço normativo de alta qualidade. É preciso transforma-lo em ações que concorram para alteração do quadro de desigualdade que concorre para o assédio. Apresento propostas de postura e informação ao que exercem a advocacia trabalhista para enfrentamento do assédio sobre a perspectiva de gênero.

Propostas:

Aprofundar o conhecimento sobre desigualdades estruturais;

Fornecer ao magistrado visões concretas dessa desigualdade – demonstrar o quanto há de racismo e sexismo ao encarar uma testemunha negra, de chinela, vestida com uma roupa que lhe exponha o dorso – geralmente considerada como incapaz de contar-lhe a verdade em comparação ao depoimento de um homem de gravata, que ocupe um cargo de chefia;

Fazer afirmações inclusivas ao longo do processo possibilitando que o magistrado ou a magistrada sejam levados a refletir sobre a desigualdade estrutural que permeia o próprio processo;

Demonstrar e destacar a condição humana da parte – juntar fotos do trabalhador e da trabalhadora em um ambiente familiar, de modo a acordar na mente do magistrado que por trás daquele número existe um ser humano;

Mostrar a mulher trabalhadora exercendo suas atividades domésticas de modo a ressaltar a dupla responsabilidade, a dupla jornada, e com isso sensibilizar para o maior excesso de stress a que é submetida;

Demonstrar quando houver filhos pequenos e como precisa agir a mulher quando suas crianças adoecem;

Exibir a rotina da empregada antes de ir ao trabalho, que horas acorda, quem prepara o almoço da família;

Evidenciar que a mulher desempenha a dupla jornada de trabalho;

Postular indenizações por dano moral usando parâmetros salariais da empresa e não da própria empregada (que estatisticamente percebe 30% a menos que os homens);

Mostrar imagens do local de trabalho, das máquinas operando, o que tem o poder de trazer o mundo real ao processo;

Garantir que a vítima não será exposta;

Considerando que as práticas de assédio se desenvolvem numa relação assimétrica de poder, indagar sobre o organograma da empresa e identificar quem – homem ou mulher – ocupa os cargos de direção;

Utilizar tratados e convenções internacionais na fundamentação das peças processuais (e neste ponto destaco uma certa subutilização das convenções internacionais de direitos humanos trabalhistas e a pouca arguição do controle de convencionalidade);

Considerar que pela Convenção Americana de Direitos Humanos é dever do juiz compatibilizar as normas internas com os tratados internacionais de Direitos Humanos. Diz o Comitê Sobre a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW): “Revisem as regras sobre o ônus da prova, a fim de assegurar a igualdade entre as partes, em todos os campos nos quais as relações de poder privem as mulheres da oportunidade de um tratamento justo de seus casos pelo judiciário”;

Requerer redistribuição do ônus da prova e consideração do depoimento pessoal como prova indireta considerando que o assédio é uma atitude clandestina;

Investigar qual o tempo médio de um contrato de trabalho feminino e o congênere masculino;

Esclarecer  quanto tempo durou a permanência das mulheres que pariram no curso do contrato de trabalho;

Trazer aos autos a reprodução do ambiente de trabalho – distribuição de cargos, números de mulheres em postos diretivos, tempo de contratos masculinos e femininos de forma a demonstrar a política da empresa quanto às mulheres.

Enfim, refletir o direito em um contexto de modo a demonstrar que desigualdades estruturais têm relevância na controvérsia, que a sociedade impõe mais horas de trabalho às mulheres porque tem mais afazeres do que o seu parceiro, que lhes destina postos de trabalho com menor qualificação.

Com tais sugestões, convido todas e todos a olhar para o nosso próprio trabalho como libertador, capaz de concorrer para uma sociedade mais justa em que a dignidade da mulher seja respeitada. Isto somente ocorrerá com a quebra da hierarquia estrutural que confina mulheres na base do processo decisório, na posição mais baixa do encadeamento da subordinação. 

  • * Versão adaptada da palestra proferida no evento “CLT 80 anos: Passado, presente e futuro”, promovido pela Associação da Advocacia Trabalhista do Estado do Pará, no Auditório do Tribunal Regional do Trabalho da 8a Região, em Belém do Pará, em 19 de maio de 2023.

Notas__________________________________

1 Vide os intensos debates acerca da tutela dos trabalhadores em plataformas digitais.

2 Baixa representatividade de brasileiras na política se reflete na Câmara, https://www.camara.leg.br/noticias/554554-baixa-representatividade-de-brasileiras-na-politica-se-reflete-na-camara/, acesso 6/6/2023.

3 TSE Mulheres, https://www.justicaeleitoral.jus.br/tse-mulheres/#estatisticas, acesso em 6/6/2023.

4 CNJ, “Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário”. Brasília, 2019.

5 IBGE. “Estatística de gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil”. 2a edição, 2021, https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/genero/20163-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html?=&t=o-que-e, acesso em 6/6/2023.

6 IPEA. “Os desafios do passado no trabalho doméstico do Século XXI: Reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD Contínua”. Brasília, 2021.