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O controle da recuperação judicial pelo Poder Judiciário

10 de março de 2017

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Marcus ViniciusO Superior Tribunal de Justiça, a quem compete a última palavra na interpretação da lei federal e a uniformização da jurisprudência nacional, decidiu em recente julgamento ser possível o controle judicial da legalidade do plano de recuperação judicial aprovado em assembleia geral de credores.

Nos autos do Recurso Especial no 1.532.943, estava sob discussão a aprovação de plano de recuperação judicial que possuía cláusula prevendo a supressão de todas as garantias fidessujussórias e reais então constituídas em prol dos credores, sem a especificação dos anuentes. Ao homologar o plano, o juiz singular ressalvou a validade da cláusula apenas aos credores que votaram por sua aprovação na assembleia geral, excepcionando os que não compareceram e os que, presentes, ou se abstiveram ou se opuseram à cláusula. De acordo com o magistrado, a Lei no 11.101/05 “buscou proteger as garantias, tornando-se ineficaz qualquer cláusula de extensão da novação”, com base nos seus artigos 49,§1o, e 591.

O entendimento do juiz de primeiro grau foi mantido pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso em acórdão desafiado pelo recurso especial das empresas recuperandas, interposto com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional. Sustentava-se, em suma, que os débitos até então garantidos não mais subsistiam devido à novação levada a efeito pela aprovação e que ao Poder Judiciário não competia adentrar o mérito de plano de recuperação judicial aprovado em assembleia geral de credores, pelo que restariam feridos os artigos 49, §§1o e 2o, 50, §1o e 59 da Lei no 11.101/052.

O artigo 58 da Lei no 11.101, que regula recuperação judicial, extrajudicial e falência do empresário e da sociedade empresária, preceitua que, se cumpridas as exigências legais, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano tenha sido aprovado pela assembleia de credores3. A primeira vista, a ideia central do dispositivo é atribuir aos credores a responsabilidade primária nas decisões sobre a recuperação judicial, a um por estar em jogo seu próprio patrimônio e, a dois, por não serem as consequências do plano e os níveis da renúncia um problema jurídico.

Antes da promulgação da Lei n° 11.101/2005, os procedimentos de recuperação judicial eram regulamentados pelo Decreto-Lei 7.661/45, cujo objetivo era garantir o pagamento completo dos débitos em vez de estimular a recuperação do insolvente. Assim, a antiga Lei de Falência e de Concordata concentrava os poderes decisórios no Poder Judiciário. Com a nova legislação, privilegiou-se a participação ativa dos credores com o intuito de incrementar os resultados do plano e evitar fraudes. Para tanto, a nova Lei de Falências conferiu maior autonomia aos credores e maior poder à Assembleia, diminuindo assim o papel dos juízes, que deveriam intervir menos sobre as decisões tomadas pelos credores.

Contudo, o caput do artigo 58 da Lei no 11.101 ressalva que o plano será aprovado caso “cumpridas as exigências desta Lei”. Assim, abre-se a porta para que o Poder Judiciário realize o controle de legalidade da recuperação judicial, com a autorização para intervir em sua aprovação caso observe o descumprimento das condições legais impostas. Este é o entendimento majoritário da doutrina. Embora seja a Assembleia soberana, não sendo o Ministério Público ou o Poder Judiciário competente para adentrar o mérito do plano, “o juiz exerce o controle de legalidade ou legitimidade das deliberações da Assembleia, não um controle de mérito. As deliberações da Assembleia não precisam ser motivadas, sendo tomadas de acordo com critérios de conveniência ou oportunidade”4.

No Recurso Especial n° 1.532.943, a Terceira Turma do Tribunal da Cidadania assentou que a análise de legalidade não implica a análise da viabilidade econômica da empresa e tampouco fere a soberania da assembleia geral de credores em aprovar a recuperação, ao entendimento de que o controle realizado pelo Poder Judiciário orienta-se pela validade das manifestações de vontade e pela licitude das providências adotadas, observando-se o cumprimento das normas necessárias.

O voto do relator, i. Ministro Marco Aurélio Bellizze, soube diferenciar com exatidão as funções exercidas pela assembleia geral de credores, a quem competiria “analisar, a um só tempo, a viabilidade econômica da empresa, assim como da consecução da proposta apresentada”, enquanto o Judiciário trataria da “validade das manifestações expendidas e, naturalmente, preservar os efeitos legais das normas que se revelarem cogentes”. Se verificadas irregularidades, o magistrado encontraria respaldo para intervir. Partindo da possibilidade do controle judicial em tese, o Ministro debruçou-se sobre o caso concreto para afastar a restrição imposta pelas instâncias precedentes.

De acordo com o Relator, acompanhado pelos Ministros Moura Ribeiro e Paulo de Tarso Sanseverino, a cláusula de supressão de todas as garantias fidejussórias e reais prevista no plano de recuperação judicial fora devidamente legitimada na assembleia geral, pelo que vincularia todos os credores titulares de tais garantias. O artigo 49, §2o, da Lei teria o condão de autorizar o plano de recuperação judicial dispor sobre as garantias de modo diverso das condições inicialmente contratadas, substituindo ou até mesmo extinguindo as garantias ajustadas em primeiro lugar. Vez que a cláusula foi aprovada sem qualquer ressalva pela assembleia, atendendo-se ao quórum previsto no artigo 45 da Lei, “tem-se absolutamente descabido restringir a supressão das garantias reais e fidejussórias. Se todos os credores fizeram-se presentes mediante as respectivas classes, anuíram com o plano de recuperação judicial aprovado.

Restou vencido o Ministro João Otávio de Noronha, para quem a cláusula seria contrária ao que prevê a legislação de regência e orientação jurisprudencial consolidada. A partir do princípio da preservação da empresa e da segurança jurídica, manteve a ressalva feita pelo Tribunal de Justiça estadual sob o argumento de que “o aplicador do Direito deve estar atento à finalidade da norma e assegurar a máxima efetividade da tutela do interesse por meio dela regulada”. In casu, não haveria fundamento jurídico para um plano de recuperação de empresa que previsse a supressão de todas as garantias dos credores.

A divergência, portanto, instaurou-se em relação à legalidade da cláusula aprovada pela Assembleia Geral, mas havendo convergência no escopo de atuação do Poder Judiciário na recuperação judicial: descumprimento dos requisitos legais.

Idêntica foi a decisão da Quarta Turma do Tribunal, acolhendo por unanimidade voto do Ministro Luís Felipe Salomão no Recurso Especial no 1.359.311 que desproveu o apelo interposto com fundamento na inviabilidade financeira do plano de recuperação. Para o i. Relator, o controle de legalidade do plano de recuperação judicial aborda a fraude ou o abuso de direito, mas não a viabilidade econômica. O magistrado não teria a expertise necessária para rever plano já submetido ao crivo positivo dos credores em assembleia. As projeções de sucesso da empreitada e os graus de tolerância obrigacional recíproca entre credores e devedores não seriam questões propriamente jurídicas, devendo quedar-se na seara negocial e econômica da recuperação judicial.

O entendimento firmado no REsp no1.532.943/MT está alinhado à Lei n° 11.101, cujo artigo 75 consagrou a vocação da recuperação “à satisfação dos interesses dos credores (…) mediante a preservação e otimização dos bens, ativos e recurso produtivos do devedor insolvente”. Assim, o papel do juiz na concessão da recuperação judicial deve limitar-se ao controle de legalidade dos atos, não adentrando no mérito, uma vez que os credores, principais interessados, devem gozar da maior autonomia negocial possível.

 

Notas________________________

1 Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

§ 1o Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso.

§ 2o As obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial.

Art. 59. O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1o do art. 50 desta Lei.

2 § 1o Na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia.

3 Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembléia-geral de credores na forma do art. 45 desta Lei.

4 FRANÇA, Erasmo Valladão A. e N. Da assembleia-geral de credores. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes (coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: lei 11.101/2005. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.