O Direito na encruzilhada

2 de agosto de 2023

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Seminário de Verão da Universidade de Coimbra debate temas urgentes como a defesa da democracia, as mudanças climáticas, a judicialização da saúde e o superendividamento

As ideias que circulam em Coimbra sempre tiveram forte influência sobre o pensamento jurídico no Brasil. Primeira universidade da língua portuguesa e até hoje uma das mais respeitadas no mundo, formou desde o Século XIII incontáveis gerações de nossos juristas, intelectuais e cientistas. Tradição que continua viva com a forte de presença de brasileiros na Universidade de Coimbra (cerca de cinco mil, num total de 25 mil alunos) e também com a realização, sempre na primeira semana de julho, do consagrado Seminário de Verão, evento da comunidade jurídica luso-brasileira que chegou à 28a edição, este ano com o tema “O Direito na encruzilhada”.

No contexto de um mundo abalado pela pandemia, guerra, crises econômicas, aquecimento global e agravamento das desigualdades, o Seminário promoveu o compartilhamento de importantes reflexões entre magistrados, juristas e acadêmicos sobre questões urgentes do Direito, como a defesa da democracia, as mudanças climáticas, a segurança alimentar, a judicialização da saúde e o superendividamento.

Os debates contaram com a participação, dentre outras autoridades brasileiras, do Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, André Mendonça e Ricardo Lewandowski (aposentado); além de 16 dos 33 ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – incluindo o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luis Felipe Salomão, o Diretor-Geral da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), Ministro Mauro Campbell Marques, e o decano da Corte, Ministro João Otávio de Noronha.

“Chegamos a uma encruzilhada. O modelo de mundo que construímos, o modelo de globalização vigente tem que ser equacionado, porque faliu. Nossa principal responsabilidade enquanto membros da academia portuguesa e brasileira, enquanto magistrados dos dois lados do Atlântico, é pensar, refletir com serenidade sobre o que falhou e quais conclusões podemos tirar para tornar cada vez mais imperativa e urgente a ação das decisões políticas ao nível global”, disse à Revista JC o Vice-Reitor para Relações Externas da Universidade de Coimbra, professor João Nuno Calvão.

“É sempre também um momento importante de networking, essa governança em rede, sem a qual não conseguimos amplificar e comparar nossos saberes”, acrescentou Calvão, que preside a Associação das Universidades de Língua Portuguesa e é vice-presidente da Associação de Estudos Europeus de Coimbra, entidade que promove o Seminário de Verão em parceria com o Instituto de Pesquisa e Estudos Jurídicos Avançados (Ipeja).

“Estarmos na XVIII edição demonstra o sucesso do evento, que começou muito pequeno, com uma grande intenção de integração, mas com uma logística muito precária. Hoje com a globalização conseguimos congregar bem palestrantes, magistrados e juristas de ambos os países e às vezes também de outros da Europa, debatendo em Portugal temas tão relevantes. Precisamos dessa troca de informações e de conhecimento”, disse em entrevista à Revista a fundadora e Diretora-Executiva do Ipeja, Cristiane Brito Chaves Frota.

Defesa da democracia – “Democracia é sempre um projeto, um vir a ser. Isso se faz acompanhar de um preço. A experiência histórica demonstra que a frustração das promessas democráticas provoca a migração de alguns cidadãos ao grupo dos que detratam o regime democrático”, disse o Ministro Gilmar Mendes, em palestra sobre “Democracia e o papel do Supremo Tribunal Federal”.

O magistrado ressaltou que o “ovo da serpente” se alimenta do ressentimento popular com a replicação das estruturas da desigualdade social na representação política, o que tem sido amplificado por estratégias de desinformação e radicalização política que deformam o debate público. Ele usou como exemplo o escândalo no caso do Brexit, envolvendo a Cambridge Analytica, no qual, por meio da violação em massa de dados dos usuários do Facebook, foi ativado um mecanismo de propaganda política centrado em microtargeting, que identifica medos e ressentimentos dos eleitores, para influenciar o debate sobre a saída do Reino Unido da União Europeia.

Foi nesse contexto global, segundo o Ministro Gilmar Mendes, que no Brasil o STF tornou-se alvo preferencial do assédio populista autoritário, ao qual se somou um componente doméstico: “Em dado momento tivemos segmentos do próprio Judiciário atacando o Supremo. O problema do processo penal passou a ser o STF, que de quando em vez ousava conceder um habeas corpus, depois de um ritual de passagem por todos os demais tribunais. Éramos os alvos dessa irritação”, alfinetou o decano do Supremo, que acrescentou: “Decidir contra a Lava Jato virou como decidir contra a Constituição”.

Para o Ministro Gilmar Mendes, porém, a atuação marcante do Supremo e a autocrítica feita pelo Tribunal em relação à “avalanche trazida pela jurisprudência punitivista de Curitiba” foi fundamental para recolocar o País no rumo democrático. Contribuição à democracia à qual se somam, segundo ele, a atuação do Tribunal durante a pandemia de covid-19 e a instauração do inquérito das fake news.

“Não consigo pensar, com esses longos anos de experiência e de vida pública, que a própria democracia tivesse sobrevivido não fosse esse inquérito, também os seus desdobramentos, mas fundamentalmente essa decisão e, claro, a escolha do Ministro Alexandre de Moraes, que com seu conhecimento da investigação criminal e do processo criminal pode dar efetividade àquilo que está disposto no art. 43 do nosso regimento interno. Ouso até mesmo, caro Presidente Rodrigo Pacheco, dizer que talvez devêssemos colocar hoje em letras maiúsculas, em algum texto legal, essa competência que está no art. 43, talvez com seus desenvolvimentos e consectários, para que essa competência fique muito assente como algo fundamental para a defesa da democracia”, propôs o Ministro Gilmar Mendes.

Bode na sala – “O Ministro Gilmar Mendes de fato tem razão, a ruptura democrática teve um caminho muito claro de cogitação, preparação e execução. Só não foi consumada porque havia nas posições de poder e nas instituições à frente delas homens e mulheres conscientes do dever cívico de evitar que isso acontecesse. Infelizmente, essa realidade nos impõe a responsabilidade de reconhecer que a democracia no Brasil não pode ficar à mercê do voluntarismo ou da capacidade individual de pessoas que no seu tempo e recorte histórico sejam responsáveis por mantê-la”, concordou o Senador Rodrigo Pacheco no painel seguinte, sobre “Democracia e o papel do Congresso Nacional. Para ele, Congresso e Judiciário devem assumir a responsabilidade de criar uma “engrenagem em defesa da democracia” independente da vontade individual e localizada para a contenção da ruptura democrática.

Sobre o papel já desempenhado pelo Congresso Nacional, nos últimos, em defesa da democracia, o parlamentar destacou a substituição da Lei de Segurança Nacional (Lei no 7.170/1983) pela Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei no 14.197/2021), que alterou o Código Penal com a inserção de tipos penais específicos contra atentados à democracia. “Não fosse esse movimento do Congresso Nacional, diga-se de passagem votado no Senado no dia em que houve desfile de tanques de guerra na Esplanada dos Ministérios, não teríamos no ordenamento jurídico tipos penais capazes de punir na devida proporção aqueles que atentaram contra a democracia no Brasil, aqueles que foram para porta do Supremo e jogaram fogos de artifício contra o Tribunal, aqueles que foram para as mídias sociais atacar de todas as formas, seja do ponto de vista pessoal ou institucional, ministros da Corte e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)”, pontuou Pacheco.

O senador destacou ainda a defesa veemente do processo eleitoral e da lisura das urnas eletrônicas: “Rechaçamos a possibilidade do bode na sala colocado pelos antidemocráticos com o chamado voto impresso, instante no qual o papel do Congresso Nacional também foi fundamental para a consolidação do movimento contra a antidemocracia”.

Superendividamento – No painel que debateu “Dependência financeira e endividamento”, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva assim sintetizou a discussão: “Vivemos numa época em que o consumidor é assediado de várias formas, chamadas telefônicas, mensagens, há um assédio de consumo muito grande, que leva muitas vezes a escolhas erradas. É por isso que no Brasil há pouco tempo foi atualizado o Código de Defesa do Consumidor (CDC), procurando impedir esse assédio de consumo, favorecer a educação financeira, criar mecanismos que previnam o superendividamento e que garantam que o consumidor tenha uma saída possível”.

O Ministro Cueva recordou que a chamada Lei do Superendividamento (Lei no 14.181/2021), que atualizou o CDC, resulta do trabalho coordenado pelo Ministro do STJ Herman Benjamin, aprovada após longo debate sobre as formas de prevenir o superendividamento, facilitar a renegociação das dívidas e promover a educação financeira adequada do consumidor.

Coordenador do grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que reúne 22 representantes de instituições financeiras, associações de defesa do consumidor, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público e de outras entidades para analisar a Lei do Superendividamento, o Ministro do STJ Marco Aurélio Buzzi falou sobre a próxima tarefa do grupo, agora encarregado de coordenar a criação de núcleos para negociação do superendividamento, cujas primeiras unidades já estão atuando dentro dos Centros Judiciais de Solução Consensual de Conflitos (Cejuscs).

Mudanças climáticas e sintropia – No painel “Prevenção, adaptação, mitigação e preparação perante as alterações climáticas”, o Ministro Mauro Campbell Marques falou sobre a importância dos países de fato se comprometerem com as metas do Acordo de Paris, que molda os esforços globais para mitigar as mudanças climáticas e promover a cooperação internacional em apoio aos países em desenvolvimento.

Membro do Conselho Editorial da Revista JC, Campbell Marques salientou que a proteção ambiental e a exploração sustentável na região devem levar em consideração a “sustentabilidade no homem da Amazônia” e a redução das desigualdades sociais. “De nada adiantará aumentar o mercado de créditos de carbono se ele se tornar um acumulador de riquezas, que favoreçam os latifundiários da Amazônia e não o homem comum”, disse o ministro em sua palestra, tendo acrescentado em entrevista: “Se formos preservar o que já seria obrigação deles preservar e remunerá-los por isso, vamos concentrar renda nas mãos de pouquíssimas pessoas e, necessariamente, a imensa maioria da população amazônica não será ouvida e não haverá efeito positivo algum”.

Como exemplo positivo de preservação ambiental sem a exclusão do pequeno agricultor, o Ministro
Campbell Marques apresentou em sua palestra o conceito de agricultura sintrópica, desenvolvida por Ernst Gotsch. Estabelecido desde o começo da década de 1980 numa fazenda cacaueira no Sul da Bahia, o pesquisador suíço propõe a restauração do ambiente natural por meio da associação do plantio agrícola com a regeneração dos ecossistemas. “A ideia desse novo sistema de plantio é trabalhar com a natureza e não contra ela. O pesquisador reluta em criar áreas de preservação que excluam o ser humano do ecossistema a ser preservado. Propõe em seu lugar que sejam criadas áreas de inclusão permanente, com simbiótico respeito ao homem e aos ecossistemas naturais”, destacou o magistrado.

Ponderação e autocontenção – No mesmo painel, o Ministro Gurgel de Farias reforçou a importância do estabelecimento de uma governança global voltada à redução dos gases de efeito estufa, baseada em estudos científicos sérios, como os que são conduzidos no âmbito da Organização das Nações Unidas, para evitar mudanças climáticas extremas, mitigar seus efeitos e adaptar-se às mesmas.

O magistrado apresentou precedentes do STJ relacionados à litigância climática que, segundo ele, reforçam a importância da autocontenção do Poder Judiciário em relação ao tema, prestigiando o trabalho das agências reguladoras e permitindo que a Administração Pública trabalhe “sem tanta intervenção”. Defendeu ainda a necessária ponderação das decisões judiciais relacionadas ao tema: “Temos que ter toda a responsabilidade com o meio ambiente, mas com o cuidado de não inviabilizar as atividades econômicas essenciais”.

No mesmo sentido, o professor do IBMEC, da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e do programa de pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Rodrigo Fux defendeu a utilização dos acordos substitutivos de sanção nos processos judiciais relacionados à preservação ambiental: “Na existência ou na iminência de um dano, de ofício ou a requerimento da autoridade ou agência reguladora, a Administração Pública convoca o particular infrator ou na iminência de se tornar um infrator para, ao invés de sancioná-lo a qualquer preço ou qualquer custo, sugerir e acordar que ele deva adotar providências em prol da sociedade, da coletividade e da sustentabilidade. É uma espécie de trade off inteligente que a Administração Pública, à luz da Constituição Federal, do princípio da eficiência e também da economicidade, outorga essa possibilidade ao particular”.

Pesquisas judiciais – No painel “Sociedade da informação e as pesquisas judiciais”, o Presidente do Conselho Editorial da Revista JC, Ministro Luis Felipe Salomão, apresentou uma visão panorâmica sobre uma série de levantamentos que o Centro de Pesquisas Judiciais da Associação dos Magistrados do Brasil (CPJ/AMB) e o Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (CIAPJ/FGV) têm realizado para identificar e analisar os principais temas que impactam o Poder Judiciário.

“As pesquisas judiciais agregam muito a esse debate. Temos que estabelecer a cultura de só adotar políticas públicas e providências quando tivermos certeza do experimento que estamos tratando. Aplicar e despender recursos sem ter certeza não funciona bem. É preciso primeiro fechar o diagnóstico para depois decidir o tratamento, não o inverso. Cada vez que possamos num seminário apresentar algumas pesquisas e verificar o quanto elas podem ser utilizadas para a aplicação de políticas públicas, teremos uma ferramenta a mais para que o Poder Judiciário possa ter eficiência e reconhecimento da sociedade em que ele atua”, comentou o Corregedor Nacional de Justiça.

“O tema ‘Direito na encruzilhada’ exatamente marca o ponto em que temos muitos caminhos a seguir. Para escolher bem esses caminhos precisamos ter informações, daí a relevância das pesquisas judiciais. Fazemos isso para sair do passado, em que tomávamos as decisões sem ter informações concretas, sem ter dados, apenas com a experiência, a intuição e uma grande dose de achismo. Hoje isso não mais é possível, temos que tomar decisões e prospectar novos rumos a partir do que está acontecendo”, acrescentou o Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Elton Leme, coordenador adjunto do CIAP/FGV e um dos coordenadores científicos do Seminário de Verão.

Uma das pesquisas mencionadas, sobre os processos judiciais relacionados às fake news, foi apresentada com mais detalhes pela Juíza Federal do Tribunal Regional Federal da 2a Região (TRF2) Caroline Tauk, que coordena o CPJ/AMB. O levantamento identificou cerca de três mil decisões judiciais relacionadas à desinformação na Justiça brasileira entre 2019 e 2022, dentre as quais foram analisadas cerca de 300 que tramitaram nos tribunais superiores. A pesquisa verificou que a maior parte desses processos tinha como autores ou réus os partidos políticos ou os próprios políticos. “Chegamos à conclusão bem evidente no sentido de que as fake news no Brasil estão eminentemente vinculadas ao contexto político e eleitoral”, comentou a magistrada.

Judicialização da saúde – Para apresentar um panorama da evolução da judicialização relacionada à saúde no Brasil, o Ministro André Mendonça trouxe números consolidados pela Advocacia-Geral da União até 2021, quando as decisões judiciais relacionadas aos processos desta natureza teriam obrigado a União a desembolsar R$ 2 bilhões para atender as demandas de 5.700 pacientes. Do total, R$ 1,5 bilhão foi gasto com apenas seis medicamentos, um deles ao custo de R$ 19 milhões por dose, o que equivale a 31 mil diárias de unidade de terapia intensiva no Sistema Único de Saúde (SUS).

“Não existe, salvo melhor juízo das informações disponíveis, sistema no mundo em que o custeio desses medicamentos seja feito pelo Estado. Nenhum país do mundo. O que nos chega de informação, sem comprovação, é verdade, é que em alguma medida o Brasil é feito de laboratório para esses novos medicamentos, porque o próprio Estado custeia os primeiros anos de ingresso dos medicamentos”, apontou o Ministro André Mendonça.

O magistrado também alertou para os efeitos da falta de atualização da tabela do SUS nos últimos 20 anos, e diagnosticou por fim: “Os custos são cada vez mais elevados e o custeio das políticas junto aos agentes parceiros, principalmente os hospitais que atendem o SUS, não é correspondentemente atendido. Vivemos até mais do que uma encruzilhada, vivemos uma necessidade de tirar um ótimo sistema do risco de colapso”.

No mesmo painel, o Ministro do STJ Paulo Dias de Moura Ribeiro acrescentou que o Direito estará sempre “na encruzilhada” diante das lacunas legislativas existentes em matéria de saúde pública e saúde suplementar. “De uma forma ou de outra, estamos na Segunda Seção tentando humanizar o capital, buscando que o capital tenha um bom perfume, seja humanista e tenha alma”, comentou o magistrado, que deu como exemplo o precedente sobre criopreservação de óvulos de mulheres submetidas ao tratamento contra o câncer, relatado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. “O primeiro voto dele a esse respeito foi maravilhoso, de alta dignidade e cidadania. Assim temos nos comportado a esse respeito, permitindo a criopreservação, embora não haja contrato nesse sentido, mas preservando a vida que virá.”

Medidas protetivas – No painel “Medidas protetivas: critérios, efeitos e duração”, o Ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca observou que tanto a Constituição brasileira quanto a portuguesa anunciam um Estado Democrático de Direito, o que vislumbra a consagração de valores que vêm desde a antiguidade, consolidados no tripé igualdade-liberdade-fraternidade. “Digo isso porque o Brasil chegou a elaborar, em 2006, uma legislação que viesse como ação afirmativa, para colocar um segmento vulnerável que eram as mulheres na perspectiva da igualdade, na decisão referente à Lei Maria da Penha (ADC no 19), o Ministro-poeta Ayres Britto anunciou a ruptura do constitucionalismo liberal pelo constitucionalismo fraternal”, comentou o magistrado, que defende que as questões de direitos humanos sejam tratadas na perspectiva de um constitucionalismo global, que respeita a soberania dos países, mas que estabelece uma reserva ética e principiológica que independe da nacionalidade.

Para o ministro, o arcabouço de toda a legislação brasileira relacionada à proteção dos vulneráveis “está na trilha de um movimento mundial da humanidade no sentido de valorização das medidas protetivas como ação afirmativa; de articulação do sistema de Justiça com a rede de atendimento às vítimas; (…) da criação de tipos penais específicos; e do exame com celeridade e desburocratização”.

No mesmo painel, o professor da Faculdade de Direito da UERJ e juiz federal aposentado do TRF2 Marcus Lívio Gomes demonstrou que o contexto da violência doméstica contra as mulheres no Brasil ainda é dramático. Com dados do Atlas da Violência de 2020, mostrou que a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11%, enquanto a de mulheres negras aumentou 12,4% nos últimos 15 anos. O que revela outra característica do feminicídio: as vítimas em sua maioria são jovens, pobres, negras, da periferia e com baixa escolaridade.

“Essas são as mulheres que mais sofrem, as mulheres abandonadas pelo Estado. O Fórum Nacional de Segurança Pública revelou que apenas no primeiro semestre de 2022, 700 mulheres foram vítimas de feminicídio. Isso significa que, em média, quatro mulheres foram mortas por dia pelo simples fato de serem mulheres. O Fórum divulgou também que os registros de estupro e estupro de vulneráveis com vítimas do sexo feminino tiveram crescimento de 12% no primeiro semestre de 2022, um total de 29 mil vítimas, o que significa que a cada nove minutos uma mulher será estuprada. É a realidade brasileira”, lamentou.

Ex-secretário especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ, Gomes avaliou que o Conselho tem políticas judiciárias nacionais consistentes de enfrentamento à violência doméstica contra a mulher, como a recente adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, para evitar a revitimização e a estigmatização das mulheres durante a instrução processual. Essas medidas, contudo, ainda não são suficientes para dar efetividade às medidas protetivas.

“A realidade é que a carência de estruturas da Defensoria Pública do Brasil, a inação do Poder Executivo – são os prefeitos e governadores os atores que devem fornecer toda essa estrutura técnica – a ausência de leitura sistêmica da legislação e a falta de capacitação em atuação na perspectiva de gênero comprometem a efetivação desse direito, fazendo com que a proteção efetiva à mulher seja enfraquecida no curso do processo”, observou o professor.

Furto famélico e insignificância – No painel “Do prado ao prato”, que tratou de questões relacionadas à segurança alimentar, com a experiência de quem há 12 anos atua na Terceira Seção do STJ, o Ministro Sebastião Reis tratou a questão da fome sob o aspecto penal, com foco na questão do furto famélico e na conceituação da insignificância. Temas que, segundo ele, tornaram prementes à medida em que atualmente 33 milhões de brasileiros (mais de 16% da população) passam fome todos os dias. “Aquilo que há alguns anos era ocasional e localizado, hoje voltou a tomar proporções assustadoras e muito tristes”, comentou.

O ministro explicou que já houve várias tentativas para fixar parâmetros mais objetivos para reconhecer a insignificância, crimes que não têm grandes consequências e que, em tese, não deveriam provocar o Direito Penal. Lembrou que já houve várias decisões, tanto do STF, quanto do STJ, no sentido de reconhecer a atipicidade do furto famélico. Essas decisões, contudo, muitas vezes esbarram em dilemas como o dos furtos insignificantes praticados por réus com extensa ficha criminal. O que faz com que até então prepondere sempre o caso concreto, “a situação fática que está em apreço”.

Autonomia, independência e ousadia – Na sessão de encerramento do Seminário, o Presidente do TSE, Ministro Alexandre de Moraes, fez veemente defesa da autonomia e das prerrogativas do Judiciário, que em sua opinião deve “lutar de forma intransigente” para garantir a manutenção da sua autonomia, prerrogativas e garantias de independência. “Não se pode admitir de maneira alguma o ataque à independência do Poder Judiciário. Quem ataca a independência do Poder Judiciário ataca a própria democracia. Quem ataca a independência do Poder Judiciário ataca o Estado de Direito”.

O Ministro Alexandre de Moraes defendeu ainda o fortalecimento da cultura dos precedentes no Brasil: “Não é mais justificável que algumas instâncias do Poder Judiciário continuem desrespeitando precedentes dos tribunais superiores. Isso não é independência, é anarquia judicial. O Poder Judiciário é uma pirâmide, assim como o juiz não admite que aqueles destinatários das suas decisões desrespeitem as decisões, deve respeitar a decisão dos tribunais locais, que devem respeitar as dos tribunais superiores, que devem respeitar as decisões do STF, sob pena de desprestígio de todo o Poder Judiciário perante o jurisdicionado. Como duas pessoas em situações absolutamente idênticas, somente por serem julgadas por juízes diferentes, têm soluções diversas nos seus casos? Isso não é justiça, fere de morte o princípio da igualdade”.

Por fim, defendeu que o Judiciário atue com mais ousadia para ser mais efetivo: “Para sair da encruzilhada precisamos inovar, largar algumas velhas tradições e renovar a própria estrutura do Poder Judiciário. Cito como exemplo a divisão em comarcas. Tanto do ponto de vista civil, criminal ou ambiental, isso não existe mais. O meio ambiente não pode ser defendido numa comarca, num município, é regional a defesa. A criminalidade organizada é regionalizada. As questões empresariais e seus reflexos são regionalizados. Principalmente em relação à Justiça Estadual, precisamos ter a coragem de regionalizar, para que a partir dessa regionalização, com varas especializadas, possamos garantir mais segurança jurídica, com aplicação dos precedentes e igualdade nas decisões, e maior celeridade.

Homenageados – A XXVIII edição do Seminário de Verão da Universidade de Coimbra homenageou os ilustres juristas e professores Adriano Moreira (1922 – 2022) e Paulo de Tarso Sanseverino (1959 – 2023), duas ausências sentidas entre os participantes do evento. Renomado estadista português, Moreira destacou-se como estudioso da teoria política e das relações internacionais, com vasta obra publicada. Foi responsável pela introdução, na década de 1950, do “lusotropicalismo” de Gilberto Freyre nos meios universitários portugueses, que teve como principal fruto a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Na política e no Direito Constitucional, foi um dos principais responsáveis pela abolição do Instituto do Indigenato, que impedia a quase totalidade do habitantes das colônias de adquirir a nacionalidade portuguesa; pela promulgação do Código do Trabalho Rural; e pela criação do ensino superior nas então colônias de Angola e Moçambique.

“O professor doutor Adriano Moreira, como homem de Estado e intelectual, não deixou de ser alvo de críticas, como aliás o são todos aqueles que se aventuram a navegar pelas tormentosas águas da ação política e das lides acadêmicas, mas diria com toda convicção que não podem pairar dúvidas quanto ao seu importante legado em ambas as áreas, a intelectual e a política, como atestam suas reflexões sempre corajosamente explicitadas em muitos livros, palestras e conferências”, saudou o Ministro Ricardo Lewandowski.

Juiz de carreira reconhecido por sua competência e talento, Paulo de Tarso Sanseverino era desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul quando foi indicado para o cargo de ministro do STJ em 2010, em vaga destinada a membro dos tribunais estaduais. Dedicou-se com afinco à criação de uma cultura de precedentes na Corte, tendo coordenado o Núcleo de Recursos Repetitivos e a Comissão Gestora de Precedentes. Como docente, lecionou Direito Civil na PUCRS e na Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul, da qual foi diretor, e Responsabilidade Civil nos cursos de pós-graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público e da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

“Gostaria de deixar minha homenagem ao meu ex-colega no Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que era um grande ser humano, uma pessoa não só brilhante do ponto de vista jurídico, mas também do ponto de vista humano, que até o último momento fez questão de trabalhar. No TSE ele era ministro substituto pelo STJ, participando da matéria de propagandas eleitorais, fez questão de continuar julgando, trabalhando, participando das sessões por videoconferência, mostrando todo seu amor ao Poder Judiciário, toda sua competência, amizade e lealdade”, registrou o Ministro Alexandre de Moraes.