O juiz e a morte

8 de setembro de 2019

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Entristeceu-me a notícia da morte do Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Conheci-o bem, enquanto ainda Desembargador do TJ do Rio Grande do Sul e diretor da Escola da Magistratura de lá.

Nada a acrescentar à sua erudição, cultura, proficiência como julgador e como educador. Seu currículo é insuficiente para acolher suas inumeráveis qualidades. Acho mais importante ressaltar outros atributos. Aqueles que, lamentavelmente, nem sempre são observados pela Magistratura. Polidez, afabilidade, candura, empatia, sensibilidade, compaixão, fidalguia.

Como é pobre a personalidade que não consegue conciliar a sofisticação técnica, destino natural de quem estuda, com a simpatia, com a tolerância, com o toque mágico de verdadeiro humanismo. Enfim, com a boa e velha educação de berço, tanta vez sepultada por quem se considera superior a todos os demais.

Isso nunca ocorreu com Ruy Rosado. Conservou-se humilde e atencioso enquanto Ministro. Não se rendeu às pompas e circunstâncias. Tanto que se aposentou muito cedo. Voltou à sua Porto Alegre. Sempre a mesma pessoa. Simples, simpática, sensível. Grande perda para a humanidade, que não tem refil para pessoas assim.

Recorda-me a defesa que Ruy fez perante o STF, no célebre habeas corpus Wandenkolk. Falecera alguns dias antes o Ministro José Júlio de Albuquerque Barros, Barão de Sobral. Observou que no início do julgamento, o magistrado estava na curul do Pretório. À véspera da decisão, “uma intervenção imprevista arrebata-o ao areópago da justiça”.

Pondera que “essa desaparição subitânea de um julgador dentre os julgadores, na hora do julgamento, nos embebe dos sentimentos da igualdade pelo sentimento da morte, mostrando-nos a rapidez, com que, por obra de um minuto no infinito do tempo, os juízes, da majestade do Pretório, onde julgavam, são transportados ao seio da obscura multidão inumerável, que aguarda a sua sentença no último plenário, à barra do supremo tribunal, o verdadeiro, aquele que não erra”.

Ruy Barbosa faz um apelo à humildade dos juízes: “Vosso nome é um nome de empréstimo, um reflexo dessa magistratura invisível, cujo primeiro elo os crentes puseram no céu, os estoicos na consciência, o instinto humano na opinião dos sobreviventes sobre os mortos, dos governados sobre os governantes, dos sentenciados sobre os sentenciadores. Instância passageira na hierarquia desta função soberana, que em vós tem o seu órgão por excelência na terra, julgais hoje sem recursos, para amanhã serdes julgados sem indulgência”.

É um contundente chamado à consciência do julgador. Ele não fugirá ao juízo que vale, aquele irrecorrível, insuscetível de meros embargos de declaração. Não é fácil a missão do juiz ético. Daquele que enxerga a tragédia humana em cada processo, ainda que eletrônico.

Ao comparar Justiça e Morte, Ruy Barbosa deixa lição atualíssima para a Magistratura que nem sempre compreende a seriedade de sua missão e se esquece do consequencialismo. Diz ele: “Eu não conheço duas grandezas tão vizinhas pela sua altitude, tão semelhantes pelas suas lições, tão paralelas na sua eternidade, como estas: a justiça e a morte. Ambas tristes e necessárias, ambas amargas e salvadoras, ambas suaves e terríveis, são como dois cimos de névoa e de luz, que se contemplam nas alturas imaculadas do horizonte. Em vão se agitará derredor dessas duas fatalidades inevitáveis tudo o que é mesquinho e efêmero no homem e na aglomeração social: as misérias da baixeza, da ambição e da crueldade, os apetites dos partidos, os cálculos, as irresponsabilidades e os triunfos dos déspotas, as fraquezas, os interesses e as traições dos intérpretes da lei, sacerdotes infiéis do seu culto, que a renegaram nas crises de provação. Quando muito, lucraram adiar a hora da conta para a hora do desaparecimento, entrar para a expiação pela porta da posteridade”.

Experimentado nas lides forenses, o Conselheiro do Império, o Senador da República, aquele que por duas vezes se ofereceu para presidir o Brasil e foi repudiado por um eleitorado inculto, sabia que a Justiça terrena é sempre imprecisa: “Mas uma incerteza indefinível envolve a região destas probabilidades formidáveis; e o tirano que oprime, não sabe a quantos passos está da terra, que sepulta; o demagogo que pede a iniquidade não mede quantas inalações do ar, que ele empesta, o separam da corrupção, que há de decompô-lo; o juiz, que deixa cair na urna inapelável uma esfera ímpia não pressente quantas palpitações do coração o distanciam da reparação infalível”.

Conflito que Ruy Rosado de Aguiar não enfrentou, pois homem bom, antes de juiz técnico, produziu a boa justiça e legou às novas gerações o paradigma de como deve ser e se portar aquele que se propõe a ser julgador de seus semelhantes.