O papel da advocacia na sociedade brasileira

3 de maio de 2024

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Introdução: as advocacias pública e privada na Constituição – No artigo que escrevi para o livro em homenagem ao Ministro Luís Roberto Barroso,[1] anotei que Diogo de Figueiredo Moreira Neto, dos mais importantes expositores da doutrina da advocacia pública, registrou que “a especialização de funções advocatícias que se vem processando desde há muito tempo no Direito Público brasileiro, alcança sua culminação na Constituição de 1988, com a introdução do Capítulo dedicado às funções essenciais à justiça, não apenas alçando a advocacia “lato sensu” ao patamar constitucional, como definindo seus ramos – o privado e os públicos – em função dos interesses cuja cura lhes são cometidos.”[2]

Assim é que distingue a Constituição os ramos da advocacia: “(1) a advocacia privada, como manifestação genérica, à qual cabe a defesa de todos os tipos de interesses, salvo os reservados privativamente às suas manifestações específicas”, (2) a advocacia pública, que, em sentido largo, pode ser “subdividida em três manifestações específicas:” (2.1) a advocacia da sociedade, o Ministério Público, “cujas funções se voltam à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, (2.2) a advocacia pública, em sentido estrito, ou a advocacia de Estado, “cujas funções se especializam na defesa dos interesses públicos primários e secundários cometidos aos diversos entes estatais, políticos ou administrativos,” e (2.3) a advocacia dos hipossuficientes, ou seja, a Defensoria Pública, “cujas funções se dirigem à defesa dos interesses dos necessitados.”[3]

A advocacia privada e a advocacia pública, estas nas suas três modalidades, são essenciais e indispensáveis à função jurisdicional e à administração da Justiça (CF, artigos 127, 133 e 134).

A Advocacia pública – No mencionado artigo de doutrina que escrevi,[4] anotei que a Constituição de 1988 conferiu aos advogados públicos a representação judicial e a consultoria jurídica das unidades federadas a que se vinculam. Porque desempenham funções essenciais e indispensáveis à Justiça, isto é, funções e atividades que têm por escopo a realização dos valores e princípios constitucionais, com vistas à concretização do Estado Democrático de Direito, os advogados públicos não se limitam a acautelar os exclusivos interesses patrimoniais da União, dos Estados e dos Municípios.

Em resumo, defendem os advogados públicos o interesse público, assim entendido, leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, como o “interesse público resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade e pelo simples fato de o serem, distinguindo-se interesses públicos primários e secundários”.[5]

Os advogados públicos, portanto, advogados de Estado, no desempenho de suas atribuições relativas à representação judicial ou à consultoria jurídica, não se submetem à vontade dos governantes. Submetem-se, sim, à Constituição e à lei.[6]

A Defensoria Pública, seja a Defensoria Pública da União, seja a Defensoria Pública dos Estados, a advocacia dos hipossuficientes, incumbe-se da defesa dos interesses dos necessitados. Convém, no ponto, ressaltar o importante papel das Defensorias no cumprimento de sua missão constitucional, tornando verdade, para os necessitados, o princípio constitucional processual do direito à prestação jurisdicional, que proclama que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” (CF, art. 5º, XXXV). Importante, está-se a ver, o papel da advocacia pública, “lato sensu,” na sociedade brasileira.

A advocacia privada – O advogado, já foi dito, “é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei” (CF, art. 133). E à advocacia privada cabe a defesa de todas as espécies de interesses, salvo os reservados privativamente à advocacia pública. À advocacia privada cabe a defesa, de modo geral, das pessoas físicas e jurídicas de Direito Privado. Acontece que, em alguns casos, por exemplo, casos complexos, costumam entidades de Direito Público contratar, mediante licitação, ou com dispensa desta, nos casos especificados em lei, advogados integrantes da advocacia privada, seja para a defesa propriamente dita, seja como pareceristas. É bem amplo, portanto, o campo de atuação da advocacia privada, seja quanto ao Direito Privado, seja quanto ao Direito Público. Temos, então, os advogados especializados no Direito Criminal, os criminalistas, e os advogados especializados no Direito Privado, Direito Civil, Comercial, Empresarial, Bancário e muitas outras especializações, e no Direito Público, constitucionalistas, eleitoralistas, tributaristas, ambientalistas e por aí vai.

A função social dos advogados é extensa e intensa. José Roberto de Castro Neves, advogado e escritor, escreveu e publicou um livro que deve ser de cabeceira dos advogados. Quando, numa livraria, me deparei com o título do livro, disse eu com meus botões: será mesmo que os advogados salvaram o mundo? É que o livro tem o seguinte título: “Como os Advogados Salvaram o Mundo.” Da leitura sedutora e gratificante do livro de José Roberto verifica-se que os advogados, em todos os grandes momentos da humanidade, marcaram presença.[7]

Miguel Reale Júnior, na apresentação do livro de José Roberto, anota que nele “encontra-se a descrição da saga percorrida por advogados ilustres que, desde a Antiguidade até nossos dias, doaram sua vida a causa dignificantes do ser humano, lutando por sua liberdade de manifestação política, pela possibilidade de resistir à opressão do soberano, pela garantia de livre escolha de uma crença e na luta pelo direito de ser julgado conforme a lei dispõe.” E acrescenta que “José Roberto lembra os momentos em que prevalece a barbárie para depois se descortinar a racionalidade. Fundamental foi a passagem, na Alta Idade Média, dos juízos de Deus, das ordálias, para o culto do direito com a `descoberta` do Corpus Juris Civilis e a fundação das universidades. A história é fértil em mostrar fases de retrocesso à paixão e à violência e de reconquista da racionalidade, sempre por obra dos advogados.”

E os advogados sempre presentes, não como espectadores, mas sim como participantes e protagonistas. Nessa linha, Miguel Reale Júnior registrou, que, “assim, os advogados estão sempre presentes nos principais movimentos emancipadores, seja no campo político como no religioso. Marcam presença na Revolução Protestante; na Revolução Gloriosa; na Revolução Americana; na Revolução Francesa; na luta pela nossa Independência.”

Realmente, desde os primórdios da humanidade, José Roberto de Castro Neves demonstra, no passeio que faz pela História, que a atuação dos advogados é a garantia de nossa liberdade.

Na sociedade brasileira não tem sido diferente a atuação dos advogados. Temos conhecimento de notáveis comportamentos de advogados que, até com o risco da própria vida, deram tudo de si, a fim de tornar eficaz a defesa. É gratificante conhecer esses casos, certo, entretanto, que são inúmeros os advogados que assim procederam e ficaram no anonimato, cujos heroicos modos de proceder não chegaram ao conhecimento do público, atitudes e atos que dignificam a classe dos advogados, a mais nobre de todas as profissões, porque lida ela com a liberdade, a honra, o patrimônio material e moral das pessoas.

René Ariel Dotti, escrevendo sobre “A Missão Social da Advocacia”, anotou que esta “não é somente uma profissão. Ela também é, fundamentalmente, uma missão.” Realmente, a advocacia é, fundamentalmente, uma missão: o advogado, de regra, assumindo os sonhos e, sobretudo, as preocupações e os pesadelos do seu constituinte, busca realizar a Justiça. E porque a justiça dos homens não é infalível, muita vez é árdua e áspera a luta do advogado contra a injustiça. O carma do advogado, portanto, é a luta. Miguel Seabra Fagundes salientava que “o advogado é, por formação, espírito voltado à luta, permanentemente mobilizado contra a injustiça em qualquer de suas formas – a do arbítrio, a da violência, a da demasia no punir, a da iniquidade na repartição da riqueza, a dos privilégios, a das submissões pelo medo, a dos agravos do poderoso sobre o humilde, a da transigência acomodatícia com o crime, a da incompreensão da sociedade para com aqueles a quem ela própria não abriu senão as portas do desespero.”

Em discurso que fiz, como patrono de turma de bacharelandos em Direito, aduzi, invocando Evandro Lins,[8]que o dever maior do advogado, segundo Ruy, é o de, “mesmo nas causas impopulares (…) pleitear para o cliente as garantias legais.” O exemplo maior, segundo Evandro Lins, “é o caso de um famoso advogado francês chamado Lachaud, que enfrentou a impopularidade, inclusive foi apedrejado nas ruas, porque defendia o acusado de um crime que revoltou a opinião pública.” E ele dizia, quando fazia a defesa: “Eu não sou Lachaud, eu sou a defesa, e a defesa é imprescindível para assegurar ao acusado o direito de pleitear as garantias da lei.” Quantas vezes, acrescentou Evandro, o advogado “tem de enfrentar dificuldades, e quando os ódios e as paixões se exaltam, sua presença é muito importante para reclamar as garantias da lei para o acusado. Quando essas paixões se açulam, todos querem a punição sem limite, sem garantia, sem lei, e aí a figura do advogado representa um papel fundamental.”

No regime de terror, 1792-1794, que veio com e após a Revolução Francesa, marcado pela perseguição religiosa e política, guerras civis e execuções na guilhotina, liderada a França pelos jacobinos e entregue o governo ao Comitê de Salvação Pública, não foram poucos os “advogados que arriscaram a vida na defesa dos decaídos, dos vencidos (…)”. É famosa a frase do advogado Berryer diante do tribunal revolucionário: “aqui trago a minha palavra e a minha cabeça. Podeis dispor da segunda, depois de ter ouvido a primeira.” O advogado Malesherbes, que defendeu Luiz XVI com bravura, sofreu “a punição máxima.”

Assim tem sido o papel do advogado no caminhar da humanidade, não sendo diferente tal comportamento na sociedade brasileira. Penso que poderíamos mencionar, como exemplo desse abnegado e heroico modo de agir, um advogado do nosso tempo, Heráclito Sobral Pinto.

Certo é que o advogado, além dos afazeres próprios de sua atividade, quer na advocacia pública, quer na advocacia privada, recebe da lei incumbência maior: a de defender a ordem jurídica nacional, os direitos humanos, a Constituição.

Carlos Mário Filho, que foi Secretário-Geral e Vice-Presidente da OAB do DF, paraninfo de turma de novos advogados, no ato solene do recebimento da carteira da ordem, carteira a que fizeram jus após o Exame da Ordem, deixou bem marcado, no discurso que proferiu, o compromisso dos advogados como defensores dos Direitos Humanos, das instituições públicas e da Constituição, ao proclamar: “Vocês acabam de prestar um juramento exigido pela lei, em que se comprometeram não apenas exercer a advocacia com dignidade, independência e ética. Vocês juraram defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.”

Nessa linha, tem-se orientado a OAB, através do seu Conselho Federal, que teve Levi Carneiro como seu primeiro Presidente. O Conselho Federal da OAB teve, até os dias de hoje, 37 presidentes. O advogado José Alberto Simonetti, que ora o preside, é o seu 38º presidente. Todos os 37 advogados que presidiram a OAB Nacional, e o que ora preside, tiveram e têm comportamento exemplar na defesa das prerrogativas dos advogados e na defesa dos Direitos Humanos, da ordem jurídica, da Constituição e da democracia.

Um pouco de História. Vale recordar a instalação da OAB. Em 9 de março de 1933, realizou-se, no IAB do Rio de Janeiro, relata Aurélio Belém do Espírito Santo, a primeira eleição para a Diretoria do Conselho Federal, aclamado Levi Carneiro como seu primeiro presidente nacional e instalando-se o Conselho Federal com a posse de sua primeira diretoria. Levi foi reeleito, sucessivamente, por três mandatos, consolidando a instalação e a organização da OAB no âmbito nacional e pregando o federalismo da entidade, cujas bases estruturais se mantêm até hoje. É de Aurélio Belém a lembrança de que Levi foi o “homem chamado advocacia”, e a ele devem os advogados a OAB. Não consigo deixar de mencionar a sentença de Levi Carneiro a respeito da minha antiga Casa: “o Supremo Tribunal Federal é a joia das instituições republicanas.”

Vou me referir, em seguida, apenas a um dos advogados que presidiram, em momento dramático da democracia brasileira, o Conselho Federal da OAB, Caio Mário da Silva Pereira. Em seu nome, homenageio a todos os presidentes que o precederam e que o sucederam, ressaltando, mais uma vez, que todos eles tiveram e têm comportamento exemplar na defesa da ordem jurídica e da Constituição.

Em discurso que fiz no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 12 de maio de 2012, homenageando Caio Mário da Silva Pereira, que foi meu professor na Faculdade de Direito da UFMG, na solenidade em que foi oficializada a doação, pela família, à Biblioteca do STJ, de mais de quatro mil volumes de Direito Privado do acervo da biblioteca de Caio Mário, incluindo-se na doação todas as suas obras jurídicas, ressaltei a importância da contribuição de Caio Mário, presidente do Conselho Federal da OAB, na defesa das liberdades públicas e dos Direitos Humanos. Ocorreu, a propósito, episódio marcante, que reafirmou a posição da OAB, pela ação de seu “batonnier”, como a grande representante da sociedade civil na defesa dos direitos fundamentais, dos Direitos Humanos.

Tendo recebido representação de presos políticos, denunciando a prática de tortura a que eles e outros foram submetidos, Caio Mário dirigiu-se, pelo ofício 881-GP, em 26 de novembro de 1975, ao ministro Golbery do Couto e Silva, Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, em que reiterou que ele, ministro Golbery e bem assim o presidente da República, Ernesto Geisel, certamente que “não aprovam tais procedimentos e decerto que ignoram mesmo a sua existência.” E ao encaminhar a representação dos presos políticos, de forma equilibrada, mas com a firmeza que caracterizava os seus atos e atitudes, Caio Mário, depois de expressar a sua discordância, e da OAB, com a prática da tortura por órgãos do Estado, acrescentou: “Eu não entro no mérito dos julgamentos, (…) Mas entendo, Senhor Ministro, que a ação mantenedora da segurança do Estado deve guardar um limite, a meu ver intransponível: o do respeito aos direitos da pessoa humana, que a civilização ocidental levou milênios a proclamar, e que é de origem divina.”

Palavra do advogado, que encontrou acolhimento, à época, trazendo alento aos presos políticos e às suas angustiadas famílias.

Conclusão – O papel da advocacia na sociedade brasileira tem sido marcante e notável. Nenhuma outra profissão teve tão bem reconhecida a atuação superior da advocacia brasileira em prol dos Direitos Humanos, em prol da democracia, através da OAB, representante maior da sociedade civil na defesa da ordem jurídico-constitucional.

A Constituinte de 1987-1988 deixou isso claro ao reconhecer a importância da participação dos advogados no controle concentrado de constitucionalidade, conferindo legitimação ativa ao Conselho Federal da OAB para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade (CF, art.103).

E vamos, os advogados, fiéis ao juramento prestado quando do ingresso na OAB, a pugnar pelo Direito e pela Justiça, pela ordem jurídica e pela Constituição, contribuindo, assim, para fazer mais felizes as pessoas e maior a República.

Vale à pena? “Tudo vale à pena quando a alma não é pequena”, proclamou o poeta maior. É muito grande a alma dos advogados em todo o tempo e em todo lugar.

Notas_________________________________

[1] Velloso, Carlos Mário da Silva, “Advocacia Pública, Primeiro Juiz da Causa do Poder Público e sua Contribuição na Realização da Justiça e do Estado Democrático de Direito”, em “Democracia, Justiça e Cidadania – Desafios e Perspectivas”, em homenagem ao Ministro Luís Roberto Barroso. Coordenadores: Daniel Castro Gomes da Costa, Reynaldo Soares da Fonseca, Sérgio Silveira Banhos e Tarcísio Vieira de Carvalho Neto. Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2020.

[2] Moreira Neto, Diogo de Figueiredo, “A Responsabilidade do Advogado de Estado”, palestra proferida em 31.10.2007, na Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro.

[3] Moreira Neto, Diogo de Figueiredo, ob. e loc. citados.

[4] Velloso, Carlos Mário da Silva, “Procurador Municipal – Teto de Remuneração – Inteligência do art. 37, XI, da Constituição Federal”, em “Tratado de Direito Municipal”, coordenadores: Nascimento, Carlos Valder do, Di Pietro, Maria Sylvia Zanella e Mendes, Gilmar Ferreira, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2018; Revista de Direito Administrativo, FGV, Rio, 2010, p. 245.

[5] Bandeira de Mello, Celso Antônio, “Curso de Direito Administrativo”, Malheiros, 27ª edição, p. 37.

[6] O advogado José Levi Mello do Amaral Júnior, Advogado-Geral da União, não concordou em assinar a ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo governo contra Estados-membros que implantaram o fechamento do comércio e toque de recolher para conter a pandemia da covid-19. Levi se negou a assinar a petição inicial da ação e por esse motivo o STF não admitiu o processamento da ação. Levi Melo do Amaral é advogado público de carreira. Por recusar-se a assinar a inicial da ADI, que se mostrava contrária ao Direito, exonerou-se, em seguida, 29/03/2021, do cargo. Atuação de verdadeiro advogado de Estado.

[7] Castro Neves, José Roberto, “Como os Advogados Salvaram o Mundo, a história da advocacia e sua contribuição para a humanidade”, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2018.

[8] Lins e Silva, Evandro, “O Salão dos Passos Perdidos”, depoimento ao CPDOC, Fundação Getúlio Vargas Editora, ps. 175 e segs.

 

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