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O poder e o saber

20 de julho de 2017

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Antonio Carlos Martins Soares

grande preocupação de Napoleão com a promulgação do célebre Code Napoléon, de 1808, era impedir que em sua aplicação pudessem os juízes alterá-lo por obra da interpretação. Pouco antes disso, logo após a Revolução Francesa de 1879, um decreto aprovado em 1790 obrigava os juízes, em caso de dúvida quanto ao sentido da lei, dirigirem-se ao Legislativo para que este interpretasse o texto legal indicado como duvidoso. Pretendia-se, com isso, evitar que os juízes pudessem alterá-lo, violando, segundo pensavam, o princípio da separação de poderes. Nessa época, foram tantas as consultas ao Legislativo, que o princípio invocado acabou consumando uma nova ameaça ao indigitado princípio da separação dos poderes: ao invés de os juízes se imiscuírem na função dos legisladores, foram estes que se transformaram em juízes, usurpando a função judicante.

Diante disso, ao perceberem o retumbante absurdo, essa regra restou revogada, passando a vigorar com o Código de Napoleão, disposição segundo a qual o juiz fica obrigado a proferir sentença em todos os casos que lhe são submetidos, ainda que a lei apresente obscuridade ou se mostre lacunosa.

De lá para cá, evoluímos para a concepção de que a interpretação não se limita à mera compreensão dos textos e dos fatos. Ela parte da compreensão dos textos normativos e dos fatos, passa pela produção das normas que devem ser ponderadas para a solução da lide e finda com a opção de uma determinada solução, consignada na norma de decisão (EROS GRAU).

Assim, o produto da interpretação é a norma que resulta do processo de construção realizada pela interpretação. Vivemos, hoje, o apogeu da interpretação — tudo se interpreta. O brocardo latino “in claris cessat interpretatio” e a repulsa à interpretação literal constituem, na atualidade, a unanimidade da doutrina. Já entre os nossos clássicos, Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, edição Forense) e Alípio Silveira (Hermenêutica no Direito Brasileiro, edição RT), em obras escritas no início do século passado, apresentam essa modalidade interpretativa como insuficiente e superada.

Por outro lado, para saber se o texto é claro, por si só já se torna imprescindível interpretar a lei, consistindo essa apuração em uma verdadeira operação de hermenêutica.

Fizemos essas considerações introdutórias para demonstrar o escandaloso e intolerável retrocesso que nos ameaça o Projeto de Lei no 280 da autoria do senador R. Calheiros, em sua versão original, e o PLS no 85/17 da relatoria do senador Requião, que pune os crimes de abuso de autoridade, ora em discussão no âmbito do Congresso Nacional.

Diz o texto do projeto, em sua versão original: “§ 1o Constitui abuso de autoridade a interpretação divergente da lei e da jurisprudência dos Tribunais Superiores.”

Após as inúmeras críticas a esse dispositivo, ele restou alterado, passando a contar com a seguinte redação: Art. 1o Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor público ou não, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.

§ 2o A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, necessariamente razoável e fundamentada, não configura, por si só, abuso de autoridade.

Com efeito, a divergência na interpretação da lei ou na avaliação dos fatos e das provas deve ser resolvida com o manejo dos recursos processuais cabíveis e jamais com a criminalização da hermenêutica ou com o atentado às garantias constitucionais dos magistrados e dos membros do Ministério Público.

Mas não é só. Padece, também, da eiva de inconstitucionalidade o disposto no art. 3o do suprarreferido projeto, ao admitir a legitimidade concorrente do ofendido para o exercício da ação penal privada.

Como se sabe, a legitimidade concorrente no nosso sistema processual penal limita-se aos crimes contra a honra. Somente nesses casos é que se admite a legitimidade concorrente da vítima quando há inércia do órgão do Ministério Público (Súmula 714, STF).

Diz a súmula 714 do excelso STF: “É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do Ministério Público, condicionada à representação do ofendido, para a ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas funções”. Frise-se: somente contra a honra de servidor público no exercício de suas funções.

Isso decorre do entendimento segundo o qual à medida que a relevância do bem jurídico tende a diminuir ou aumentar a sua disponibilidade, condiciona-se o exercício da ação à representação do ofendido ou à requisição do ministro da Justiça. Assim, preserva-se o exercício da ação penal privada à iniciativa do ofendido, naqueles casos em que o bem jurídico protegido atinge mais a esfera privada da pessoa, como ocorre nos crimes contra a honra. Ao contrário, nos crimes de abuso de autoridade o bem jurídico tutelado é a garantia regular do funcionamento da administração pública e, portanto, indisponível. Vindo a prevalecer a versão do aludido projeto, estar-se-á desfigurando a disciplina normativa e dogmática desse tipo penal. Basta lembrar a incidência do art. 107 do Código Penal, que prevê, entre outras causas de extinção da punibilidade, a renúncia do direito de queixa, o perdão e a retratação do agente (incisos VI e VI).

Outra consequência desastrosa dessa legitimação concorrente seria a multiplicidade de ações penais deflagradas contra promotores, procuradores e juízes toda vez que a pessoa denunciada ou condenada se sentisse prejudicada. Esse sentimento de repulsa e inconformismo acabaria por minar a segurança e a estabilidade indispensáveis à atuação do Ministério Público e do Judiciário.