“O que se almeja é que as mulheres sejam vistas como face do Judiciário no grau máximo da jurisdição”

3 de março de 2023

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Entrevista com a Ouvidora Nacional da Mulher, Desembargadora Tânia Reckziegel

No balanço de um ano de trabalho à frente da Ouvidoria Nacional da Mulher, a Juíza Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4) Tânia Regina Silva Reckziegel, destaca a criação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, desenvolvido com a participação de todos os segmentos da Justiça. Na entrevista a seguir, a magistrada defende ainda ações objetivas para promover a igualdade de gênero nos órgãos de cúpula e direção do Poder Judiciário, para que as mulheres passem a ser vistas pela população como a “face do Poder Judiciário no grau máximo da jurisdição”.

Revista Justiça & Cidadania – Quais são as atribuições da Ouvidoria Nacional da Mulher e qual é o balanço que a senhora faz de sua gestão à frente do órgão do CNJ, inaugurado em março do ano passado?
Desembargadora Tânia Reckziegel – A Ouvidoria Nacional da Mulher foi instituída pelo Conselho Nacional de Justiça por meio da Portaria nº 33, de 8/2/2022, com atuação no âmbito do Poder Judiciário. Possui competência para receber, tratar e encaminhar às autoridades competentes demandas relacionadas a procedimentos judiciais referentes a atos de violência contra a mulher; prestar informações, receber sugestões, reclamações, denúncias, críticas e elogios sobre a tramitação de procedimentos judiciais relativos à violência contra a mulher, fornecendo orientações sobre a rede de proteção à mulher e outros equipamentos; informar à mulher vítima de violência os direitos a ela conferidos pela legislação; e contribuir para o aprimoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.

Desde março de 2022, foram recebidas 3.088 demandas na Ouvidoria da Mulher. Além da função de canal de comunicação, em parceria com os tribunais, esperamos poder avançar nas pautas referentes aos direitos das mulheres no Poder Judiciário. 

RJC – Desde 2018 está em vigor a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. Em que medida esta política já contribuiu para mudar a histórica defasagem da mulher na Justiça brasileira?
DTR – A Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário foi estabelecida por meio da Resolução CNJ nº 255/2018. De acordo com o normativo, todos os ramos e unidades do Poder Judiciário deverão adotar medidas tendentes a assegurar a igualdade de gênero no ambiente institucional, propondo diretrizes e mecanismos que orientem os órgãos judiciais a atuar para incentivar a participação de mulheres nos cargos de chefia e assessoramento, em bancas de concurso e como expositoras em eventos institucionais.

Os estudos, análise de cenários, eventos de capacitação e diálogo com os tribunais sobre o cumprimento da Resolução CNJ nº 255/2018 também integram a iniciativa. O CNJ atende, ainda, à Recomendação Geral nº 35 do Comitê para Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher e dá mais um passo na garantia do acesso efetivo das vítimas aos tribunais e na resposta a todos os casos de violência de gênero contra as mulheres.

Nesse sentido, temos também a Resolução CNJ nº 254/2018, que institui a Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e tem como um de seus objetivos favorecer o aprimoramento da prestação jurisdicional em casos de violência e familiar. 

A Portaria CNJ nº 27/2021 (instituiu grupo de trabalho) veio a colaborar com a implementação das políticas nacionais estabelecidas pelas Resoluções CNJ nº 254 e nº 255. Com a participação de todos os segmentos da Justiça – estadual, federal, trabalhista, militar e eleitoral – os trabalhos resultaram no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. O Protocolo é mais um instrumento para que seja alcançada a igualdade de gênero, Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), à qual se comprometeram o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça.

RJC – Como está o sistema de Justiça em termos do desenvolvimento de políticas de enfrentamento à violência contra a mulher e de promoção da igualdade de gênero? Há órgãos correlatos à Ouvidoria em quantidade suficiente e com atuação adequada nos diferentes ramos do Poder Judiciário?
DTR – É preciso pontuar que o CNJ, em compasso com o dever do Estado de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e em conformidade com o que preceitua o art. 226, §8º, da Constituição Federal, vem apresentando novas ferramentas para maximizar os resultados no combate à violência contra a mulher e à desigualdade de gênero. O histórico de resoluções, recomendações e ações de conscientização implementadas apresentam resultados efetivos no enfrentamento dessas mazelas. E, agora, soma-se a esse esforço a criação da Ouvidoria Nacional da Mulher, importante mecanismo de escuta e acolhimento de situações de violações dos direitos das mulheres.

A criação da Ouvidoria da Mulher no CNJ representou marco fundamental na política de enfrentamento à violência contra a mulher e na promoção da igualdade de gênero. Conquanto não houvesse normativa determinando a criação de serviço semelhante nos tribunais, em um movimento espontâneo e em decorrência do amadurecimento dessas políticas junto aos tribunais, verificou-se a criação de Ouvidorias da Mulher em diversos órgãos do Poder Judiciário.

Desde logo, a Ouvidoria Nacional da Mulher participou do movimento de fomento à implementação dos serviços, fossem como Ouvidorias da Mulher propriamente ditos, fossem como serviços correlatos. Assim, hoje temos 55 Ouvidorias da Mulher instituída nos tribunais de justiça do País em seus diversos ramos.

RJC – Quais são os principais obstáculos que as mulheres ainda enfrentam para o ingresso, permanência e ascensão aos cargos de poder e decisão na magistratura e nas demais carreiras jurídicas?
DTR – Na realidade, não se verificam obstáculos ao ingresso de mulheres na magistratura, ainda que, em muitos casos, a dupla ou tripla (trabalho/estudo/afazeres domésticos) jornada exija, evidentemente, mais empenho das mulheres, notando-se aparente equidade em primeiro grau de jurisdição, o que se deve aos critérios objetivos para admissão e também na exigência de composição paritária de bancas de concurso, diretriz, aliás, da Resolução CNJ nº 255/2018. Com relação às decisões, a autonomia e independência na prolação de decisões é marcante no Poder Judiciário, independentemente do gênero do seu prolator. 

Finalmente, o que se almeja é o atingimento da igualdade material nos órgãos de cúpula e direção, nas quais, efetivamente, há presença masculina maior, sendo imperioso o desenvolvimento de estratégias e a revisão da Resolução CNJ nº 255/2018 para o estabelecimento de ações objetivas, para que as mulheres sejam vistas não só pelo sistema de Justiça, mas pela população, como face do Poder Judiciário no grau máximo da jurisdição, em afirmação ao Estado Democrático de Direito.

RJC – Quais são os planos para a continuidade do trabalho e as metas para 2023?
DTR – A construção da política de promoção da igualdade de gênero e de enfrentamento à violência contra a mulher é cotidiana. Nesse sentido, vale ressaltar que já há uma série de tribunais indicando a criação de suas Ouvidorias da Mulher e alguns já com data de inauguração marcada para os próximos meses.

E, ainda, num esforço inédito e exemplo de trabalho integrado, reuniram-se, em 15 de fevereiro, as ouvidoras da Mulher do Poder Judiciário e o Colégio de Coordenadores da Mulher em Situação de Violência Doméstica do Poder Judiciário Brasileiro (Cocevid), em encontro conjunto no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Como um dos resultados desse profícuo encontro, destaco a criação do Colégio de Ouvidorias da Mulher do Poder Judiciário, o Cojum, para o qual tive a honra de ser eleita presidente.

Dessa maneira, todo esse conjunto de políticas, programas e ações no âmbito do Poder Judiciário, com destaque para a ampliação e qualificação do atendimento à mulher, por meio de ouvidorias especializadas, segue como prioridade.