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O sistema financeiro imobiliário: Algumas reflexões

30 de novembro de 2007

Membro do Conselho Editorial e Desembargador aposentado do TJERJ

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O redirecionamento do eixo filosófico do direito brasileiro, provocado pelo advento da Constituição Federal de 1988, está nos conduzindo à socialização, deixando para trás o individualismo, característico do Séc. XIX.

Do patrimonialismo exacerbado do Estado Liberal caminhamos em direção à solidariedade social.

O positivismo estrito deu lugar a um direito principiológico, amparado em valores fundamentais, que devem pairar, soberanamente, sobre o texto da lei.

Novos paradigmas, emanados da Carta Magna, passaram a inspirar o direito privado, tornando cada vez mais tênue a velha dicotomia entre o direito público e o privado.

Fácil será compreender o imediato e decisivo impacto que estes novos valores provocaram no mundo dos contratos imobiliários, tão impregnados de densidade social e econômica.

A função social e a boa-fé objetiva passaram a ser cláusulas implícitas em todos os contratos, especialmente os imobiliários, o que permitirá ao Poder Judiciário aferir se eles estão atendendo ao interesse coletivo e se os contratantes estão se conduzindo como se conduziriam homens honestos.
No passado, não muito distante, o mercado de compra e venda de imóveis era regido pelos princípios da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda, levados ao exagero, como verdadeiros dogmas, e era exercido de maneira quase amadorística, sem que houvesse mecanismos eficientes para proteger os construtores e os adquirentes de imóveis.

O Código Bevilacqua, fiel à tradição liberal, pouco interferia na formulação dos contratos imobiliários, e o Estado entendia que seu único dever era o de assegurar a liberdade das partes, no momento da celebração do contrato, como se bastasse ela para garantir seu equilíbrio ético e econômico, o que se revelou, com o tempo, uma das mais perversas falácias.

Muitos empreendimentos imobiliários eram lançados, sem a menor base de sustentação jurídica e econômica, atraindo iludidos compradores, ávidos pela realização do acalentado sonho da casa própria.

No curso da construção, eram as obras abandonadas, surgindo, no perfil urbano, os trágicos “esqueletos”, que eram o mais eloqüente atestado da insegurança jurídica e da falta de uma legislação adequada, capaz de assegurar, o mais possível, o cumprimento dos contratos.

A disciplina do condomínio voluntário, constante do Código Civil passado, era de todo inadequada para os novos tempos de concentração urbana, com a inevitável necessidade de criar novas unidades habitacionais, capazes de absorver a demanda cada vez mais aquecida.

A perversa especulação do solo urbano, cada vez mais inacessível às classes média e pobre, fez surgir o fenômeno da verticalização das cidades, “empilhando” as moradias umas sobre as outras e obrigando as pessoas a viverem confinadas em espaços cada vez menores.

Um novo modelo de condomínio nascia, em planos horizontais, sem uma disciplina jurídica própria, capaz de enfrentar e compor os inevitáveis conflitos que explodiam nestes espaços comuns.

A Lei 4.591/64, que se deve ao gênio criador do mestre Caio Mário, veio mitigar esses problemas, criando, pela vez primeira, instrumentos poderosos para proteger os adquirentes das unidades imobiliárias.

O condomínio, mais tarde denominado edifício, permitiu a coexistência de partes comuns e exclusivas, e foi disciplinado em suas duas fases distintas: a da incorporação, quando lançado e vendido o empreendimento, e a da convivência entre os moradores, depois de entregue e instalado o edifício.
Ao criar a figura do incorporador, tornando-o civil e penalmente responsável pela conclusão do empreendimento, ao tornar obrigatório o registro prévio do memorial descritivo, do contrato de construção e da minuta da Convenção, a Lei 4.591/64 conseguiu enfrentar o desafio e vencê-lo, mitigando os riscos dos negócios e transmitindo confiança ao mercado.

Contudo, o crescimento contínuo e quase incontrolável das cidades, aliado à especulação e ao caos econômico provocado pela inflação, que alcançou patamares apocalípticos, logo tornou a Lei 4.591/64 insuficiente para manter o equilíbrio do mercado.

O problema mais instigante era a obtenção de financiamentos, indispensáveis à realização das obras, e a garantia de seus retornos, com o pagamento pontual dos mútuos concedidos.

Todos sabemos que a ponte que liga a economia ao direito chama-se crédito, e seu pilar de sustentação é sua garantia.

O mecanismo clássico da garantia hipotecária foi se mos-trando cada vez mais inadequado, principalmente em razão da enorme dificuldade em executar o devedor e levar o imóvel à hasta pública, o que, na prática, demanda vários anos, afastando e apavorando os investidores e incorporadores.

A solução da chamada execução extrajudicial, que garantiria a realização rápida dos créditos, para não onerar os demais condôminos, durante a construção, não se revelou tão eficiente, como se supunha, diante de recursos protelatórios, manejados pelos inadimplentes e que sustavam a realização das praças.

Tornou-se indispensável que novos mecanismos de captação de recursos fossem criados, a fim de garantir o fluxo dos capitais necessários para manter o equilíbrio entre a oferta e a demanda de novas unidades, além de proteger todos os segmentos do mercado, incluindo os investidores, incorporadores e compradores.

A garantia da alienação fiduciária, quando estendida aos imóveis, pela Lei 9.514/97, deu novo ânimo ao mercado, facilitando, e muito, o acesso ao crédito, já que o financiador não mais ficava na exasperante dependência da execução hipotecária, quando se tornava o comprador inadimplente, bastando-lhe manejar o interdito de reintegração de posse, ao qual a lei assegurava a concessão de liminar, uma vez atendidos determinados pressupostos.

A velocidade vertiginosa das transformações sociais e econômicas, em pouco tempo, tornou defasada a legislação em que tantas esperanças foram depositadas.

O advento do Código de Defesa do Consumidor e o impacto dos paradigmas da função social do contrato e da boa-fé objetiva, fizeram com que fossem admitidas, em número cada vez maior, ações aparelhadas pelos adquirentes, pugnando pela revisão dos contratos, sob o argumento da lesão ou da onerosidade excessiva.

As teorias revisionistas, alicerçadas todas na velha cláusula rebus sic stantibus, conquistaram seu lugar de destaque na lei consumerista e no novo Código Civil.

Mas não era só isso. Havia muito mais.

Era freqüente que os adquirentes das unidades suspen-
dessem os pagamentos das parcelas do preço, e, o que é dramaticamente pior, das cotas condominiais e do IPTU, enquanto litigavam por anos, mantendo a posse dos imóveis, onerando os demais condôminos e a sociedade como um todo.

Quando, finalmente, ao longo de dolorosa via crucis, as ações se ultimavam, e era julgada improcedente a pretensão, o débito condominial e fiscal era, muitas vezes, superior ao real valor de mercado do imóvel.
Como se não bastasse, essa situação afugentava os possíveis arrematantes, principalmente depois que o artigo 1345 do novo Código Civil passou a responsabilizar o adquirente pelos débitos condominiais existentes antes da alienação.

Continuava também em aberto a torturante questão da falência da construtora ou incorporadora, o que paralisava a obra, para desespero dos compradores. Os recentes episódios que abalaram o mercado imobiliário, com a falência de uma das maiores incorporadoras, são prova eloqüente de que a legislação já não mais atendia às necessidades do mercado, mergulhando-o na falta de credibilidade.

Foi neste quadro desestimulante que adveio, finalmente, a Lei 10.931/04, que trouxe ao sistema novas modalidades de garantias para todos os seus segmentos.

Um de seus objetivos prioritários era o de assegurar, com o fortalecimento da efetividade e da credibilidade do novo sistema financeiro, a manutenção de um fluxo contínuo de capitais, o que é indispensável para atender a uma demanda cada vez mais aquecida.

O mercado não pode mais sobreviver em sístoles e diástoles, ao sabor das conjunturas nacionais e internacionais, e das oscilações das bolsas.
É necessário captar recursos próprios, fazendo circular, com agilidade, os créditos imobiliários, criando um novo mercado financeiro, lastreado em títulos vinculados a imóveis.

A Lei 10.931/04 preencheu as lacunas deixadas pela legislação anterior, criando mecanismos poderosos de garantia a todas as partes envolvidas.
A segurança dos incorporadores passou a repousar no sistema fiduciário e na securitização de seus créditos.

A dos compradores, com a criação, ainda que facultativa, do patrimônio de afetação, que segrega os recursos para o empreendimento, permitindo a sua continuação, pelos condôminos, mesmo diante da falência da construtora. Neste passo, é oportuno lembrar que o criticável caráter facultativo do novo sistema já vem sendo, na prática, superado, já que cada vez mais os agentes financeiros só vêm concedendo financiamentos se adotado a afetação patrimonial.

Finalmente, para os investidores e financiadores, a nova lei, como já se disse, criou um sofisticado sistema de circulação de créditos.
Basta lembrar, a título exemplificativo, a criação das Letras de Crédito Imobiliário (LCI), das Cédulas de Crédito Imobiliário (CCI), das Cédulas de Crédito Bancário, que asseguram os investimentos e a continuação dos fluxos, inserindo o mercado, definitivamente, na economia de primeiro mundo.

Além disso, a Lei 10.931/04 garante a uniformização dos índices e critérios de reajustes, desde que as operações de crédito tenham prazo igual ou superior a 36 meses, e isto foi possível graças à criação da CCI, que é o instrumento que representa créditos vinculados e negócios imobiliários, especialmente os créditos decorrentes de comercialização de unidades imobiliárias.

Com isso, imprime-se celeridade à circulação dos créditos, como se depreende da simples leitura dos artigos 18 a 25 da Lei 10.931/04.
Quanto a este aspecto financeiro, a lei é moderna e se ajusta às necessidades atuais do mercado e às características mais avançadas da tecnologia de negociação e circulação de créditos.

A angústia do tempo não nos permite maior aprofunda-mento no estudo da Lei 10.931/04.

Daí preferir me concentrar nas inovações trazidas pelos seus artigos 49 e 50, que se aplicam às pretensões de revisão dos contratos, e que já se mostram afinados com os princípios de função social e da boa-fé objetiva, evitando os males do passado, já antes referidos.

O art. 49, em muito boa hora, veda a interrupção do pagamento das cotas condominiais e tributos incidentes sobre o imóvel, autorizando, em caso contrário, que o juiz cancele a liminar ou a tutela antecipatória antes concedida.

Já o art. 50 disciplina o depósito judicial das parcelas devidas, distinguindo as partes incontroversas e as que são objeto do conflito.
A simples leitura do dispositivo nos permite perceber, sem maior esforço, que ele se inspirou na pioneira regra do art. 67 da Lei do Inquilinato, ao disciplinar os procedimentos a serem adotados na ação de consignação de aluguéis e acessórios da locação.

Ali, pela primeira vez, autorizou-se o locador-credor a levantar a parte incontroversa do depósito, prosseguindo o feito quanto à controvertida, cabendo ao autor continuar a fazer os depósitos dos aluguéis vincendos, até decisão final de mérito.

Este sistema, já premonitoriamente comprometido com o princípio da efetividade, acabou sendo absorvido pelo Código de Processo Civil, ao tratar da ação consignatória.

Com as devidas adaptações, é o que se pretende agora, com o art. 50, que se aplica às ações judiciais que tenham por objeto obrigação decorrente de empréstimo, financiamento ou alienação imobiliários.

Exige-se, agora, que o autor-comprador discrimine na petição inicial, dentre as obrigações contratuais, aquelas que pretende controverter, quantificando o valor incontroverso, sob pena de inépcia, o que melhor seria dizer de indeferimento.

No que concerne ao valor incontroverso, terá que conti-nuar a ser pago no tempo e modo previstos no contrato.

A suspensão da exigibilidade do valor controvertido dependerá do depósito do montante correspondente, que ficará sujeito a remuneração e atualização nas mesmas condições previstas no contrato.

Neste particular, a Lei 10.931/04 avançou mais que o Código de Processo Civil e a legislação inquilinária, já que, encerrado o feito, a quantia depositada terá tido atualização e rendimento maior do que teria pelos índices aplicados aos depósitos judiciais, sem falar que a própria instituição financeira credora pode vir a receber a parte controvertida.

A grande dúvida, quanto ao bom funcionamento do sistema, está na regra inserida no § 4º do artigo 50, que permite ao juiz dispensar o depósito de que trata o § 2º em caso de relevante razão de direito e risco de dano irreparável ao autor, por decisão fundamentada, na qual serão detalhadas as razões jurídicas e fáticas da ilegitimidade da cobrança no caso concreto.
Trata-se de evidente cláusula aberta, que desafia o prudente arbítrio do julgador e que deve ser “fechada” diante do caso concreto, sem se perder de vista os objetivos saneadores da lei.

Será preciso ter cautela para impedir aventuras judiciais, propostas por adquirentes inadimplentes, e que não se enquadram nos parâmetros da boa-fé objetiva.

O depósito pretendido deve ter um mínimo de razoabilidade, traduzindo a real intenção do autor de cumprir o contrato, na medida do possível.

A justa e necessária proteção da parte mais vulnerável na relação contratual não se confunde com paternalismo, capaz de conduzir a um clima de perigosa insegurança jurídica.

O grande desafio que se põe diante do julgador é o de aplicar os novos paradigmas, especialmente o da função social do contrato, mas sem destruir os valores do passado, e, entre eles, o da sua força obrigatória.

Ainda mais por que não se pode olvidar que, nesses casos, o adquirente conserva a posse do imóvel, o que traduz significativo valor econômico.

Merece elogios o que dispõe o § 5º, que impede a suspensão da liminar da exigibilidade da obrigação principal sob a alegação de compensação com valores pagos a maior, sem o valor integral desta.

Assim se impede que o autor nada pague ou deposite durante o curso da lide, sob a simples alegação que já pagou, anteriormente, mais do que seria o devido, o que, aliás, era bastante comum, sob o império do regime anterior.

O dispositivo se impõe, até porque só se admite a compensação quando se trata de prestações recíprocas, líquidas e exigíveis, o que não seria a hipótese.

Como se vê, as regras salutares dos artigos 49 e 50 da Lei 10.931/04 não colidem, nem de leve, com os princípios constitucionais e, muito menos, com os paradigmas da função social e da boa-fé.

O fortalecimento necessário da teoria revisionista do contrato exige prudência do julgador para evitar o aproveitamento dos que buscam o Judiciário com objetivo de obter vantagem exagerada ou indevida.

Pena é que a construção pretoriana tenha se mostrado ainda vacilante na aplicação das regras dos artigos 49 e 50.

A simples afirmação de que os valores cobrados pelo credor desrespeitam o contrato não é suficiente para caracterizar a necessidade de suspensão da execução, ainda mais quando a inadimplência já é antiga.

No que tange ao depósito judicial do valor que o mutuário considera devido, a jurisprudência mais respeitável, com o objetivo de impedir abusos atentatórios à função teleológica do § 2º, tem exigido que ele seja em patamar razoável.

Também é preciso que se exija do autor a perfeita discriminação da parte que pretende controverter, e da que considera incontroversa, até para que se assegure ao réu o exercício pleno do direito de defesa.

Estamos convencidos de que o depósito em valor razoável e capaz de demonstrar o interesse do mutuário em adimplir a obrigação assumida com o mutuante, constitui exigência necessária para a suspensão da execução e da inscrição no cadastro de inadimplentes.

A densidade social do mercado imobiliário recomenda a maior prudência quanto à solução do conflito entre o mutuante e o mutuário para que não se ponha em risco a sua preservação, em prejuízo de toda a sociedade.

A Lei 10.931/04, como já se disse, trouxe maior segurança e efetividade ao mercado, mas os resultados perseguidos só se produzirão se a construção pretoriana se consolidar segundo seus objetivos.

A manutenção de fluxo de capitais para a construção civil é de transcendental importância, e isso só se alcançará assegurando aos investidores um mínimo de garantia de seus créditos.

Tal como ocorreu durante muitos anos com a legislação inquilinária, não se pode adotar, na regulamentação do mercado imobiliário, uma visão maniqueísta, em que o investidor e o incorporador serão sempre perversos especuladores, e os mutuários e adquirentes, vítimas indefesas.

O que se procurou alcançar com a Lei 10.931/04 é uma composição razoável dos interesses em conflito para se assegurar a preservação e crescimento do mercado.
Seus diversos segmentos contam, agora, com mecanismos de proteção e de defesa, mas que devem ser manejados com os olhos sempre postos na conduta honesta.
É imperioso, ainda, para o êxito do sistema, agilizar a entrega da prestação jurisdicional para impedir que a sentença, pela demora em ser prolatada, perca a sua utilidade, mesmo para a parte vencedora.

Não são raros os casos em que, ao final do processo, o débito do adquirente ultrapasse o valor de mercado do imóvel, o que inviabiliza a execução e a alienação.

Um país que avança em direção a uma sofisticada economia de mercado, que se pretende ser de primeiro mundo, exige uma legislação equilibrada e eficiente, capaz de promover o fortalecimento de seu mercado imobiliário.

A alienação fiduciária, o patrimônio de afetação, a criação das CCIS e os mecanismos de revisão dos contratos, com a garantia da preservação dos pagamentos incontroversos, são indicadores animadores de que estamos no caminho certo.