O superendividamento e o mínimo existencial

3 de novembro de 2022

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A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) entrou com um pedido de concessão de medida liminar no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a integralidade do Decreto no 11.150/2022, que regulamenta “a preservação e o não comprometimento do mínimo existencial para fins de prevenção, tratamento e conciliação de situações de superendividamento”. A Conamp questiona o valor de R$303,00, instituído no decreto assinado pelo presidente da República em julho.

A entidade pede ao STF a suspensão da medida, argumentando que o valor inviabiliza o princípio da dignidade humana, enfraquece o dever fundamental do Estado de proteger o consumidor e prejudica a efetivação dos direitos fundamentais da sociedade. Para a Conamp, o ato normativo ainda dificulta a atuação dos Procons e a realização de medidas conciliatórias de tratamento aos consumidores em situação jurídica de superendividamento, além de ofender a competência do Parlamento.

O Ministério Público, instituição permanente e essencial à Justiça, busca a aplicação das leis promotoras da tutela aos vulneráveis nas mais variadas vertentes e a efetividade dos direitos fundamentais dos consumidores. Além disso, procura administrar, pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública, os direitos assegurados dentro da Constituição Federal.

O fenômeno principal em debate, chamado de superendividamento, atinge toda a civilização em torno do planeta. Cada país possui legislação própria, definida de acordo com seus governos. De uma maneira geral, estar com dívidas automaticamente cria um vínculo com o conceito de crédito. Essa relação é compreensível, pois: “O crédito situa-se no coração do consumo, uma vez que permite a realização imediata de projetos que, do contrário, deveriam ser diferidos ou, na pior hipótese, abandonados. Este instrumento é essencial para seu funcionamento nos três grandes Poderes”.

No Brasil, a Lei no 14.181/2021 (Lei do Superendividamento) é segmentada em quatro módulos: “problematização e investimento público”, “processo legislativo”, “modelos legislativos escolhidos” e “fontes diversas”. Seu formato contém o aproveitamento de diversas experiências tanto internas quanto internacionais: das diretrizes europeias (lealdade, cuidado e transparência), da lei sul-africana de inclusão bancária, da legislação francesa da boa-fé qualificada (dever de cooperação) e do modelo norte-americano (direito de recomeço).

Uma das alegações envolvidas na Lei no 14.181/2021 procura garantir que o consumidor arque com as obrigações sem que haja perdão – contudo, de forma conciliada, responsiva e escalonada. Ou seja, a possibilidade de renegociação da dívida não pode abalar a qualidade de vida, a acessibilidade ao mercado e a possibilidade do consumidor arcar com as principais despesas do dia-a-dia, tais como: alimentação, moradia, vestuário, transporte, higiene e cuidados pessoais.

Hoje, esse valor determinado atinge 25% do salário mínimo (renda para muitas famílias do País) e não corresponde ao mínimo suficiente para a vida de um cidadão. O custo de uma cesta básica, de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), é de R$ 663,29. Ou seja, o básico para sustentar a fome do cidadão equivale a aproximadamente 55% do salário mínimo.

Apesar de toda essa organização, um levantamento realizado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), na conhecida Pesquisa de Endividamento e Inadimplência de Consumidor (PEIC), indicou que o número de brasileiros endividados chegou a 77,7% da população em 2022. Se comparado com os números da mesma pesquisa do ano passado, o aumento de pessoas com endividamento cresceu próximo da casa dos 8% em seis meses. Nesse cenário, as dívidas mais comuns que afetam as famílias são: cartão de crédito (80%), carnês (17%), financiamento de carro (11%), crédito pessoal (10%) e financiamento imobiliário.

Com o nível de endividamento e superendividamento crescendo cada vez mais no País, o decreto guerreado não somente criou mais feridas na segurança jurídica pelos inúmeros vícios que apresenta, como também quebrou as expectativas dos milhões de necessitados que aguardavam por uma resposta.

Por essas ações terem sido tomadas, o Decreto no 11.150/2022 acabou por tarifar a dignidade humana, “obrigando” um valor a ser legitimado como fixo, não podendo ultrapassar os já determinados R$ 303,00. A doutrina é clara em relação à estipulação da limitação:

O princípio da dignidade da pessoa humana compreende o direito de acesso às necessidades materiais básicas de vida – o direito ao mínimo existencial – que, na nossa ordem constitucional, constitui um piso para a justiça social, mas não um teto para a atuação estatal voltada à promoção da igualdade material e dos direitos sociais. A garantia do mínimo existencial é pressuposta para o pleno exercício das liberdades civis e da democracia, mas se justifica por razões autônomas, que independem desses objetivos.

Tendo esses argumentos em vista, a Conamp esclarece seu posicionamento para que, após a concessão do pedido liminar, sejam colhidas as informações de praxe: a manifestação do Advogado-Geral da União e, por fim, o parecer do Procurador-Geral da República. Ao final, em virtude da violação aos preceitos fundamentais mencionados, pede que seja julgada procedente a presente ação, com a retirada do mundo jurídico do inteiro teor do Decreto no 11.150/2022.