Os Poderes na Constituição Brasileira

3 de maio de 2024

Membro do Conselho Editorial / Professor Emérito da Universidade Mackenzie

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A Constituinte foi convocada pelo Presidente José Sarney através do Congresso Nacional, por meio da Emenda n°26, em 1987. O eminente Ministro Moreira Alves presidiu, por dois dias, o Congresso Nacional aberto no mesmo dia e simultaneamente com a Constituinte, sendo assim o único brasileiro, num regime democrático, a presidir quatro Poderes: 1-Poder Judiciário, como Presidente do STF, 2-o Poder Executivo por uma semana, substituindo o Presidente José Sarney, 3-o Poder Legislativo, por dois dias até a eleição do Presidente do Senado, 4–o Poder Constituinte por dois dias até a eleição do Deputado Ulysses Guimarães.

Desde a eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República, em 1985, encerrando o ciclo militar desde 1964, substituído antes da posse por José Sarney, por força dos problemas abdominais que o levaram à morte, não havia mais ambiente no país de continuar-se com o texto imposto pela Emenda Constitucional n°1, em que a predominância do Poder Executivo era tal que os próprios decreto-leis da Presidência só poderiam ser aprovados ou rejeitados pelo Congresso sem admissão de Emendas e o Procurador-Geral da República era o advogado do Presidente e o único com possibilidade de arguir inconstitucionalidades perante o STF.

Desde 1979 crescia o movimento pela redemocratização e para que os três Poderes fossem harmônicos e independentes sem que se admitisse a preponderância de um sobre os outros, como ocorria no regime anterior com inequívoca superioridade do Executivo.

Na OAB Federal e nas seccionais, apoiávamos a redemocratização, tendo eu mesmo sido conselheiro em São Paulo de 1979 a 1984, quando ocupei também a Vice-Presidência do Instituto dos Advogados de São Paulo e a Presidência do Instituto de 1985 a 1986, voltando a ser conselheiro em 1987 da OAB/SP. Nossa luta, que era de todos os brasileiros, era para ter uma Constituição republicana, com o povo definindo os destinos do seu país através de representantes eleitos em eleições claras e sem interferências de qualquer natureza.

Não sem razão teve, o Constituinte, a preocupação de, exaustivamente, definir a competência de cada Poder, sendo o Título IV (artigos 44 a 135) o mais longo para determinar do artigo 44 ao 69 a competência do Poder Legislativo, dos artigos 70 a 75 do Tribunal de Contas, ainda com certa dependência do Congresso, dos artigos 92 a 126 do Poder Judiciário, dos artigos 127 a 132 do Ministério Público e dos artigos 133 a 135 da Advocacia, estas duas Instituições como funções essenciais à administração da justiça.

De certa forma, estabeleceu no preâmbulo os principais princípios a nortearem o Texto Supremo, que entendo serem 20 lá expressos, determinando, pela esmagadora maioria de votos, que a Constituição foi promulgada sob a proteção de Deus – a palavra “laico” não consta do texto constitucional -, e no Título I fixou os alicerces da democracia.

Está o preâmbulo assim redigido: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.”

No artigo primeiro declarou ser o povo o soberano a definir a democracia através de seus representantes em apenas dois Poderes (Executivo e Legislativo), eleitos por voto universal. O dispositivo tem a seguinte dicção:

Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

No artigo segundo, para que não houvesse domínio de um Poder sobre o outro, estabeleceu a harmonia e a independência, que seriam exercidas nos termos das competências definidas no Título IV. No terceiro, explicitou os fundamentos da democracia brasileira à luz do preâmbulo e no quarto a vocação para a paz no plano internacional e a participação em órgãos internacionais. Os artigos foram expressos da seguinte forma:

Art. 2o São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 4o A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I – independência nacional;

II – prevalência dos direitos humanos;

III – autodeterminação dos povos;

IV – não-intervenção;

V – igualdade entre os Estados;

VI – defesa da paz;

VII – solução pacífica dos conflitos;

VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;

IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

X – concessão de asilo político.

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

Os demais títulos são de conformação dos princípios que nortearão o país. No 2o, a enunciação de direitos individuais, sociais, da cidadania, da nacionalidade, eleitorais e políticos; no 3o a definição dos bens e poder federativo das três esferas da federação, assim como dos fundamentos da administração pública; no 5o a defesa das instituições democráticas a cargo das FFAAs e segurança pública.

No 6o definiu o sistema tributário, as finanças públicas e os orçamentos; no 7o a ordem econômica; no 8o a ordem social e no 9o disposições gerais complementadas por um longo Ato Complementar de Disposições Transitórias.

Para que os Poderes fossem harmônicos e independentes, determinou em primeiro lugar as competências do Legislativo, pois lá se tem toda a representação popular (situação e oposição), em 2o lugar o Executivo, por lá só estar a situação e, por último, o Poder Judiciário, que não representa o povo, mas a lei que não faz, pois é elaborada pelos outros Poderes.

A fim de garantir a independência do Poder Legislativo, que é o que garante a democracia, pois onde está 100% da representação popular, estabeleceu o artigo 49, inciso XI que: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XI – zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”.

Cabe, pois, ao Congresso não permitir que sua competência legislativa seja invadida pelos Poderes Executivo e Judiciário.

Entendo, “data máxima vênia” do STF que a única forma possível de zelar, vedando a invasão de sua competência normativa é o decreto legislativo enunciado no artigo 59, inciso VI, assim redigido: “O processo legislativo compreende a elaboração de: (…) VI – decretos legislativos”.

A própria competência do Executivo para editar medidas provisórias e leis delegadas é uma competência dependente de aprovação posterior pelo Congresso nas medidas provisórias e de autorização anterior para as leis delegadas.

Mesmo nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, §2o), em que o Congresso é omisso de forma inconstitucional, declarou o Constituinte que caberia ao Congresso elaborar a lei e não ao Supremo, estando o artigo assim disposto:

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:

§ 2o Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.

Como se percebe, o Poder Judiciário está proibido de legislar pelo Texto Supremo e o Executivo, por Medidas Provisórias e leis delegadas só legislam sob a tutela do Legislativo. Os “caputs” dos artigos 62 e 68 da Lei Suprema estão versados com o seguinte discurso:

Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

Art. 68. As leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional.

Tendo participado de audiências públicas na Constituinte, com Celso Bastos comentado a Lei Suprema em 15 volumes pela Editora Saraiva (em torno de 10 mil páginas) entre 1988 e 1998, entendo que o equilíbrio dos Poderes e a enunciação dos direitos do cidadão e residentes nos seus diversos aspectos, de forma exaustiva, foram a espinha dorsal da Constituição denominada por Ulysses de Constituição Cidadã. Foi isto que os Constituintes aprovaram e pelo que sempre lutei e continuo lutando, nada obstante um modesto advogado de província e velho professor universitário: para que sua intenção seja respeitada e não por interpretações que não correspondem aos anais da Assembleia Nacional Constituinte.

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