Quem são os escravizados e escravizadas do Brasil?

4 de fevereiro de 2022

Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)

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O Brasil foi uma das primeiras Nações a reconhecer oficialmente, perante a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1995, a existência de trabalho análogo à escravidão no seu território e assumiu, como política de Estado, a erradicação dessa prática, criando estruturas governamentais de combate e fiscalização do crime.

Como se sabe, em 13 de maio de 1888 foi abolida oficialmente a escravidão no Brasil, com a promulgação da Lei Áurea, após o Governo Imperial render-se a pressões sociais e políticas e, sobretudo, econômicas. Daí a denominação instituída no País “trabalho análogo a de escravo”, no art. 149 do Código Penal, desde a redação originária do dispositivo, em 1940. Trata-se de fenômeno distinto, não mais da escravidão clássica, como a que se vê em obras literárias e em outros tipos de produções culturais e artísticas sobre a época anterior à Abolição, caracterizada pela prisão do corpo ou pela restrição da liberdade em sentido estrito, mas que carrega as marcas daquele período, em razão das deficiências estruturais que resultaram do modo como a escravidão foi tratada ou negada nas políticas públicas implementadas desde então.

Assim, em que pese estarmos diante de situações que não se confundem, há semelhanças, em alguns casos, como a manutenção de vigilância armada em propriedades; a prisão por dívida; o trabalho forçado; a jornada exaustiva; o espancamento, sumiço e até o assassinato de trabalhadores; as chamadas condições degradantes de trabalho, como o não fornecimento de água potável, de equipamentos de proteção individual, de alojamentos e de outras condições de trabalho dignas, inarredáveis no Estado Democrático de Direito. O caso dos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, no qual o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pela reincidente escravização de trabalhadores e pela ausência de combate e punições dos responsáveis, é exemplo clássico dessas condições inaceitáveis, lamentavelmente ainda presentes no Brasil.

A data 28 de janeiro foi instituída como o “Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo” em memória de auditores fiscais do Trabalho assassinados e do motorista que os acompanhou em operação por denuncia de trabalho análogo a de escravo, em 2004, em Unaí, Minas Gerais, o que ficou conhecido como “Chacina de Unaí”.

Em 26 anos de atuação, os grupos móveis de fiscalização já resgataram mais de 56 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão no Brasil, de acordo com os dados divulgados pela Secretaria de Inspeção do Trabalho – SIT[1].

Em momento de grave crise sanitária e humanitária causada pela pandemia da covid-19, em que o País conta com mais de 14 milhões de desempregados, diante da alta informalidade e da precarização das relações de trabalho, verifica-se o incremento de atividades de desmatamento ilegal da Amazônia, oficinas clandestinas de costura, a ocultação de trabalhadores imigrantes e domésticos, terceirização e até quarteirização de atividades de construção civil, massiva migração de trabalhadores para as atividades agropecuárias, entre outras situações de vulnerabilidade.

 

Nesse contexto, indispensável a análise sobre quem são as escravizadas e os escravizados do Brasil e sobre a eficácia das políticas públicas de combate e erradicação do trabalho análogo a de escravo no País.

O Brasil percorreu longo caminho para a consolidação de instrumentos de combate ao trabalho escravo e foi reconhecido internacionalmente como modelo no enfrentamento da escravidão contemporânea. Entre as ações adotadas, destacam-se: a criação do grupo de móvel de fiscalização, a alteração do conceito de trabalho análogo à escravidão em 2003, previsto no art. 149 do Código Penal (Lei nº 10.803 – após a solução amistosa no Caso José Pereira perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos); o lançamento dos Pactos Nacionais para a Erradicação do Trabalho Escravo; a implementação da “lista suja” dos empregadores que são flagrados na prática criminosa; o pagamento do seguro-desemprego aos resgatados, entre outras.

Apesar da grande complexidade do problema, a eficácia do enfrentamento do trabalho análogo à escravidão no País deve-se à grande capacidade de articulação entre os atores que participam desse combate, com o envolvimento coordenado de Poderes, órgãos, entidades da sociedade civil, setor privado, entidades de trabalhadores e empregadores e organismos internacionais, integrantes da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).

Nesse quadro, atuações isoladas ou soluções simplistas não corrigem o círculo vicioso que decorre da pobreza e da fome, mas também do trabalho infantil, da deficitária alfabetização ou escolaridade básica, da ausência de oportunidades dignas de trabalho, das diversas e renovadas formas de exploração dos trabalhadores rurais e urbanos. Sendo assim, é urgente a reafirmação da política de Estado, não só de combate à escravidão contemporânea, como também, de verdadeira erradicação dessa triste chaga.

De janeiro a setembro de 2021, ações de fiscalização resgataram 1.015 pessoas do trabalho em situação análoga à escravidão (743 resgatados na área rural e 272 na área urbana), marca que já superava os regates ocorridos em 2020 e no mês de outubro de 2021, houve o resgate de mais 116 trabalhadores no Estado de Goiás, o que foi considerado uma das operações mais complexas pelos auditores-fiscais do Trabalho, do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM)[2].

Ainda segundo dados oficiais, do cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas às de escravo (Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4 de 11/05/2016), atualizado até 05/10/2021, a maioria dos autuados são fazendas ou propriedades rurais[3].

Mas quem são essas trabalhadoras e trabalhadores escravizados?  Importante a divulgação quantitativa dos resgates, mas, também, a consideração particularizada dessas vítimas, a fim de que políticas públicas possam ser criadas ou aprimoradas, evitando não só a escravização de trabalhadores e trabalhadoras, como também, a reincidência entre os mesmos grupos e, principalmente, a retroalimentação do sistema de exploração dos mais vulneráveis.

Com relação ao perfil dos trabalhadores e trabalhadoras escravizados, de acordo com os dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas (MPT-OIT), pode-se se destacar que, no Brasil, as atividades nas quais houve o maior índice de trabalhadores resgatados, de 1995 a 2020, são a criação de bovinos (31%) e o cultivo da cana-de-açúcar (14%), sendo que as atividades agropecuárias em geral representam 70% dos trabalhadores resgatados. Os pardos são 45% desse contingente, os pretos 13%, os brancos 23% e os amarelos 16%. Os analfabetos são 30% dos resgatados, os que têm até o 5º ano de escolaridade incompleto são 37% e os que têm do 6º ao 9º incompleto são 15%. A maior parte dos resgatados são homens, principalmente com idades entre 18 e 24 anos, mas também há índice considerável de resgates nas idades entre 25 e 29 anos e entre 30 e 34 anos[4].

Imprescindível destacar, ainda, a invisibilidade que norteia a escravização de mulheres no Brasil, como aponta a publicação da organização “Escravo Nem Pesar!”. Dos 47.760 trabalhadores resgatados pela fiscalização do Trabalho no País, entre os anos de 2003 e 2018, apenas 1.889 eram mulheres. Dessas, 62% eram analfabetas ou não concluíram o 5º ano de ensino fundamental. Houve a constatação, ainda, de disparidade racial entre as resgatadas: mais da metade (53%) é negra, sendo 42% pardas e 11% pretas. Assim como os homens, “a maior parte das mulheres foi encontrada trabalhando em atividades agropecuárias: 64,2% do total, que corresponde a 1.212 mulheres”. As mulheres resgatadas, também “desenvolviam atividades domésticas, como na cozinha e limpeza, reproduzindo a mesma lógica da divisão sexual do trabalho cristalizada pela sociedade”. Com relação à atividade de cozinheira, a segunda com maior incidência entre as resgatadas, há subnotificação, pois, muitas vezes, esse trabalho não é considerado como tal, em razão da equivocada interpretação de que as mulheres estão no local do resgate de outros trabalhadores apenas acompanhando os familiares. Essa percepção excludente acaba privando as trabalhadoras do recebimento de seus direitos, não gera estatísticas dessas escravizações e, consequentemente, afasta a criação de políticas públicas para o combate do trabalho análogo a de escravo com recorte de gênero, aprofundando, ainda mais, a vulnerabilidade dessas mulheres e as desigualdades já existentes[5].

Situação especial é identificada no Estado de São Paulo, onde a proporção de homens resgatados é de 82% e de mulheres 18%, respectivamente. Já a Cidade de São Paulo, traz contingente ainda maior de mulheres resgatadas (30%) e 93,1% dessas mulheres são imigrantes, o que difere da maior parte do País, onde o índice de homens brasileiros resgatados chega a 95%. A maior parte dos casos que ocorrem na Cidade de São Paulo são em oficinas clandestinas de costura, além do trabalho doméstico, situações que dificultam a fiscalização. Questões relacionadas com a alta informalidade, precarização dos postos de trabalho, sexismo, violência doméstica, maternidade, amamentação, entre outras, igualmente devem ser consideradas na análise do trabalho escravo contemporâneo com recorte de gênero[6].

Em relatório apresentado pela Organização das Nações Unidas (ONU), na 45ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, em 2020, houve a constatação da redução significativa no monitoramento do trabalho escravo contemporâneo no Brasil, com a diminuição das fiscalizações durante a pandemia e cortes orçamentários[7], os quais já vinham sendo realizados desde 2017[8]. Ainda segundo o relatório, entre 2016 e 2018, 82% dos trabalhadores resgatados de trabalhos análogos à escravidão no Brasil eram homens, negros, com idades de 15 a 29 anos e nascidos na região Nordeste do País.

A partir de 2019, a redução da fiscalização e os cortes orçamentários passaram a ser profundos. Em 2021, houve anúncio de que o orçamento destinado às operações de fiscalização e combate ao trabalho escravo seria o menor em sete anos, representando a redução de 47,3%[9].

Apesar dos cortes orçamentários verificados, recentemente o Poder Executivo anunciou a recusa de recursos vindos da aplicação de multas e dos Termos de Ajustamentos de Condutas (TAC) formalizados pelo Ministério Público do Trabalho com infratores, valores que eram destinados à compra de veículos e equipamentos para as fiscalizações pelo grupo móvel, transferindo esses recursos para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos e ao Fundo de Amparo ao Trabalhador[10], sem qualquer vinculação com o combate do trabalho escravo contemporâneo.

Somente em 2019, o Ministério Público do Trabalho registrou 1.213 denúncias de trabalho análogo à escravidão e foram ajuizadas 91 ações civis públicas na Justiça do Trabalho, com a formalização de 258 TACs em face de empregadores que se utilizaram de mão de obra análoga à escrava, em âmbito nacional, sob qualquer das formas alternativas que caracterizam o crime, previstas no art. 149 do Código Penal: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes ou jornada exaustiva.

Além do que foi exposto, há considerável déficit no número de fiscais do Trabalho. Dos 3.644 cargos existentes, apenas 2.050 estão ocupados[11], o que também gera a desaceleração das políticas de combate e de erradicação do trabalho análogo a de escravo.

Nesse cenário, não menos preocupante é a existência de Recurso Extraordinário em trâmite no Supremo Tribunal Federal (RE 1323708 – tema 1158), com repercussão geral, que tratará sobre os elementos para a configuração do crime de redução à condição análoga à de escravo e quais as provas necessárias para as condenações por esse crime.

O recurso foi interposto pelo Ministério Público Federal (MPF) contra decisão da 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que absolveu um proprietário de fazendas no Pará do crime de redução de 43 trabalhadores à condição análoga à de escravo. Segundo o TRF1, a produção de provas, baseada nos relatórios da fiscalização do Trabalho, foi deficiente, diante da ausência de depoimentos das vítimas, e a acusação teria se valido de elementos “comuns na realidade rústica brasileira”, como alojamentos coletivos e precários e falta de água potável, de instalações sanitárias e de equipamentos de primeiros socorros.

Para o TRF1, a condenação só se justificaria em casos mais graves, em que o trabalhador seja efetivamente rebaixado na sua condição humana e submetido a constrangimentos econômicos, pessoais e morais inaceitáveis.

No recurso, o Ministério Público Federal sustenta que as condições em que os trabalhadores foram encontrados não podem ser consideradas “mera realidade local” e se enquadram na conduta tipificada no art. 149 do Código Penal, que equipara ao trabalho escravo o exercido em condições degradantes. A decisão do TRF1, assim, traz atenuações das condutas nos casos de trabalho rural, o que gera distinção na proteção da dignidade desses trabalhadores, mesmo que estejam em localidades distantes, onde a presença do Estado é mais difícil, deixando-se de considerar o trabalho em condições análogas à escravidão, o que fere não só o art. 149 do Código Penal, como a Constituição brasileira, as Convenções 29 e 105 da OIT, entre outros instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos.

O Supremo Tribunal Federal já tem jurisprudência consolidada sobre a proteção da dignidade do trabalhador, e não só da sua liberdade de ir e vir[12], e espera-se que esse entendimento seja mantido em repercussão geral, a fim de que não haja qualquer retrocesso na proteção dos direitos humanos dos trabalhadores.

Além do risco de retrocesso na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, há diversos Projetos de Lei em trâmite no Congresso Nacional que objetivam a alteração do conceito de trabalho análogo a de escravo, descaracterizando-o por completo em relação às práticas contemporâneas e características do País, além de tornarem a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 81, de 5/6/2014, conhecida como “PEC do Trabalho Escravo”, absolutamente vazia de sentido.

Com a aprovação da PEC do Trabalho Escravo, o art. 243 da Constituição foi alterado, passando a prever, além da expropriação sumária de imóveis urbanos e rurais em que for constada a cultura ilegal de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo, a destinação dos imóveis ou das áreas à reforma agrária e a programas de habitação popular.

No Brasil, já existe tipificação adequada para o crime, prevista no art. 149 do Código Penal, voltada à proteção da vida, saúde, integridade e dignidade dos trabalhadores, tendo em vista que a maior parte dos resgates realizados pelos auditores-fiscais do Trabalho ocorre em face de condições degradantes (como ausência de água potável e de instalações sanitárias) e da submissão dos trabalhadores a jornadas exaustivas. Não se trata apenas do descumprimento de normas trabalhistas, mas, como foi exposto, de verdadeiras violações dos direitos humanos dos trabalhadores.

Nesse contexto, causam profunda preocupação as propostas legislativas que objetivam a desconstrução do conceito de trabalho análogo a de escravo e também o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, com repercussão geral, que discutirá os elementos para a caracterização do crime e as provas necessárias à essa configuração. São preocupantes, ainda, os cortes orçamentários e o déficit na fiscalização do Trabalho.

Assim, espera-se que o País retome sua posição de vanguarda no combate à escravidão contemporânea e que reitere a proteção da dignidade, da saúde, integridade e vida dos trabalhadores como bens intangíveis e não sujeitos a relativizações, em todo o seu território.

Notas____________________________

[1] Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2021/10/resgatados-trabalho-escravo-lista-suja/> Acesso em: 10/11/2021.

[2] Disponível em: <https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/noticias-e-conteudo/trabalho/2021/outubro/116-trabalhadores-sao-resgatados-de-trabalho-analogo-ao-escravo-em-agua-fria-de-goias-go>. Acesso em 18/01/2022.

[3] Disponível em: <https://sinait.org.br/docs/lista_suja_-_5_de_outubro_de_2021.pdf>. Acesso em: 10/11/2021.

[4] Disponível em: <https://smartlabbr.org/trabalhoescravo/localidade/0?dimensao=perfilCasosTrabalhoEscravo>. Acesso em: 18/01/2022.

[5] Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/10/24/mulheres-escravizadas-sao-invisiveis-para-as-politicas-publicas-no-brasil.htm>. Acesso em: 10/11/2021.

[6] Disponível em:: https://escravonempensar.org.br/wp-content/uploads/2020/10/GENERO_EscravoNemPensar_WEB.pdf Acesso em: 18/01/2022.

[7] Disponível em: <https://www.conectas.org/noticias/em-relatorio-da-onu-brasil-e-citado-como-exemplo-na-reducao-de-fiscalizacao-de-trabalho-escravo/>. Acesso em: 10/11/2021.

[8] Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/fiscalizacao-do-trabalho-escravo-cai-e-verba-do-setor-termina-em-agosto-dizem-entidade-e-sindicato.ghtml>. Acesso em: 10/11/2021.

[9] Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2020/09/fiscalizacao-trabalhista-cortes-bolsonaro/>. Acesso em: 10/11/2021.

[10] Disponível em: <https://economia.ig.com.br/2021-11-08/bolsonaro-desvio-recursos-fiscalizacao-trabalhista.html>. Acesso em: 10/11/2021.

[11] Disponível em: <https://folhabv.com.br/noticia/ECONOMIA/Economia/Brasil-tem-deficit-de-1-5-mil-vagas-para-fiscalizar-trabalho/72111>. Acesso em: 10/11/2021.

[12] Inquérito 3412/AL, STF, Relatora Ministra Rosa Weber.