Trabalho intermitente, violação do direito ao trabalho e a (in) dignidade do salário

4 de dezembro de 2020

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O direito ao trabalho, em condições dignas, está assegurado em diversos instrumentos internacionais, como na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e a Constituição brasileira designa o trabalho como um direito social fundamental (art. 6º), consolidando-o como um dos principais elementos para a plena fruição dos direitos humanos.

Em seu preâmbulo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos reafirma o reconhecimento do progresso social e de melhores condições de vida como postulados de uma liberdade mais ampla, considerando a inter-relação entre igualdade, liberdade e trabalho. Prevê, ainda, igual remuneração para igual trabalho, sem distinção e o pagamento de remuneração justa e satisfatória, que assegure ao trabalhador, junto com a sua família, existência compatível com a dignidade humana.

Em novembro de 2020 foi inserido na pauta de julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) relevante tema relacionado com o mundo do trabalho: o contrato de trabalho intermitente, tratado na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5826 e em outras ações. O tema envolve a discussão sobre a compatibilidade do trabalho intermitente e de sua regulamentação legal, trazida à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), pela Lei nº 13.467/2017 (“reforma trabalhista”), com o regime de proteção assegurado na Constituição, principalmente no que diz respeito à garantia de salário mínimo mensal (art. 7º, IV).

No trabalho intermitente, segundo o texto legal, o trabalhador ganhará de acordo com o número de horas trabalhadas e as férias, o 13º salário e o FGTS serão pagos com base nos valores recebidos e mesmo que dispensado sem justa causa, o empregado não fará jus ao recebimento do seguro-desemprego. No caso de o trabalhador receber menos de um salário mínimo por mês, deverá complementar os valores recolhidos à Previdência Social.

Estudo aponta os prejuízos advindos de tal tipo de contratação no Reino Unido, onde passou a ser utilizado em larga escala, com o recebimento de salários 7% menores do que os demais trabalhadores, desproteção social e imprevisibilidade das contratações.

No Brasil, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) identificou que, em 2018, 11% dos vínculos de trabalho intermitente não geraram atividade ou renda. No mesmo período, a contraprestação mensal média nos empregos intermitentes foi de R$ 763,00 – enquanto o salário mínimo era de R$ 954,00 por mês. Além disso, 40% dos vínculos que estavam ativos em dezembro daquele ano não registraram trabalho no mês, 43% pagou 80% do salário mínimo e, para cada três meses trabalhados, dois meses foram de inatividade, sem nenhum pagamento.

O que esperar do julgamento dessa e de outras matérias que envolvem o Direito Constitucional do Trabalho pelo STF? Em breve retrospecto de decisões anteriores, como as relativas à terceirização de serviços ou à validade de acordos individuais para a redução salarial no contexto da pandemia, tem-se prognóstico no sentido da maior proteção das liberdades econômicas, em detrimento dos direitos sociais fundamentais, garantidos na Constituição.

Contudo, o STF tem a opção de trilhar percurso diferente, que passa pelo compromisso com a Constituição e com os direitos fundamentais nela assegurados, a exemplo do que ocorreu com as ações que versaram sobre a proteção do meio ambiente de trabalho, nas quais houve o reconhecimento dessa garantia inafastável.

O trabalho intermitente flexibiliza ao extremo o uso da força laboral e, como já apontam os dados coletados, permite um sistema orientado exclusivamente pela demanda do empregador, afastando a previsibilidade do recebimento de salário mínimo legal. O trabalhador não sabe se e quando será chamado, nem por quanto tempo. Se, para a empresa, esse sistema laboral poderia conferir ampla segurança econômica, para a força de trabalho é o inverso: traz incerteza e a mais profunda instabilidade.

O argumento de que o trabalho intermitente estimularia a criação de novos empregos se revela completamente descolado da realidade, considerando os alarmantes índices de desemprego, além de tal tipo de contratação apontar para um elevado nível de precarização do mercado de trabalho. Caso prevaleça a interpretação literal do art. 452-A da CLT, que sequer assegura o salário mínimo mensal, teremos o reconhecimento judicial de vínculos empregatícios vazios, sem direitos e garantias.

Contrariamente ao texto legal, a Convenção nº 95 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, estabelece o dever do salário ser pago em intervalos regulares, salvo ajustes mais favoráveis (art. 12). O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também ratificado, estabelece o compromisso de garantir uma remuneração que proporcione a todos os trabalhadores uma existência decente a eles e suas famílias (art. 7º).

Uma leitura compromissada com a Constituição revela a intenção de assegurar a todos os trabalhadores, urbanos e rurais, salário mínimo mensal, como direito fundamental, para existência digna. Por tal razão, há essa garantia mesmo em regimes de trabalho em que o empregado compartilha do risco da atividade econômica, sofrendo, em seus ganhos, os impactos do desempenho da empresa no mercado, como os trabalhadores que percebem salário à base de comissões (art. 7º, VII).

No regime de trabalho intermitente, a força laboral também sofre os riscos da atividade econômica. Em uma situação de escassez de demanda, a empresa é naturalmente motivada a não convocar os trabalhadores intermitentes. Seria, então, compatível com a Constituição a existência de emprego sem salário? A resposta do texto constitucional é peremptoriamente negativa.

O percurso de compromisso com a Constituição, aqui sugerido, implica o reconhecimento de que os direitos sociais e trabalhistas são garantidos em uma dinâmica temporal de expansão e ampliação – dinâmica essa que vincula os três Poderes do Estado. O caput do art. 7º do texto constitucional estabelece este vínculo com o futuro: o elenco de garantias fundamentais trabalhistas deve ser complementado por “outros direitos que visem à melhoria da condição social de trabalhadores urbanos e rurais”. Também é este o tom das liberdades econômicas dispostas na Constituição: o princípio base da República não é a mera livre iniciativa, mas o valor social da livre iniciativa, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II, III e IV).

O STF, como guardião da Constituição, tem o dever de retomar decisões que salvaguardem o valor social do trabalho e a dignidade do salário, a exemplo dos julgamentos que reiteraram a inafastabilidade da proteção do meio ambiente do trabalho e da preservação do poder aquisitivo do salário mínimo, para a satisfação das necessidades vitais básicas dos trabalhadores e de suas famílias.

Assim, espera-se que haja o reconhecimento de que o direito ao trabalho supõe direito ao salário mínimo mensal e que, sem a garantia desses direitos sociais fundamentais, o trabalho intermitente não pode ser considerado constitucional.

Notas___________________________

1 Estudo apresentado por Marcelo Zero. Disponível em: https://www.josepimentel.com.br/sites/default/files/notas-tecnicas/alguns-dados-sobre-o-trabalho-intermitente-no-reino-unido.pdf. Acesso em 26/05/2019.

2 O boletim do Dieese pode ser consultado em https://www.dieese.org.br/boletimempregoempauta/2020/boletimEmpregoEmPauta14.html. Acesso em 12/11/2020. Cf. https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/2020/01/24/trabalho-intermitente-pagou-em-media-menos-de-um-salario-minimo-em-2018-mostra-dieese.ghtml. Acesso em: 20/11/2020.

3 Cf., a propósito, PAIXÃO, Cristiano e LOURENÇO FILHO, Ricardo. “O STF e o Direito do Trabalho: as três fases da destruição”. Portal JOTA, em 29/06/2020.  Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-stf-e-o-direito-do-trabalho-as-tres-fases-da-destruicao-29062020. Acesso em 18/11/2020.

4 Como no julgamento da ADI 5938, com a declaração de inconstitucionalidade de trechos de dispositivos da CLT, inseridos pela Reforma Trabalhista, que admitiam a possibilidade de trabalhadoras grávidas e lactantes desempenharem atividades insalubres. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=412571. Acesso em 20/11/2020. E no julgamento da MC, relativa à MP nº 927/2020, no qual foi suspensa a eficácia de dois dispositivos, o art. 29, que não considerava a covid-19 como doença ocupacional e o art. 31, que limitava a atuação de auditores fiscais do trabalho à atividade de orientação durante a pandemia. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442355. Acesso em 20/11/2020.

5 O Brasil encerrou o mês de setembro/2020 com 13,5 milhões de desempregados, cerca de 3,4 milhões a mais que em maio, o que representa alta de 33,1%. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/23/no-de-desempregados-diante-da-pandemia-aumentou-em-34-milhoes-em-cinco-meses-aponta-ibge.ghtml. Acesso em 20/11/2020.

6  Nesse sentido, o STF já se manifestou no julgamento da ADI1458 MC-DF, pela necessidade preservação do poder aquisitivo do salário mínimo, para a satisfação das necessidades vitais básicas dos trabalhadores e de suas famílias. Relator Ministro Celso de Mello. Pleno, DJ 20/09/1996.