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Sistemas de resolução de conflitos online – Mais uma porta de acesso à Justiça

20 de fevereiro de 2018

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Isabela Ferrari, Juíza Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região

Hoje, a tecnologia faz parte do dia a dia das Cortes brasileiras. Já se passou mais de uma década da Lei do Processo Eletrônico (Lei 11.419/ 2006) e, desde então, houve avanços notáveis no sentido de se buscar a maior utilização da tecnologia como forma de ampliação do acesso à Justiça, ganho de eficiência e diminuição de custo.

Em 2016, o número de processos novos ingres­sados por meio eletrônico no Poder Judiciário foi de 70,1%, havendo ramos da Justiça, como a Trabalhista, em que esse percentual chegou a 99%1. Há iniciativas em todo país para utilização de meios tecnológicos2, havendo inclusive recente posicionamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para aceitar o uso de Whatsapp como ferramenta para intimações nos ­juizados especiais3.

Os exemplos elencados acima representam apenas uma faceta do uso da tecnologia na prestação jurisdicional. Nesse universo, a solução de conflitos online (Online Dispute Resolution – ODR) avança muito mais. ODR são os sistemas ou ferramentas focadas em solução (e prevenção) de conflitos por meio de tecnologia informática, softwares e utilização da internet, utilizando-se inclusive de inteligência artificial.

A penetração de tecnologia nos procedimentos jurisdicionais ocorre em três fases. A primeira envolve a administração de processos e aumento de eficiência, como nos exemplos mencionados acima. A segunda fase refere-se ao aumento de governança digital, com mais ferramentas e informações acessíveis ao público. Finalmente, há ferramentas de acesso à justiça, que dizem respeito a procedimentos sendo feitos integralmente ou hibridamente por inteligência artificial (KATSH e RABINOVICH-EINY: 2017,155).

A experiência do ODR surgiu nos Estados Unidos a partir da necessidade de se dar resposta a questões surgidas no ambiente online, devido a peculiaridades das relações e negócios que ocorrem na internet, tais como, a localização geográfica dessas relações e seu alto número de ocorrência.

Foi nesse cenário que nasceu o primeiro sistema de ODR, da empresa eBay, em 1999. O sistema inicialmente consistia em mediação por meio de e-mails. Nas duas semanas após o lançamento foi utilizado por 225 pessoas, com uma taxa de solução de mais de 50%. Hoje, o eBay utiliza um software de negociação entre comprador e vendedor e resolve 60 milhões de disputas por ano, com uma taxa de acordos de 80% (KATSH e RABINOVICH-EINY: 2017,32).

Inicialmente os mecanismos de ODR imitavam no mundo virtual dos mecanismos de ADR existentes no mundo off-line. No entanto, são essas diferenças que revelaram o maior potencial de desenvolvimento de ODR. Como exemplo, cita-se a possibilidade de comunicação assíncrona (mensagens trocadas sem ser “ao vivo”), de armazenamento de dados que possibilita análise de comportamentos e desenvolvimento de formas de prevenção de conflitos ou de métodos mais eficazes de solução, além da utilização de inteligência artificial.

Há exemplos de iniciativas interessantes no mundo todo, em que softwares são utilizados em maior ou menor escala para auxiliar as partes a resolver seus conflitos. Cite-se a Rechtwijzer (Holanda)4, focada em divórcios, e o TurboTax5, um software americano que auxilia cidadãos a fazerem declaração de imposto de renda por meio de perguntas simples sobre a vida, que são traduzidas nos complexos formulários da Receita Federal dos Estados Unidos.

Aqui mesmo no Brasil, temos o consumidor.gov.br6, iniciativa da Secretaria Nacional do Consumidor, no âmbito do Ministério da Justiça, que oferece um espaço simples de discussão entre empresas e consumidores. Mesmo que não ofereça mecanismos mais complexos de negociação por meio de inteligência ­artificial, ao final de cada caso, o programa questiona se a solicitação foi resolvida ou não. Os dados ficam salvos na plataforma e podem ser recuperados pelas partes a qualquer momento posterior, além de serem gerados rankings e outras informações públicas sobre os conflitos levados à plataforma.

Andrea Maia, Vice-Presidente de Mediação do CBMA

Acreditamos que os exemplos aqui expostos, apesar de terem ocorrido fora do Judiciário, demonstram o grande potencial do ODR para a prestação jurisdicional. Note-se que já existem iniciativas de ODR sendo utilizado diretamente pela Justiça na Austrália (e-courtroom7) e no Reino Unido (UK Money Claim Court8).

Independente do grau de evolução dos sistemas já postos em prática, temos pistas de questões teórico-filosóficas importantes para reflexão. No caso de um procedimento feito nos moldes indicados, em que o facilitador é um software criado com base em algoritmos que utilizam de dados colhidos de experiências prévias, pergunta-se como ficariam alguns conceitos básicos do direito, como a neutralidade judicial, a legitimidade e inclusive o direito de ser ouvido.

Um ponto central a se colocar é a accountability dos algoritmos utilizados para informar decisões públicas. Por exemplo, em Winsconsin (EUA), algoritmos são utilizados para fazer análise de risco de presos, embasando a decisão judicial referente à concessão de ­liberdade provisória ou conversão do flagrante em prisão preventiva. Questiona-se, no entanto, como são construídos esses algoritmos?

Ainda que haja espaço para críticas e reflexões sobre a legitimidade e possibilidade de utilização de ODR dentro das Cortes, certamente esta é uma oportunidade para tornar o processo mais rápido, barato e eficiente, concretizando, assim, o acesso à Justiça. Assim, acreditamos que a pergunta não seja se deve haver ou não ODR nas Cortes, mas como se dará sua implementação, que é inevitável.