Uma agenda trabalhista para 2022

24 de março de 2022

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A pandemia do covid-19 nos levou a enfrentar situações trágicas e extremamente cruéis como a pobreza e a fome. Milhões de brasileiros estão sem moradia e sequer sabem como conseguirão se alimentar. São condições abjetas de vida que, não obstante as sequelas sanitárias, decorrem principalmente do contínuo esvaziamento do mercado do trabalho e da desaceleração da atividade econômica produtiva, incluindo aqui o lamentável sucateamento de empresas públicas.

O número de desempregados atinge a incrível faixa de 15% da população ativa e não se sabe exatamente a quantidade real de trabalhadores informais ou subempregados no País.

Milhares de pessoas continuam sucumbindo à covid-19, notadamente os profissionais que estiveram e estão à frente de trabalhos e serviços essenciais.

O quadro formado a partir de 2019 deveria impor uma intervenção rápida e eficiente do Estado, tanto no que diz respeito às políticas públicas, quanto na elaboração de leis protetivas que nos permitissem enfrentar as crises e superar os diferentes e duros desafios. A contrapartida para essa situação, no entanto, foi a adoção de medidas sem qualquer preocupação de proporcionar amparo social, provocando retrocessos de toda sorte, alguns provavelmente irreparáveis.

Chegamos a 2022 constatando a falência do patético discurso governamental de que as medidas processadas seriam um abrigo seguro para a população, com garantia da criação de mais empregos e de combate às desigualdades, colocando-se um freio às nefastas consequências oriundas do nosso agudo drama sanitário.

A ineficiência estatal na economia, o descaso com a saúde e a ausência de condições de trabalho decente, entre outros fatores, estão gerando o descrédito do processo político e vão minando aos poucos a esperança de superação, que ainda é alimentada pela fé e o otimismo característicos do povo brasileiro. Talvez este tenha sido exatamente o objetivo de um governo marcado pelo descompromisso com qualquer padrão civilizatório.

Como advogadas trabalhistas, a nossa sensação é que para haver mudanças será preciso reagir com rapidez, sob pena de criarmos uma cultura de desprezo aos direitos e à dignidade da pessoa humana e de banalização da violência extrema e das atrocidades, que estão se tornando rotineiras. O caso do jovem refugiado congolês, brutalmente assassinado em razão do racismo, da intolerância, e por cobrar o direito de ser pago pelos dias trabalhados é um exemplo apavorante e que chocou a todos nós.

Onde está o “homem cordial” descrito por Sérgio Buarque de Holanda? Concluímos que nós não iremos mais encontrá-lo no Brasil, hoje, haja vista que “a violência, ostensiva ou sutil, encontra-se profundamente arraigada nas relações familiares, sociais e de trabalho”.

Quanto ao Poder Judiciário, não conseguimos obter respostas adequadas às questões socialmente relevantes. Ao invés de julgar com base no direito posto, as cortes superiores preferem legislar (e legislam mal) sobre certas matérias, deixando de oferecer, em alguns casos, as garantias apropriadas que são asseguradas pela Constituição Federal e pela legislação protetiva, optando por adotar teorias jurídicas exógenas, invariavelmente divorciadas da nossa realidade.

Ainda que não seja exatamente uma novidade, os procedimentos judiciais estão sendo escolhidos e adotados de maneira a evitar ou bloquear as importantes contribuições que podem ser oferecidas pela advocacia, na construção de teses que impliquem na promoção e distribuição de justiça, oferecendo alternativas ou saídas.

Um exemplo, no âmbito da Justiça do Trabalho, foi considerar desnecessária a transcrição de depoimentos em ata das audiências trabalhistas, sob o argumento que o Conselho Superior da Justiça do Trabalho “não mudaria a decisão”. Advogados e advogadas de empresas e de trabalhadores, bem como o próprio Ministério Público do Trabalho, demonstraram com fundamentos sólidos a necessidade da transcrição em ata das audiências e, ainda assim, a questão sequer foi analisada pela ótica da necessidade da otimização do tempo, o que permitiria ao magistrado revisitar, com maior tranquilidade, horas de audiência proferindo uma sentença justa, respaldada nos principais elementos de prova, garantindo às partes a tão falada “segurança jurídica”.

O trancamento dos recursos de revista, pela esdrúxula tese da presença ou ausência de transcendência da matéria jurídica, e a extinção dos dissídios coletivos, na outra ponta, também servem como exemplos.

Enquanto isso, o Judiciário trabalhista segue evitando analisar os direitos históricos dos trabalhadores, sob o argumento, no mínimo equivocado, de que não cabe ao Poder Judiciário analisar o direito em face do poder potestativo da empresa.

A fragilização dos sindicatos pela reforma trabalhista e a temerosa pressão das empresas para firmar acordos e convenções coletivas com redução de direitos previstos em lei é algo inaceitável.

Não bastasse o crescimento desmedido das violações aos direitos humanos em atividades empresariais, em face do descumprimento da legislação trabalhista, desde a malfada “reforma”, trabalhadores hipossuficientes estavam sendo impedidos de buscar a devida reparação de direitos na Justiça do Trabalho, na medida em que eram obrigados a pagar custas e honorários, inclusive para a realização de perícias.

O contínuo e incansável surgimento de projetos de revisão da legislação, nos quais se insiste na retirada de direitos trabalhistas, com graves lesões ao disposto no art. 7º e outros direitos sociais fundamentais previstos na Constituição Federal, nos levam a pensar que estamos vivendo num Estado de exceção em plena democracia.

A advocacia, que para o exercício profissional presta o juramento de fazer prevalecer a lei, em tempos de crise, pode dispor de um arcabouço legislativo que esteja voltado a proteger os mais vulneráveis na relação jurídica capital-trabalho. Precisamos sempre reafirmar o nosso compromisso com o poder constituinte originário e, sob o lema “nenhum direito a menos”, vamos nos manter firmes pugnando por condições dignas e trabalho decente.

Ao Judiciário cabe enfrentar as pautas tão necessárias, de interesse social, retirando a venda da Justiça para enxergar que esse mundo de profunda desigualdade precisa do seu amparo para coibir abusos e desvios de conduta, tanto da administração pública, quanto por parte de empregadores descomprometidos com o progresso e o bem-estar social.