Violência que não deixa marcas visíveis

10 de dezembro de 2019

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Entrevista Juíza Ana Luísa Schmidt Ramos

Embora esteja registrado nos estudos da ONU Mulher, com mais de 45 mil casos em 2014, o abuso psicológico sofrido nos casos de violência doméstica ainda é pouco notificado nas delegacias especializadas. O trabalho da juíza Ana Luísa Schmidt Ramos, autora de livro sobre o tema, começa a dar resultados visíveis para um tipo de agressão que nem sempre se enxerga.

Quais são as motivações do agressor nos casos de violência contra a mulher? O que leva uma mulher a tolerar esta situação até o limite, que muitas vezes traz danos fatais? E, sobretudo, por que a violência psicológica sofrida por essas vítimas não tem espaço nos processos judiciais? Para a juíza Ana Luísa Schmidt Ramos encontrar respostas para estas e outras questões era fundamental para melhor realizar seu trabalho. Foi impulsionada por essa busca que ela decidiu fazer uma segunda graduação, desta vez em Psicologia, curso concluído no ano passado.

Formada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), em 1996, a doutora Ana Luísa possui Especialização em Gestão e Controle do Setor Público pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2007), seu Estado natal, título obtido com um trabalho voltado ao tema da ética na função pública e, em particular, na magistratura. Ela é também autora do livro “Violência psicológica contra a mulher: o dano psíquico como crime de lesão corporal”, lançado em 2016 e já na segunda edição. A obra foi utilizada como fundamento na redação de ação penal assinada pelo Juiz de Direito Marcelo Volpato de Souza, titular do Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em Florianópolis. Nesta entrevista, a doutora Ana Luísa fala sobre isto e os ganhos que a Psicologia trouxe para sua carreira como magistrada, hoje atuante na 2a Vara Cível de São José, na grande Florianópolis.

Revista Justiça e Cidadania – Em primeiro lugar, gostaria que a senhora nos contasse um pouco sobre sua trajetória na magistratura até os dias de hoje, e o que a levou a buscar a graduação em Psicologia.
Ana Luísa Schmidt Ramos – Sou juíza desde 2002, e atuei no Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, na comarca da Capital de Santa Catarina, entre os anos de 2011 e 2015. Como juíza da violência doméstica, eu me perguntava o que levaria os homens a agredir as mulheres e o que levaria as mulheres a tolerarem tamanhas agressões, mantendo-se em relações cada vez mais opressoras e violentas. Essa angústia acabou me levando a iniciar uma nova graduação, a Psicologia, em 2014.

RJC – O que mais a incomodava ao lidar com esses processos ou o que a senhora sentia faltar em seu conjunto de conhecimentos a ponto de decidir buscar novos estudos?
ALSR – Intrigava-me o fato de a violência psicológica, tão grave e comum, não ter espaço nos processos judiciais. Pelo Mapa da Violência de 2015, elaborado pela ONU Mulher, mais de 45.000 mulheres foram atendidas em unidades de saúde do Brasil, no ano de 2014, por violência psicológica. Além disso, mais de um milhão de mulheres se reconheceram vítimas de violência psicológica naquele ano. Veja que o número é muito significativo, principalmente se levarmos em conta de que nem sempre a mulher se percebe vítima de violência quando o abuso é emocional. O agressor psicológico costuma utilizar as estratégias de submeter a mulher pelo medo, desqualificar sua imagem e bloquear as formas de sair da situação. Portanto, quanto maior a violência, maior o grau de comprometimento psíquico da vítima, o que dificulta ou mesmo impede que ela se perceba em situação de violência.

RJC – Em seu trabalho como juíza, a senhora chegou a identificar alguma denúncia sobre violência psicológica?
ALSR – Em todo o tempo em que estive no Juizado da Violência Doméstica – quase cinco anos – nenhuma denúncia a esse respeito foi oferecida. E mais, em pesquisa de jurisprudência realizada nos tribunais de justiça de outros estados, quase nada encontrei a esse respeito. Claro que o segredo de justiça que caracteriza esses processos dificulta a pesquisa em primeiro grau, mas praticamente não encontrei nenhum acórdão enfrentando a questão no segundo grau. Foi então que, em 2015, dentro de uma disciplina de pesquisa do curso de Psicologia, direcionei meus estudos a essa modalidade de violência. Cheguei à conclusão de que o dano psíquico poderia configurar o crime de lesão corporal. Veja-se que o crime de lesão corporal é assim descrito no artigo 129 do Código Penal: “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”. Pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o conceito de saúde engloba não apenas o bem-estar físico, mas também o bem-estar mental e social. Assim, quando se ofende a saúde mental de alguém, pode-se estar cometendo o crime de lesão corporal. Só que o crime de lesão corporal é crime material, isto é, deixa vestígios. Por isso, a exemplo do que ocorre com o dano físico, também o dano psíquico exige laudo pericial para a comprovação de sua materialidade. No caso, o laudo psicológico.

RJC – Qual foi o objetivo principal de sua pesquisa?
ALSR – Minha pesquisa teve como objetivo perquirir o que caracterizaria, exatamente, o dano psíquico. Quais sintomas a vítima teria de apresentar e como o laudo deveria ser elaborado. E a resposta que obtive, em revisão de literatura, foi que os sintomas do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), descritos na CID-10 e no DSM-V, seriam os parâmetros a configurar a lesão psíquica. Dessa forma, estando presentes os sintomas, e estabelecida a probabilidade de eles advirem de um ato perpetrado pelo agressor – o evento estressor – haveria elementos para oferecimento da denúncia pelo Ministério Público pelo crime de lesão corporal.

RJC – Como foi o processo de produção de seu livro?
ALSR – A pesquisa durou aproximadamente um ano. O resultado foi apresentado e desenvolvido por mim, no contexto do processo penal brasileiro, na obra “Violência psicológica contra a mulher: o dano psíquico como crime de lesão corporal”, já em segunda edição. A ideia foi de provocar o debate sobre a violência psicológica e apresentar algumas possibilidades de enfrentamento na esfera criminal. Quando falamos em violência doméstica contra a mulher, a ideia que costuma nos vir à mente é daquela mulher machucada, com a lesão física, aparente no corpo e, em geral, no rosto. Mas a violência psicológica, muitas vezes mais grave e com consequências mais devastadoras para a mulher, acabava passando despercebida na Justiça, como se não existisse.

RJC – Recentemente, seu livro fundamentou o processo de acusação de um caso de violência doméstica. A senhora acredita que, daqui para diante, este precedente irá influenciar outros julgamentos?
ALSR – Há cerca de um mês, tive a notícia de que o juiz titular do Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em Florianópolis, o doutor Marcelo Volpato, com base nos elementos contidos no livro, recebeu a denúncia oferecida pela Promotora de Justiça Helen Sanches, e por fim condenou um réu pelo crime de lesão corporal por dano psíquico, perpetrado contra a esposa. Não posso fornecer os dados do processo devido ao segredo de justiça que proíbe sua divulgação, mas sem dúvida um precedente da maior importância para que esse tipo de violência deixe o lugar de silêncio. Acredito, sim, que o precedente irá influenciar outros julgamentos, até porque se trata de decisão bastante sólida, fundamentada em laudo psicológico sério, e observando as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. De fato, estabelecer a relação de causalidade entre os sintomas experimentados pela vítima e o evento estressor é complexo e representa um desafio. Mas é possível, tanto que já existe o precedente, sendo imprescindível que o debate acerca de tema tão relevante continue.

RJC – O que poderia ser dito às vítimas que ainda não se deram conta que estão, sim, sofrendo um tipo de violência?
ALSR – A mulher deve desconfiar de que está sendo vítima de violência psicológica quando for ameaçada, constrangida, humilhada, manipulada, isolada, vigiada, perseguida, insultada, chantageada, ridicularizada, tiver sua intimidade violada e limitado seu direito de ir e vir. São exemplos disso as ameaças de morte ou sequestro dirigidas a si e/ou a seus filhos, as ameaças de suicídio, a proibição de contato com amigos e familiares, a limitação de locomoção, o controle financeiro, a tomada unilateral de decisões e a proibição de trabalho. Também ocorre quando o agressor chama a mulher de feia, de louca, acusa-a de incompetência sexual, fazendo com que ela deixe de confiar no que pensa, faz, sente, ou na sua capacidade de amar e de ser amada.

RJC – Como a mulher pode fazer para sair de uma situação assim?
ALSR – A vítima deverá buscar ajuda psicossocial e jurídica, seja nas delegacias especializadas, nos centros de referência às mulheres vítimas de violência, na Defensoria Pública, no Ministério Público, nos Juizados, ou nas universidades. Entretanto, para que isso aconteça, é imprescindível que esses locais estejam preparados para receber suas demandas. Se essas mulheres conseguem ter o movimento de sair do ciclo de violência, é muito importante que se esteja preparado para fazer o devido acolhimento e não as revitimizar. O caminho que sugiro é que a vítima procure a Delegacia de Polícia, preferentemente a delegacia especializada, nas cidades onde houver. Lá, havendo tipicidade aparente, a autoridade policial deverá instaurar inquérito e encaminhar a vítima a atendimento psicológico na própria unidade ou na rede de atendimento, para uma primeira avaliação. Desse atendimento, o psicólogo deverá elaborar um atestado psicológico, indicando se há indícios de dano psíquico. Em havendo indícios, o Ministério Público deverá requerer a elaboração da perícia psicológica, como produção antecipada de provas. Esse laudo embasará a denúncia, se houver indícios de crime e de autoria, ou mesmo o pedido de arquivamento.

RJC – Por fim, o que a Psicologia mudou em sua forma de julgar?
ALSR – A Psicologia ajudou imensamente minha atividade de julgar os processos, principalmente no que diz respeito à necessidade de olhar para a singularidade. No que diz respeito à violência doméstica, aprendi que não existe uma essência, ou padrão, de mulher em situação de violência, tampouco um padrão de agressor ou mesmo de relação violenta. Por isso, costumo dizer que não há uma resposta única às perguntas que me levaram a iniciar nova graduação – o que faz os homens agredirem as mulheres e o que faz com que as mulheres tolerem as agressões. As respostas aparecerão – ou não – na singularidade de cada caso concreto.