Advocacia e Democracia_Entrevista com Aurélio Wander Bastos

28 de fevereiro de 2011

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Aurélio Wander Bastos editou, com o apoio técnico do Conselho Federal da OAB no final do ano passado, três livros sobre as relações da Ordem dos Advogados e o Estado brasileiro em diferentes períodos de nossa história nos últimos 80 anos. São estudos pioneiros mostrando a participação da Ordem dos Advogados na construção do Estado Democrático de Direito que vivemos atualmente.
O primeiro volume, A Ordem dos Advogados e o Estado de Direito no Brasil, é voltado para o estudo das relações políticas entre o Estado brasileiro e a Ordem dos Advogados entre os anos de 1930 e 1964/1968. O segundo volume, denominado A Ordem dos Advogados e o Estado de Segurança Nacional, fundamentalmente define o papel da Ordem nos primeiros anos do período autoritário, no qual teve uma participação defensiva e, posteriormente, uma postura muito atuante na defesa da democracia e dos direitos humanos. O último volume, intitulado A Ordem dos Advogados e o Estado Democrático de Direito, discute o papel da OAB na abertura democrática e na Assembleia Constituinte, indicando as posições em que os seus projetos foram admitidos e em tantas ocasiões rejeitados, de certa forma prevalecendo muitas das orientações que advieram da Comissão Afonso Arinos.
O autor dos livros, em entrevista à Revista Justiça & Cidadania, fala um pouco sobre o processo de produção intelectual de cada um deles, as dificuldades que enfrentou e o que o motivou a escrever sobre esse assunto.

Tiago Salles – Como o senhor define a importância dessa coleção e como foi produzida?
Aurélio Wander Bastos – Esses livros são estudos pioneiros sobre a criação da Ordem dos Advogados e a sua participação na construção do Estado brasileiro moderno. A pesquisa para a produção das obras está fundamentada originalmente em atas do Conselho Federal da OAB e nas palestras proferidas pelos advogados nas conferências da OAB entre os anos de 1958 e 1988. Nesse contexto, a obra consolida a evolução política interna da OAB combinadamente com a sua evolução política e ideológica. O livro não é apenas um trabalho narrativo, mas principalmente analítico.

TS – Do que trata cada um dos livros?
AWB – O primeiro livro concentra-se num estudo sobre as origens históricas da Ordem dos Advogados, inclusive no Império e na primeira República, demonstrando que, apesar da criação do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, não apenas as constituições desses períodos dificultavam a sua criação, inclusive com dispositivos constitucionais, mas também os parlamentos não viabilizavam a discussão e a aprovação dos tantos diferentes projetos de lei voltados para a definição de regulamentos disciplinares e profissionais dos advogados. Essas dificuldades de natureza institucional levaram a elite dos advogados, principalmente concentrada no IAB, a tomarem posições contra o patrimonialismo oligárquico dominante na primeira República, aproximando-os do processo revolucionário, que viabilizou a criação da OAB em 1930 e a eleição do presidente do IAB Levi Carneiro como presidente da OAB até 1938. Esta nos parece a principal ação da OAB na modernização do Estado brasileiro, principalmente após a promulgação de seus regimentos.

TS – No primeiro livro, o senhor fala da importância da OAB na decadência do Estado patrimonialista. Como isso se deu?
AWB – Os estatutos e regimentos da OAB, nos seus primeiros anos, tiveram decisivo papel na desconstrução do Estado patrimonialista brasileiro. Essas posições estatutárias, que basicamente procuravam evitar o exercício de funções públicas cumuladamente com funções privadas, e o papel disciplinar dos juízes em relação aos advogados decisivamente contribuíram para a modernização do Estado brasileiro. Todavia, o livro A OAB e o Estado de Direito no Brasil foi o pré-projeto elaborado por Nehemias Gueiros em 1956/1957, quando o presidente da OAB era Miguel Seabra Fagundes, encaminhado ao Congresso Nacional pelo presidente Juscelino Kubitscheck, único presidente que pessoalmente visitou a OAB, e o Ministro da Justiça Nereu Ramos, que efetivamente contribuiu para definir os propósitos estatutários da OAB. No Congresso, tiveram a participação decisiva na sua discussão e redação final os deputados liberais mineiros Milton Campos e Pedro Aleixo, apesar da posição conservadora do Senado Federal, que evoluíram numa posição liberal-democrática e procuraram desvincular a OAB dos organismos de Estado. O Estatuto de 1963 vigeu até 1994, e, na verdade, ele consolidou os ideais dos advogados militantes que resistiram ao período do Estado Novo e contribuíram para a promulgação da Constituição de 1946. Coincidentemente nesse período, o livro analisa a resistência da OAB à transferência da capital para Brasília, o que veio a ocorrer somente após 1988 – na verdade um fenômeno político de grande significância que analisamos no nosso livro A OAB e a UnB, um estudo sobre os confrontos da proposta conservadora da OAB para o ensino jurídico e a proposta progressista da UnB.

TS – O segundo livro trata do período autoritário pós 64. Como foi a elaboração do texto?
AWB – O livro sobre o Estado de Segurança Nacional paradoxalmente evolui concomitantemente com o processo de criação legislativa do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, criado em 1964 após intensa atividade do deputado Bilac Pinto e sancionado pelo presidente João Goulart, mas que só entrou em funcionamento a partir de 1968 com uma nova redação legislativa. Esse livro demonstra também o papel da Ordem dos Advogados na crise do Estado liberal-democrático, que sucedeu aos anos de 1960, originariamente provocando a aproximação da OAB com frações do movimento revolucionário de abril de 1964, o que efetivamente perdurou até a OAB se afastar do CDDPH. Esse afastamento do Conselho, e a consequente radicalização revolucionária, com os atos que sucederam ao período final do ano de 1968 e o início de 1969, com efeitos na Carta Constitucional de 1967, foi uma tentativa de criar as condições para sobrevivência articulada entre os ideais liberais e a proposta de segurança nacional. Tal fato provocou o afastamento da OAB das linhas de atividade política do Estado autoritário. Esse distanciamento resultou na sua aproximação dos movimentos da sociedade civil que objetavam o Estado autoritário, principalmente a sua organização na forma de normas de segurança nacional fazendo com que a OAB mais se comprometesse nas suas conferências com os temas relativos à proteção dos direitos humanos. Nesse sentido, o livro A OAB e o Estado de Segurança Nacional evolui num estudo sobre as dessintonias entre os propósitos do estado autoritário e as políticas de direitos humanos, em que a expressão representativa mais significativa foi a do jurista Heráclito Sobral Pinto, muito embora a sua implementação deva-se essencialmente aos presidentes e às respectivas diretorias que sucederam a 1976: Raymundo Faoro, Eduardo Seabra Fagundes, José Bernardo Cabral, Herman Assis Baeta e Márcio Thomaz Bastos.

TS – O último livro relata o papel da OAB no período de abertura, após a Lei de Anistia e durante a Assembleia Constituinte. Quais são as suas impressões sobre esse período?
AWB – Paradoxalmente, os atos de maior radicalismo da vida política do Estado autoritário deram-se após a Lei de Anistia em 1969, quando podemos destacar o atentado à ABI, à OAB e ao Riocentro. Esses acontecimentos, realmente, foram de grande efeito sobre a vida interna da Ordem e afetaram as gestões de Eduardo Seabra e Bernardo Cabral. Na verdade, o primeiro sofreu as consequências da violência que brotou dos porões do governo militar, como dizia Geisel, dos militantes sinceros, mas radicais. A administração desse radicalismo foi realizada com grande habilidade pelo presidente Bernardo Cabral, que conseguiu aproximar o Estado autoritário das propostas de abertura, com iniciativas de grande efeito nacional, sendo que sempre destacamos que os primeiros diálogos deram-se sobre a questão do ensino jurídico com os Ministros da Educação da época (Ludwig e Esther de Figueiredo Ferraz). Dali se evoluiu para uma compreensão do papel positivo que a OAB poderia ter na construção do que se chamava Estado de Direito Democrático. Mais tarde, durante a Constituinte, as palavras foram invertidas, criando-se o Estado Democrático de Direito. Esse período que sucedeu a anistia favoreceu enormemente o trabalho do presidente Herman Assis Baeta, que conseguiu com a sua liderança transformar posições estritamente liberais, e muitas vezes conservadoras, numa proposta ideológica progressista, que obteve razoável sucesso durante o processo constituinte e marcou definitivamente a Constituição brasileira, que, de certa forma, evoluiu nos seus momentos finais concomitantemente com a 12ª Conferência de Porto Alegre, presidida pelo futuro Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. O Estatuto de 1994 seguiu a orientação constitucional, mas resguardou o processo eleitoral monolítico, evitando a representação das minorias.