O Assassinato de Jango e a Conspiração Impune

28 de fevereiro de 2008

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“Não me lembro se colocamos no Isordil, no Adelpan ou no Nifodin. Conseguimos colocar um comprimido nos remédios importados da França. Ele não poderia ser examinado por 48 horas, senão aquela substância poderia ser detectada.” (Mário Neira Barreiro, um dos assassinos confessos de Jango, em entrevista gravada por João Vicente Goulart)
Ainda que tardia, a verdade tem de ser resgatada para o bem das civilizações, atinja a quem atingir. Aquele que pretender sepultar a sete palmos fatos que pesaram no destino de uma nação estará cometendo um crime de lesa-pátria contra sua história e, principalmente, contra as futuras gerações.
Por isso, todos os homens de bem deste País, independente de simpatias ou antipatias pessoais e políticas, devem apoio total, amplo e irrestrito à família do ex-presidente João Goulart, em sua jornada insone para provar dois fatos que hoje são absolutamente inegáveis: o Golpe de 64 foi financiado, monitorado, acompanhado de perto diretamente pelo governo dos Estados Unidos, e o ex-presidente João Goulart foi assassinado (6 de dezembro de 1976), num espaço de 9 meses, em que também morreram o presidente Juscelino Kubitschek (22 de agosto de 1976) e o ex-governador Carlos Lacerda (21 de maio de 1977).
Em relação ao Golpe, é farta a documentação oficial disponibilizada pelo governo dos Estados Unidos, mostrando que o próprio presidente Lyndon Jonhson monitorou os acontecimentos passo a passo, em linha direta com altos funcionários envolvidos na trama, como mostra uma gravação de uma conversa entre ele e o subsecretário de Estado George Ball, disponível no sítio YouTube.

Assassinatos em série
Essa ligação revela com todos os detalhes a movimentação de navios de guerra e petroleiros, bem como a disponibilização de munição para os golpistas em caso de alguma resistência. Outros documentos já divulgados no Brasil apontam o permanente envolvimento da embaixada norte-americana nos nossos assuntos internos, inclusive durante o AI-5, quando o neodemocrata José Sarney foi encarregado pelos autores do segundo golpe de explicar o AI-5 à embaixada norte-americana.
O assassinato de Jango fazia parte de um sofisticado plano internacional, que incluía outras vítimas, como o ex-embaixador chileno Orlando Letelier, “explodido nos
EUA”, o ex-general chileno Carlos Prates, o ex-presidente boliviano Juan José Torres e dois parlamentares uruguaios – senador Zelmar Michelini e o deputado Héctor Gutiérrez Ruiz – ocorridos na Argentina, após a deposição de Isabelita Perón, em 24 de março de 1976, e a ascensão do mais sangrento bando golpista comandada pelo general Jorge Rafael Videla, que disputou com o colega chileno Augusto Pinochet a comenda de grão-mestre da tortura e do extermínio de opositores.
Em nome do Instituto João Goulart, seu filho João Vicente requereu à Procuradoria Geral da República que se abra uma investigação sobre a morte do seu pai, aos 58 anos. Para balizar seu pedido, João Vicente anexou a gravação de uma conversa que manteve com o ex-agente de segurança do Uruguai Mário Neira Barreiro, juntamente com uma equipe da TV Senado, em 2006, no presídio de segurança máxima de Charqueados, zona metropolitana de Porto Alegre.
Jango morreu em sua fazenda do município argentino de Mercedes, mas sua morte foi resultado de uma operação que ganhou o nome de “Escorpião” e estava entrelaçada com a famosa “Operação Condor”, a grande articulação assassina que fez centenas de vítimas no Cone Sul da América Latina.
Pela detalhada narrativa de Barreiro, que fora jovem militante da extrema direita uruguaia, Jango foi morto por envenenamento. As cápsulas envenenadas foram postas em frascos de remédios enviados da França para serem entregues no Hotel Liberty, onde o ex-presidente e a família se hospedavam em Buenos Aires. “Para envenenar Jango, um agente foi infiltrado como funcionário do hotel” – contou Barreiro.
O veneno – um cloreto desidratado num esterilizador – foi preparado pelo legista uruguaio Carlos Miles. Segundo Barreiro, o médico foi morto como queima de arquivo após ter ameaçado contar o que sabia se não fosse nomeado para um cargo público. O depoimento integra o pedido de abertura de inquérito, protocolado pela família de Jango no Ministério Público Federal em 8 de novembro do ano passado.
É bom que você saiba de um procedimento totalmente atípico. O corpo de Jango não foi submetido à autópsia. Foi direto para São Borja, em meio a uma série de ordens e contra-ordens que provocaram o sepultamento rápido, ante a pressão do comandante do III Exército, que chegou a demitir o delegado da Polícia Federal que autorizou o traslado do corpo.

Uma figura extraordinária
Tive o privilégio de conhecer Jango pessoalmente, quando, em 25 de março de 1958, como vice-presidente da República, foi à posse do primeiro governador trabalhista do Ceará, Parsifal Barroso, juntamente com os governadores do PTB já empossados: Roberto da Silveira, do Estado do Rio; Gilberto Mestrinho, do Amazonas, e Chagas Rodrigues, do Piauí.
Dessa safra, o único governador trabalhista que não pôde ir à festa no antigo Palácio da Luz (e depois ao almoço na casa do deputado e empresário Raul Carneiro, cunhado de Carlos Jereissati) foi Brizola, eleito governador do Rio Grande do Sul, aos 36 anos.
Como na campanha, me pediram para falar e eu não me fiz de rogado. Foi o suficiente para que Jango me convidasse para conhecer a antiga Capital Federal. Recebido e “adotado” pelo ex-deputado Waldemar Rodrigues da Silva, um trabalhista gaúcho que presidia o Iapfesp, tive a oportunidade de conversar várias vezes com Jango, apesar de meninote. Ele, que era uma figura singularmente doce, trocava idéias comigo como se eu já fosse gente grande.
Isso me deu liberdade para dizer a ele, no seu apartamento da Atlântica, esquina da Belfort Roxo: “Seu temperamento conciliador ainda vai lhe custar caro. Desde a morte de Getúlio, o senhor está na mira” – disse-lhe uma noite.
No entanto, foi graças a seu jeito que evitou o banho de sangue programado pela CIA e pelos altos funcionários norte-americanos caso houvesse resistência.
Na conversa de George Ball com o presidente Johnson, eles imaginavam uma guerra civil que “obrigaria” o desembarque de marines norte-americanos em nosso território. Mas essa é outra conversa, sobre a qual contarei tudo, oportunamente.
Publicado no jornal Tribuna da Imprensa de 14/01/2008.