A afirmação do feminismo_Entrevista com a Ministra Eliana Calmon

31 de março de 2010

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Nesse mês de março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, em um país onde a luta por reconhecimento e ascensão profissional permanece firme guiada por mulheres que romperam barreiras e venceram obstáculos, mulheres como Mirtes de Campos, Nísia Floresta, e, porque não, a Ministra Eliana Calmon merecem ser lembradas pelo exemplo de força incansável em uma luta, muitas vezes injusta, em busca do mínimo: a igualdade.
Primeira juíza de carreira, segunda mulher no País, a ingressar em um Tribunal Superior, a Ministra Eliana Calmon é conhecida por sua discrição, sua firmeza e seu irretocável senso prático, comum aos que, como ela, dominam a lei e todas as suas vertentes.
Considerada objetiva e pragmática, a Ministra tem como um de seus hobbies a culinária. “Com o tempo a mídia encheu as revistas e os programas de televisão de homens na cozinha e agora a culinária ficou chic e virou moda, e hoje, passados quinze anos, ninguém mais duvida de uma ‘Ministra Cozinheira’”, enfrenta a Ministra, com bom humor, as críticas e o preconceito com a publicação de seu primeiro livro de receitas, “REsp – Receitas Especiais”, em 1995, atualmente na 8ª edição.
A Ministra Eliana Calmon é digna de representar a todas nós, mulheres, nesse mês simbólico mas especial, sobretudo por sua luta nas questões femininas e por seu engajamento nas políticas públicas sociais.
“Ninguém ganha espaço de poder pelo só reconhecimento da justiça ou da injustiça. É conquistar, e só se conquista espaço de poder pela luta direcionada em prol da igualdade. Assim, somente os ordenados movimentos feministas são capazes de serem arautos das necessidades do grupo, somente eles são capazes de tornar público e chamar a atenção da mídia quanto à condição feminina”, afirma a Ministra.
Nessa entrevista, gentilmente cedida à Revista Justiça & Cidadania, a Ministra fala um pouco sobre sua participação nos movimentos feministas e o que pensa sobre o quinto constitucional e as reformas do Judiciário.

Revista Justiça & Cidadania – Vossa Excelência foi a segunda mulher, primeira juíza de carreira, a chegar a um Tribunal Superior. Os tribunais superiores totalizam 13 mulheres em um universo de 86 Ministros, ou seja, 15%. O que Vossa Excelência pensa sobre a participação das mulheres na cúpula do Judiciário ser ainda tão pequena?
Ministra Eliana Calmon –  O Poder Judiciário foi o último dos Poderes a modernizar-se no que toca à aceitação das mulheres. Basta verificar que somente em 1999 é que chegou a um Tribunal Superior a primeira mulher, fruto de um compromisso assumido pelo Presidente da República em Protocolo de Intenções.
Quando os Movimentos de Mulheres, em 1995, preparavam a pauta para o Congresso Internacional de Mulheres em Beijing, China, perceberam a realidade brasileira: em todos os Poderes a mulher tinha participação e acesso à cúpula, menos no Poder Judiciário, que, ironicamente, era o único com acesso mediante concurso público, o que possibilitou o ingresso de um grande número de magistradas na base da pirâmide. Alavancadas pelos movimentos feministas, em 1999, duas mulheres foram nomeadas para o Superior Tribunal de Justiça e no ano seguinte, 2000, nomeia o Presidente da República a primeira mulher para o Supremo Tribunal Federal.
Se percebido esse contexto histórico, não é de estranhar-se o baixo número de mulheres nos tribunais superiores.
Também entendo que há, por parte das mulheres, um certo acanhamento em enfrentar a realidade do Poder no Brasil, que ainda é masculino. O acanhamento de que falo está expresso em uma realidade: as mulheres não se candidatam com frequência, e quando isto acontece não se mostram determinadas a vencer os obstáculos do mundo do poder, que é hegemonicamente do homem.
Este quadro tende a mudar rapidamente na medida em que a ascensão das mulheres magistradas aos tribunais intermediários tem sido uma constante.

JC – Vossa Excelência é uma das poucas mulheres inte­grante da Corte Superior que faz questão de participar de ONG’s e movimentos feministas, postura que já adotava antes de tomar posse como Ministra. Qual a importância desse tipo de associação para as mulheres e o que motivou vosso engajamento nessas causas?
EC – Entendo que todo grupo identificado como socialmente frágil, e ninguém ignora que o é o universo feminino, para vencer as desigualdades precisa conquistar espaço, precisa partir para mostrar as consequências malévolas da discriminação para o social e para a economia. Ninguém ganha espaço de poder pelo só reconhecimento da justiça ou injustiça. É conquistar, e só se conquista espaço de poder pela luta direcionada em prol da igualdade. Assim, somente os ordenados movimentos feministas são capazes de serem arautos das necessidades do grupo, somente eles são capazes de tornar público e chamar a atenção da mídia quanto à condição feminina. Lamentavelmente muitas mulheres pensam que conseguiram um lugar de destaque na sociedade e no poder apenas pelos seus méritos, ignorando muitas vezes que os caminhos trilhados foram descobertos ou conquistados por outras mulheres que não tiveram a oportunidade de desfrutar de uma sociedade igualitária, mas acreditaram que era possível essa conquista. Estou tão convicta disso que chego a me emocionar quando leio a história de vida de certas líderes femininas que foram ridicularizadas, desconsideradas, amesquinhadas, mesmo quando levaram a público certas e determinadas reivindicações.
Mirtes de Campos lutou ferrenhamente para conseguir inscrever-se como advogada no Instituto dos Advogados no Rio de Janeiro em 1906. Mas depois dela o caminho estava livre. Nísia Floresta, mulher rica e culta, foi obrigada a casar-se aos dezesseis anos com um ancião escolhido pela família, no início do século XIX, e foi escorraçada pela sociedade pernambucana quando decidiu amancebar-se com um jovem estudante de direito em Recife-PE, deixando registrado no seu livro “Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens” sua saga de primeira feminista brasileira. Enfim, temos um enorme número de mulheres que não apenas lutaram pelos seus direitos, lutaram pelo direito de nós todas, e por isso mesmo conseguimos chegar ao Século XXI com uma igualdade formal já consolidada. Mas a luta não acabou, é preciso ainda conquistar a igualdade substancial, a qual passa pelo reconhecimento pleno.
Essas são as razões que me levaram, desde o momento em que iniciei minha vida política, ainda na Faculdade de Direito, a voltar-me atenta para os movimentos feministas.

JC – O que representou para Vossa Excelência e as mulheres integrantes da carreira jurídica a eleição da Ministra Ellen Gracie para Presidente do STF?
EC – A nomeação da Ministra Ellen Gracie para o Supremo Tribunal Federal foi a coroação de uma luta feminina, a constatação de que estávamos certas na diretiva adotada e a satisfação de ver cumprido um compromisso político firmado pelo Presidente da República com o Movimento de Mulheres.

JC – Vossa Excelência costuma dizer que o STJ está se transformando no “Tribunal dos Quintos”. A ocupação do STJ e de seus postos mais elevados — como presidente, vice-presidente e corregedor — por membros da Advocacia e do Ministério Público tem sido motivo de duras críticas por parte de Vossa Excelência na imprensa brasileira. A que Vossa Excelência credita esse aumento crescente da presença da Advocacia e do Ministério Público no STJ e quais as consequências para a Magistratura?
EC – A minha fala e a minha luta pela magistratura não são frutos de corporativismo, absolutamente. Tanto assim que não me coloco contra o quinto constitucional. Posicionam-me contrária à forma como ultimamente vem sendo conduzida a escolha e como vem avançando na formação do STJ.
O STJ é o único Tribunal eminentemente técnico e que tem, ao longo do tempo, se tornado um Tribunal com predominância de representantes do quinto constitucional que chegam à Corte Maior para ocupar vaga que a Constituição destinou a magistrados de carreira, sem respeitarem a sua origem de advogados. Esses ministros juntam-se aos advogados e membros do Ministério Público que ocupam na Corte as vagas destinadas ao quinto e assim ficam em minoria os magistrados de carreira, ou seja, aqueles que durante toda uma vida funcional prepararam-se para serem julgadores.
O avanço do quinto deve-se à maior maleabilidade de seus representantes, da formação própria dos advogados, das relações de amizades que esses fazem ao longo da  trajetória de militantes na advocacia. São jeitosos, sutis, insistentes e determinados. Sabem conquistar, pedir e, sobretudo, insistir. Há ainda um fator que me parece importante: o magistrado, como funcionário público, vive dentro das limitações do seu salário, diferentemente dos advogados, cujos ganhos são bem mais largos, o que se reflete na sua performance de vida e de conquista.
Os magistrados de carreira, diferentemente, atravessaram a vida dentro de um gabinete, acostumaram-se com o exercício da relação de poder própria da magistratura:  eu posso; eu faço; eu digo; eu imponho; não peço, ordeno. Também por uma deformação da carreira os magistrados são treinados para ficar equidistantes do poder político e para se manterem neutros, olvidando-se que é a função de julgar a mais política das funções públicas.
Essa realidade precisa ser trabalhada, e com urgência, a partir da base, para evitarem-se dois grandes males: a formação de um grupo de magistrados que, atentos à realidade, já se mostram de superficialidade absoluta para terem sucesso promocional, desprezando o que de mais belo há na carreira, ou seja, agir como agente político e ser capaz de alterar a realidade social das coisas e barrar a hegemonia do quinto, pelas razões já declaradas.
A consequência da deformação é termos em um Tribunal eminentemente técnico como o STJ, magistrados que muitas vezes não têm intimidade com o direito aplicado ao caso concreto e também magistrados que estão umbilicalmente atrelados às políticas partidárias, ideológicas ou de compadrio.

JC – O Judiciário tem passado por uma série de trans­formações ao longo dos últimos anos, através de sucessivas reformas e releituras do sistema normativo vigente. O que Vossa Excelência pensa sobre isso e que novas medidas considera necessárias para dar celeridade, com eficácia, à prestação jurisdicional?
EC – As reformas do Judiciário a partir da CF/88 foram grandes e rápidas, mas todas elas para solucionarem problemas emergenciais de um Poder que se atrasou no tempo e no espaço. Mantivemos a estrutura dos tribunais acanhada e burocrática, recheados de valores já não mais condizentes com os novos tempos, com a nova roupagem do Estado, aumentamos a base da pirâmide hierárquica, subordinada à cúpula. Resultado, não demos o exemplo e não ensinamos a lição. Ninguém pode ensinar o que não sabe e ninguém pode educar sem exemplificar. Conclusão: uma cúpula perplexa, desarticulada e até certo ponto amedrontada com os novos tempos e uma base inteiramente sem comando efetivo.
A solução não será fácil, nem rápida, mas me parece que a Emenda Constitucional 45, chamada de Reforma do Judiciário, foi muito feliz quando criou o Conselho Nacional de Justiça e a Escola Nacional de Magistratura.
O Conselho Nacional de Justiça está na direção certa: corrigindo os tribunais com diretivas e normas claras e específicas, ensinando a trabalhar com transparência e objetividade, estou certa de que a base será atingida ao longo de algum tempo. As Escolas de Magistratura, capitaneadas pela ENFAM, têm papel importantíssimo no processo de mudança, na medida em que aceitarem ser mais importante formar e não apenas informar.

JC – Vossa Excelência publicou um livro de receitas culinárias, “REsp – Receitas Especiais”, em 1995, e naépoca foi muita criticada. Como Vossa Excelência enfrentou as críticas por ser uma Ministra lançando um livro de receitas?
EC – As críticas foram muitas por puro preconceito, quando do lançamento do primeiro livro, em 1995. Com o tempo a mídia encheu as revistas e os programas de televisão de homens na cozinha e agora a culinária ficou chic e virou moda, e hoje, passados quinze anos, ninguém mais duvida de uma “Ministra Cozinheira”.